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terça-feira, 14 de novembro de 2017

O ATIVISMO DA IGNORÂNCIA CONTRA JUDITH BUTLER. Ou: não li, não conheço e sou decididamente contra a bruxa feminista.

O ATIVISMO DA IGNORÂNCIA CONTRA JUDITH BUTLER. Ou: não li, não conheço e sou decididamente contra a bruxa feminista.


Nada mais assustador que a ignorância em ação (Goethe).



Ignorância, do latim ignorantia, deriva de ignorare (in, não – ganrus, aquele que domina um tópico ou assunto, sabedor), que significa “não saber”. Ignorante, portanto, é aquele que ignora, que não sabe. Ignorar, ou não saber nada sobre determinadas coisas, não é nenhum problema. Pelo contrário, é o ponto de partida para sair do estado de ignorância. Algumas das melhores pessoas que conheci na vida eram totalmente ignorantes sobre quase tudo o que me é importante. A ignorância só se torna um problema quando nos posicionamos sobre o que não conhecemos. Ou, o que é mais grave, quando nos tornamos ativistas contra o que desconhecemos. Neste caso, a ignorância se transforma numa arma assustadora contra os direitos do outro, pois o ignorante, destituído de argumentos minimamente razoáveis, é uma máquina de insultos, agressões e ofensas.
O caso das manifestações contra exposições de arte, e mais recentemente contra Judith Butler, são exemplares. Sem o mínimo entendimento sobre os sentidos da arte, e as intenções dos artistas, ou sobre o que escreve e pensa a filósofa estadunidense, manifestantes, que se julgam pessoas de bem, montam guarda, no pior estilo fascista, em nome de supostos bons costumes, para impedir exposições artísticas, que até ontem desconheciam, e o livre pensamento de uma filósofa, da qual nunca ouviram falar. Butler tem uma trajetória intelectual e acadêmica de mais de trinta anos, e os estudos de gênero no Brasil remontam ao começo dos anos 80. Mas para a turma que acordou agora (Afinal, o gigante acordou), e desfila seu bloco da intolerância na avenida, tudo parece novidade. Acusam levianamente artistas de incentivarem a pedofilia e a filósofa de pretender destruir a família. Os ativistas, que se auto-intitulam de direita, combatem o que não conhecem, não concordam com o que não leram e berram nas ruas e nas redes sociais para silenciar tudo o que está em desacordo com as suas recentíssimas “convicções”. E o curioso é que quanto menos sabem, mais certezas têm. O volume ensurdecedor do berro é proporcional ao tamanho da ignorância!

Aconteceu coisa parecida, em fevereiro de 2013, quando a blogueira cubana Yoani Sanchéz veio ao Brasil lançar o livro “De Cuba, com Carinho”. Fascistas ditos de esquerda montaram uma milícia castrista, ignorante e barulhenta, para impedir a bruxa traidora da revolução de falar. Exibiam, orgulhosos, cartazes ofensivos e gritavam palavras de ordem adestradas. Típico dos rebanhos políticos. Para quem diz estar em lados opostos, os tais de esquerda e os de direita são tão parecidos. São os dois extremos da ferradura. Andam quase de mãos dadas, irmanados pelo fanatismo, e não se dão conta.


Aliás, o extremismo desta turma que combate a “ideologia de gênero” não fica devendo nada à mentalidade inquisitorial medieval, profundamente misógina. Como há 500 anos, estamos vivendo, perplexos, uma verdadeira e delirante caça às bruxas. Em defesa da “família” e da “tradição”, manifestantes queimaram um boneco de uma bruxa com o rosto de Judith, em frente ao Sesc Pompeia. Aos gritos, e exibindo cruzes, os novos fanáticos gritavam: “queimem a bruxa”. E queimaram! Queimaram a filósofa em efígie. Lançaram às chamas o pensamento diferente, em pleno século XXI. O ato é de uma violência simbólica estarrecedora, de viés totalitário.  Logo eles, que se dizem liberais e críticos dos totalitarismos de esquerda. Pelo visto, além de lutar contra o que jamais compreenderam, defendem também o que não conhecem. São antifeministas por arremedo e liberais por desconhecimento!

O que mais esperar desta turma¿ Já invadiram salas de aula, aos gritos, à caça de supostos professores comunistas. Difamam todos aqueles que se manifestam publicamente a favor do que eles condenam (recentemente atacaram Fernanda Montenegro). Tentam, em nome de duvidosos valores democráticos, intimidar, constranger, silenciar e destruir reputações. Um pouco mais e estarão queimando livros em praça pública.

