“ESCOLA SEM PARTIDO”: Uma ilha de
neutralidade seletiva no mar tempestuoso do mundo político.
As
observações e as críticas que faço ao projeto
de lei “Escola Sem Partido” levam em conta, principalmente, quem está na
linha de frente do projeto e a minha
experiência como aluno e como professor.
De
autoria do senador Magno Malta, porta-voz (ou testa-de-ferro?) de um
conservadorismo rasteiro e desinformado que (re)surgiu no Brasil na última
década, o projeto de lei “Escola Sem
Partido” representa uma tentativa oportunista e grosseira de invadir o ambiente
escolar, patrulhar as condutas dos professores e transformá-los em
transmissores passivos e apolíticos de conhecimentos estéreis. Afastar das
escolas, por imposição legal, os debates/embates políticos que vicejam no mundo
é pretender transformar as escolas em ilhas de neutralidade, em ambientes
ascéticos e apolíticos descolados do mundo social.
O
projeto de lei é um retorno ao
positivismo do século XIX e à crença na neutralidade axiológica do
conhecimento. Mas duvido que os proponentes deste modelo de Escola saibam
disso. Se soubessem, saberiam também que a “crença” na neutralidade do
conhecimento era uma entre as tantas utopias racionalistas do século XIX (como
o socialismo) que foram derrubadas no século XX. Mas todos nós sabemos que os
interesses que movem os defensores do projeto
são outros.
Magno
Malta, a ponta do iceberg, é figura folclórica do anticomunismo paranoico e anacrônico
que tomou conta do Brasil nos últimos anos, ressuscitado na esteira dos graves
deslizes éticos e morais dos governos do PT. Histérico e barulhento, pegou
carona na onda antiesquerdista e se projetou como defensor, no senado federal,
de um modelo de escola que se pretende neutra. Magno Malta é presidente da ‘Frente Parlamentar em Defesa da Família Brasileira’ e
um típico “ficha suja”. Seu nome aparece em escândalos como o esquema de
superfaturamento das ambulâncias (escândalo dos sanguessugas) e a aprovação de
uma emenda para favorecer uma empresa fabricante de armários de cozinha (Será
que é esta a relação que o senador estabelece entre o exercício do mando
parlamentar e a defesa da família: armários de cozinha para a família
brasileira?).
É
esse senador exemplar que está propondo o projeto
de lei. Malta e os defensores deste modelo de escola “neutra” não são nada
neutros. Eles têm um partido. Eles são inimigos declarados das esquerdas e do
marxismo e fazem disso a sua profissão de fé. São fanáticos antiesquerdistas
que querem, em nome disso, varrer das escolas a pluralidade de pensamentos. Não
é necessário nomear os demais defensores do projeto.
Magno Malta os representa perfeitamente bem.
Na
página do “Escola Sem Partido” está escrito em letras garrafais que o PT e o Sindicato
dos Professores são contra o projeto de
lei. O truque é manjado. A estratégia é vender a ideia de que apenas
petistas e professores esquerdistas, por óbvios interesses, se opõe ao projeto. O descrédito político do PT e o
macarthismo de ocasião os favorece. Pois bem. Eu não sou petista, não simpatizo
com o PT, não sou filiado a nenhum Sindicato, e sou absolutamente contra a
ideia da “Escola sem Partido”. Aliás, não conheço nenhum colega professor, das
escolas e das universidades, que apoie o projeto.
Tenho colegas de diversas tendências políticas: de socialistas à liberais, de
keynesianos à admiradores da Hayek, de petistas à tucanos. Nenhum deles
simpatiza com a ideia.
Sou
professor há mais de vinte anos. Lecionei em escolas de primeiro e segundo
grau, públicas e particulares, e há vinte anos leciono em Universidades, em
cursos de graduação e pós-graduação. Como professor, sempre procurei exercer
democraticamente o meu ofício oferecendo aos meus alunos diferentes pontos de
vistas sobre os temas abordados, para que fizessem suas escolhas. Não procuro e
nunca procurei orientar a conduta política de ninguém. E isso não é
neutralidade. Nunca foi um professor neutro. Não acredito na neutralidade. Acredito
no diálogo e na troca democrática e respeitosa de ideias.
Encontrei
na minha trajetória todo tipo de professor. Conheci liberais radicais, convivi
com colegas de tendências fascistas e tive contato com esquerdistas exaltados.
