SOCIEDADE
DO APLICATIVO: Os Apps como
dispositivos de controle e orientação das vontades e dos desejos.
Os
anéis de uma serpente são ainda mais complicados que os buracos de uma toupeira
(Deleuze).
Quanto
maior o número de informações em relação aos indivíduos, maior a possibilidade
de controle de comportamento desses indivíduos (Foucault).
Cada época inventou e
experimentou suas próprias tecnologias de controle e submissão dos sujeitos
(aqueles que são assujeitados por diferentes formas e combinações de saber e
poder). Das técnicas de vigilância modernas às câmeras de monitoramento, das
estruturas arquitetônicas das fábricas e das escolas aos dispositivos de
localização dos smartphones, as
novidades tecnológicas, que atuam como modeladores dos gestos e adestradores
dos comportamentos, sempre foram apresentadas como facilitadoras da vida e
maximizadoras de segurança.
Em “Vigiar e Punir”,
lançado originalmente em 1975, Michel Foucault identificou, entre os séculos
XVIII e XIX, a emergência de um novo sistema de poder, baseado na disciplina e
no confinamento, que chamou de sociedade
disciplinar. Em diversas instituições como escolas, fábricas, hospitais,
quarteis e prisões, foram introduzidas tecnologias de controle e vigilância do
tempo, do espaço e dos corpos dos indivíduos, com vistas a torna-los
obedientes, úteis e molda-los às exigências da produção. A criação do panóptico,
por Jeremy Benthan, representou a sofisticação dos mecanismos de vigilância. Os
dispositivos disciplinares são constituídos por uma polarização entre a
opacidade do poder e a transparência dos indivíduos. O panóptico ilustra
perfeitamente bem esta polarização. A torre de controle ficaria fora do alcance
dos indivíduos, enquanto os indivíduos estariam o tempo todo ao alcance do
olhar supervisor da torre. Expostos à permanente visibilidade, estariam sujeitos
à invisibilidade do mecanismo de controle que os observa. O que fazer diante de
um poder que se exerce na invisibilidade?
Panóptico.
Em 1990, num artigo intitulado
“Post-scripton Sobre as Sociedades de Controle”, publicado no L´Autre Journal, Gilles
Deleuze identificou os elementos, sobretudo tecnológicos, que articulariam uma
nova ordem social: a sociedade de
controle. A mudança teria ocorrido na segunda metade do século XX, no
pós-segunda guerra. Os mecanismos de vigilância foram aprimorados e se
generalizaram. A invasão das câmaras de segurança nos diversos espaços sociais
(lojas, bancos, supermercados, estradas, e por aí a fora) o uso de transponders, de aparelhos celulares,
cartões de crédito e da popularização da internet e das tecnologias de
comunicação, ampliaram e tornaram mais eficientes as possibilidades de controle
e vigilância. Antes circunscrita à lugares fechados, aos interiores das
instituições disciplinares, a vigilância assumiria um caráter mais abrangente e
alcançaria os espaços abertos. Para Deleuze, Kafka, que viveu no ponto e
intersecção entre as duas ordens, anteviu, em O Processo, aspectos que anunciariam
a passagem da sociedade disciplinar
para a sociedade de controle.
Da
Sociedade do Controle à Sociedade do Aplicativo.
E hoje, estaríamos
vivendo em que tipo de sociedade? Na sociedade
do aplicativo? Exploremos a possibilidade. Os programas de computadores,
conhecidos como Apps, que nos ajudam
em tarefas específicas, estão assumindo o controle nas mais variadas
atividades. Nos auxiliam na hora de
pegar um taxi, de pedir comida, de dirigir, de cuidar dos bebês, de estudar, de
escrever e de meditar, de dormir e de acordar. Dormindo ou acordados, os
aplicativos controlam nossos fluxos de relacionamentos e atividades. São vistos
como facilitadores úteis da vida diária. E minha intenção não é afirmar o
contrário. Chamo a atenção apenas para a centralidade que estes dispositivos vêm,
cada vez mais, ocupando em nossas vidas. Estaríamos à beira de uma ditadura do App? Num blog sobre tecnologia, a frase
de abertura de um texto sobre os 10 aplicativos que você tem que usar em 2017, é: “Sem aplicativos o ser humano moderno não vive”. Tirando o exagero da
afirmação, compreensível num blog sobre tecnologia, nota-se o lugar vital que
os arautos destes dispositivos, que habitam as pequenas divindades digitais (os
smartphones), pretendem que eles
assumam em nossas vidas.