Uma petição que circulava entre os manifestantes concentrados em frente ao Sesc Pompeia, dizia: “Não podemos permitir que a promotora dessa ideologia nefasta promova em nosso país suas ideias absurdas, que têm por objetivo acelerar o processo de corrupção e fragmentação da sociedade”. Como cavaleiros cruzados, os heroicos defensores da “família” e da “tradição” julgam estar numa cruzada antiapocalíptica em nome da decência e do que é certo (estão tão certos disso que nunca lhes ocorre que os outros também podem estar, à sua maneira, certos).

Gostaria muito de saber o que eles entendem por “fragmentação da sociedade”? A tal sociedade, que eles dizem defender, é, por acaso, una, homogênea, monolítica?  Talvez seja exatamente isso que eles desejam (mas não conseguem formular), uma sociedade homogênea, de valores férreos e imutáveis, de machos e fêmeas inequívocos, desempenhando papeis para os quais nasceram, e que silencia e lança às chamas quem ousa pensar de outra maneira. Uma sociedade que não pensa, que não comporta a diferença, que não reflete sobre si mesma, que apenas reproduz certezas convenientes ao modelo normativo dominante.


No aeroporto, antes de embarcar, Judith foi hostilizada por um grupo, e por duas mulheres em particular, que a perseguiam, empunhando cartazes, acusando-a de ser “assassina de crianças” e “destruidora da família”. Que tristes figuras, absolutamente certas sobre o que desconhecem.
Um dos guias morais destas pessoas, e digníssimo representante da novíssima decência nacional, Alexandre Frota, se expressou, em português peculiar, sobre a heroica ação no aeroporto: “Se alguém achou que iríamos deixar Judith Butler sair do Brasil sem ouvir a verdades se enganou estávamos a espera dela no aeroporto de Congonhas e lá teve q ouvir”. Prefiro não saber sobre “a verdades” de Frota. Por outro lado, sua ignorância é eloquente!

O pensamento de Judith Butler não está acima das contestações e deve, claro, ser examinado criticamente, mas com honestidade e respeito, como ela fez, por exemplo, com Simone de Beauvoir, na obra “Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade”, de 1990. Butler questionou a dicotomia sexo/gênero, formulada por Beauvoir, marcada pelo dualismo ontológico cartesiano e pelo essencialismo de gênero, que, entre outras coisas, apontava para a categoria mulher como um bloco monolítico. O “Segundo Sexo”, de 1949, uma das mais significativas e influentes obras do feminismo do século XX, distinguiu pela primeira vez a construção do gênero do sexo dado, e abriu, com isso, a possibilidade de desmontar a sentença de Freud de que “a anatomia é destino” e as construções deterministas do século XIX que partiam da biologia para explicar as desigualdades sociais entre homens e mulheres. Butler reconhece esta valiosa contribuição, mas entende que ela precisa ser superada, principalmente sua estrutura binaria (homem/mulher, macho/fêmea, masculino/feminino), para dar lugar às interpretações que sustentam o caráter mais fluido do gênero, que admitem uma multiplicidade de sujeitos. Em outras palavras, as identidades de gênero, e as experiências humanas, não cabem e não se esgotam nas categorias fixas de homem e mulher.

                                                                 Conchita Wurst.

A obra de Butler, como qualquer outra, precisa e deve ser questionada.  Mas para isso, é necessário entender o que ela propõe. É preciso lê-la. Não tem outra maneira. Questioná-la sem ler o que ela escreveu, e protestar contra, é a mesma coisa que dizer que odeia jabuticaba, sem nunca ter experimentado, e tentar convencer os outros de que a fruta não presta. Daí as aberrações: “assassina de crianças” e “destruidora da família”.

Os que não leram, e não sabem o que Butler pensa, seguem outros que também não leram. A desinformação faz escola (partidária e doutrinadora) e marcha, orgulhosa da própria ignorância, pelas ruas do Brasil medieval. “Queimem a bruxa”!





4 comentários:

  1. Coerente, irônico e preciso, como sempre. Bravo!

    Abraços,

    Juliano F.

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  2. Paulo que delícia ler teu texto! Irônico e provocante! Tu colocou essa característica recorrente dos extremistas atuais... criticar o que não conhecem e pior... terem um rebanho de ovelhas insanas!rs
    É meio clichê isso q vou dizer, mas não vejo mta esperança, além de pensar que é na escola, desde as series iniciais, que a educação sob a perspectiva dos estudos de gênero poderá trazer alguma lucidez.

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    1. Grazi, é realmente uma pena essa desinformação toda sobre gênero. A escola perde, nós todos perdemos. Tristes dias!!!

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