Mas eles sempre foram não mais do que alguns gatos pingados. Uma minoria caricata
que os próprios alunos se encarregavam de desacreditar. Eram figuras
folclóricas, como Magno Malta e, por isso mesmo, não eram levadas a sério (A
grande maioria era de professores equilibrados e ponderados, quer à esquerda,
quer à direita). Alunos e colegas davam apelidos apropriados e faziam gracinhas
com os excessos de idealismo ou de autoritarismo dos professores mais
extremados. Numa das escolas que trabalhei, no começo dos anos 90, o professor
com tendências fascistas era chamado nos corredores de Adolfinho, e o exaltado de esquerda, de cumpanheiro. Eram verdadeiras caricaturas! O primeiro vestia-se
formalmente, com a calça acima do abdômen, camisa caprichosamente para dentro
da calça, cintos e sapatos impecáveis e sempre muito bem barbeado. Segundo os
murmúrios do corredor, o sujeito não admitia a menor desatenção dos alunos. Fulminava
com os olhos e chamava atenção com o dedo em riste. Embora não fosse professor
de história, gostava de falar da segunda guerra mundial. Na hora do intervalo,
parava na porta da sala dos professores em pose marcial, com as mãos para trás,
cumprimentando todos que chegavam: “satisfação revê-lo, professor”, dizia
sempre. Era intimidador. Nunca o vi sentado, relaxado. O segundo usava barba
irregular, vestia-se com certo desleixo e usava uma indefectível bolsa de
couro. Qualquer que fosse o assunto tratado em aula, ela dava um jeito de falar
de revolução e luta de classes. Tinha mau hálito e explicava absolutamente tudo
com base nos escritos de Trotsky. Embora, a julgar pelas poucas vezes que
conversamos, parecesse nunca ter realmente lido “A Revolução Permanente”. Adolfinho e cumpanheiro não se cumprimentavam. Pareciam se odiar, embora, aos
meus olhos, fossem tão parecidos (assimetricamente iguais). Em outra escola,
conheci uma professora que, em sala de aula, se dizia admiradora da ditadura
militar. Dizia que naquele tempo tudo era melhor e que os alunos deveriam se
inspirar no exemplo dos militares. Tinha fama de autoritária e de perseguir
alunos do centro acadêmico ou os que discordassem dela. Quando passava nos
corredores, os alunos batiam continência e juntavam as pernas, sem ela ver,
claro. Na sala dos professores, mantinha um tom mais discreto. Mesmo assim, não
escapou da zombaria: o professor de física a apelidou de sargentão. Quando sargentão
entrava ereta na sala dos professores o ambiente mudava. Ficava um clima
artificial. Ela nunca percebeu. Se esforçava para ser simpática. Usava laquê no
cabelo, maquiagem permanente e sempre combinava a cor da bolsa com a cor do
sapato. Sargentão tinha cheiro de
roupa guardada. Anos mais tarde encontrei o professor de física num bar e
fiquei sabendo que a professora abandonou a sala de aula, queixando-se da
indisciplina dos alunos, e foi trabalhar no setor administrativo da escola.
Todos
os três professores eram autoritários e usavam a sala de aula para exercitar
sua profissão de fé. Mas não pensem que os(as) alunos(as) são presas fáceis e
vítimas inocentes de predadores com diplomas. Professores com tendências
autoritárias e catequizadores voluntariosos viram rapidinho motivo de piadas e
chacotas. Quantas vezes vi no recreio alunos fazendo a saudação nazista, pelas
costas, quando Adolfinho passava. Não
foram poucas as vezes também que ouvi um aluno mais saidinho gritar para o
outro professor: o que Trotsky diria sobre isso, cumpanheiro?
O
“abuso da liberdade de ensinar”, como querem os defensores do projeto, existe, mas é a exceção, não a
regra. Não se pode interferir na liberdade de ensino para conter um punhado de professores
exaltados. E não são apenas professores ditos de esquerda que praticam esse
abuso. Mas os defensores do “Escola Sem Partido” não querem saber disso. Eles
demonizam os professores de esquerda como se eles fossem de alguma maneira
perigosos. Ora, se as escolas vivessem uma epidemia ideológica, como pretendem
os alarmistas, e os tais doutrinadores de esquerda tivessem de fato o poder de
converter crianças e adolescentes em militantes esquerdistas, seríamos uma “república
sindicalista”, para usar uma velha expressão, ou viveríamos numa sociedade do
tipo socialista há muito tempo.