Se considerarmos a
maneira como as pessoas expõem seus hábitos nas diversas redes sociais, disponibilizando
dados e informações sobre quase tudo o que fazem, onde estão, como estão e com
que frequência visitam certos lugares, os aplicativos assumem, cada vez mais, a
função de dispositivos de controle.
A sociedade do aplicativo, se embarcarem na minha “brincadeira”, seria
uma espécie de variação, ou sofisticação, da
sociedade do controle. Mas que forma de controle é essa que está na palma
da mão e, aparentemente, sob o nosso comando? É exatamente esta a sofisticação.
Julgamos comandar a tecnologia, porque está sob o nosso controle, mas na
verdade somos dirigidos por ela (creio que o seriado inglês Black Mirror
capturou isso de maneira inteligente). Por meio destes dispositivos, criados
freneticamente, introjectamos e assimilamos inúmeras formas de controle sobre
nossas vidas e passamos a usá-las no dia-a-dia sem se dar conta do espaço que
vão ocupando nas nossas relações e na mediação da nossa comunicação com o mundo
e, sobretudo, da forma como vão ditando nosso comportamento e orientando os
nossos desejos. Os Aplicativos estão
para a sociedade de controle assim
como o Panóptico estava paras a sociedade disciplinar.
Em alguns casos, os Apps são um substitutivo para a memória,
pois nos avisam e nos lembram a todo instante das coisas que devemos fazer.
Parece cômodo (e é), mas cria dependência. Um estudo realizado pela Flurry,
empresa que desenvolve e comercializa uma plataforma para analisar as
interações do consumidor com aplicativos móveis, revelou que há em torno de 280
milhões de viciados em aplicativos para celular no mundo (considerando que a
pesquisa já tem mais de dois anos, o número deve ter aumentado
exponencialmente). Especialistas do Hospital das Clínicas, de São Paulo,
afirmaram que 10% dos internautas brasileiros já foram diagnosticados com
dependência de tecnologia: são pessoas que ficam até 12 horas conectadas e,
quando desconectadas, apresentam sintomas de tremedeira, sudorese, taquicardia
e, em casos mais complicados, com tentativas de suicídio. Todavia, advertiu um
especialista, não é o tempo conectado que define uma situação de dependência,
mas a perda de controle sobre a tecnologia (Link para consultar estas
informações: http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2015/07/viciados-em-tecnologia-usam-app
game-e-celular-como-se-fosse-droga.html).
A dependência é
alarmante, não há dúvidas, e atinge os consumidores de tecnologia em diferentes
graus. Mas eu estou chamando a atenção para os dispositivos de controle que os Apps carregam, e os efeitos coletivos
sobre milhões de pessoas, comandadas pelos mesmos programas. Além de saber onde
os usuários estão e o que estão fazendo, à maneira de um panóptico móvel, os Apps,
cada vez mais, definem os gostos, as escolhas, os procedimentos, o lazer e as
formas de mobilidade de milhões de usuários, que são induzidos a determinadas
ações, gerando um comportamento de manada. Uma manada montada na tecnologia e
facilmente dirigida para os caminhos ditados pelo poder pastoral dos Apps.
A cadeia de Apps criada para facilitar as nossas
vidas estão roubando, com o nosso consentimento, a nossa liberdade, a liberdade
de decidir, de improvisar, de errar. O filósofo francês Jean-Michel Besnier disse recentemente numa
entrevista que “estamos cada
vez mais cercados de máquinas que são pensadas para facilitar nossa vida”, para
melhorar a circulação, a segurança e nos poupar tempo. Mas isso também tem sequestrado as nossas
iniciativas. “Nós nos tornamos cada vez menos livres - portanto, menos morais -
e nos comportamos cada vez mais como máquinas. Isso abre as portas para uma
desumanização. Ser livre é aceitar a sorte, tomar riscos (Besnier).”
“A
visibilidade é uma armadilha [...] É o fato de ser visto
sem cessar, de sempre poder ser visto, que mantém sujeito o indivíduo
disciplinar" (Foucault). Eis a nossa condição,
mas com um agravante: as tecnologias de controle e vigilância contemporâneas,
diferentemente das fábricas-prisões e das câmeras de vigilância, são atraentes,
sedutoras, viciantes, pagamos caro por elas e acreditamos que elas ampliam nossas redes de sociabilidade e nossas
liberdades de escolha e movimento (Ou será que nós nos enredamos como peixes na
poderosa rede (a armadilha) e usamos a tecnologia das redes para manter o outro sob nosso controle, vigilância e monitoramento,
fiscalizando seus passos, gostos e comportamentos?).
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