O ideal de escola que emerge do
projeto nem chega a ser o bicho de sete cabeças que estão pintando. O projeto é
ingênuo e, em certo sentido, inofensivo. Mas é bom ter cuidado! Na atual conjuntura de polarização ideológica,
ele pode se transformar numa forma policialesca e vigilante de fiscalização do
trabalho dos professores. Não que eu ache que os professores não devam prestar
contas do seu trabalho. Pelo contrário. Tem que prestar sim e devem ser
avaliados constantemente. Mas isso é diferente do tipo de controle pretendido
pelos idealizadores do projeto. A
atitude do vereador de São Paulo, Fernando Holiday, eleito pelo MBL, é um bom
exemplo do exercício de um poder abusivo e inquisitorial, seletivamente
exercido. O vereador anunciou na sua página na internet que está fazendo
visitas surpresas nas escolas da rede municipal de São Paulo para fiscalizar o
conteúdo das aulas. Justificando as “visitas”, o vereador disse num vídeo que: “Temos de ver se está tendo algum tipo de doutrinação
ideológica, se os professores estão dando aquilo que realmente deveriam dar de
acordo com a grade curricular ou se tem professor entrando com camisa do PT, do
MST, jogando tudo pro alto e fazendo aquela doutrinação porca”. Holiday se
julga um verdadeiro fiscal do conhecimento, investido de um poder e de uma
verdade que o habilitam a se lançar na heroica missão de limpar as escolas da
“doutrinação porca”. Que tipo de isenção o representante do MBL tem para
adentrar de surpresa nas escolas para fiscalizar a conduta dos
professores? Na verdade, o vereador é um
fanático antiesquerdista que está à caça de tudo o que não se parece com ele.
Se os defensores e simpatizantes da sigla quisessem de fato um Brasil decente,
livre da corrupção, estariam nas redes sociais e nas ruas pedindo o afastamento
de Michel Temer. O silêncio deles diz muito sobre o que entendem por uma “Escola
sem Partido”. Será que o vereador “do bem” se importaria com professores que fazem
em sala de aula a apologia do regime militar?
Nossos alunos não precisam deste tipo de “proteção” e nossas escolas não precisam ser expurgadas e higienizadas de supostas infecções ideológicas, e transformadas em redomas do conhecimento “puro”. Os pais que defendem o “Escola Sem Partido” estão passando um atestado de imbecilidade e de incapacidade dos filhos de lidar com a diferença de pensamento. As escolas precisam de investimentos, não de castração. Precisam de laboratórios e boas bibliotecas, não do sequestro da reflexão política e, se for o caso, dos embates políticos. Nossos alunos precisam de professores mais bem pagos e melhor preparados. Conviver com vozes dissonantes, com ideias diferentes e conflitantes com as que trazem de casa, não é nenhum problema. Pelo contrário, é também um aprendizado para crescerem no mundo, conviverem com os embates políticos e poderem fazer suas escolhas. Estudei na escola primária, no final dos anos 70 e início dos anos 80, com professores (não todos) que exaltavam as virtudes das forças armadas, nos faziam marchar, cantar o hino (como pretende Magno Malta) e escrever pequenos textos laudatórios do governo militar. No entanto, minha postura, desde o final do primário, sempre foi de oposição à ditadura. Os professores doutrinadores de OSPB e de Educação Moral e Cívica, do meu tempo de aluno, que adaptavam as duas disciplinas às exigências dos governos militares, também eram motivo de piadas e imitações. Aliás, acho que devo a eles a decisão de fazer a faculdade de história. Não tive a disciplina na escola. O que era para ser “aula de história” era, na verdade, um exercício laudatório das virtudes cívicas, segundo a ótica do regime militar. Fui estudar história por fora, nos livros, longe da escola. Na universidade, estudei com professores marxistas, liberais, positivistas e nacionalistas. Soube, como a maioria dos meus colegas, tirar de cada um o que me interessava.
O
projeto de lei encabeçado por Magno
Malta, equivocado e descabido, está sendo proposto numa conjuntura de extremismos
e de polarização política. Ainda que tivesse pertinência, o que não é o caso, não
seria este o melhor momento para se apreciar este tipo de interferência na vida
escolar. Além disso, os propositores e defensores do projeto, pelo que se depreende das falas e dos discursos, não têm a
ciência nem a competência para pensar um tema tão delicado. São, com efeito, motivados
por um antiesquerdismo febril, circunstancial, oportunista e bastante mal
informado. Querem amputar as ideias de esquerda da vida do país como se fosse
uma doença, como se os extremismos vicejassem apenas à esquerda. São, portanto,
antidemocráticos. Numa democracia se convive com valores, projetos e ideias antagônicas.
Espero
que o Escola Sem Partido, verdadeiro delírio reacionário, seja uma dessas perturbações
passageiras da jovem democracia brasileira, e que logo vire piada. A melhor
forma de se livrar de besteiras perigosas é rir delas, como os alunos riam, e
continuam rindo, dos professores que usam a sala de aula para exaltar as suas
preferências políticas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário