O
ATIVISMO DA IGNORÂNCIA CONTRA JUDITH BUTLER. Ou: não li, não conheço e sou decididamente
contra a bruxa feminista.
Nada mais
assustador que a ignorância em ação (Goethe).
Ignorância, do
latim ignorantia, deriva de ignorare (in, não – ganrus, aquele que domina um tópico ou assunto, sabedor),
que significa “não saber”. Ignorante, portanto, é aquele que ignora, que não
sabe. Ignorar, ou não saber nada sobre determinadas coisas, não é nenhum
problema. Pelo contrário, é o ponto de partida para sair do estado de
ignorância. Algumas das melhores pessoas que conheci na vida eram totalmente
ignorantes sobre quase tudo o que me é importante. A ignorância só se torna um
problema quando nos posicionamos sobre o que não conhecemos. Ou, o que é mais
grave, quando nos tornamos ativistas contra o que desconhecemos. Neste caso, a
ignorância se transforma numa arma assustadora contra os direitos do outro, pois o ignorante, destituído de
argumentos minimamente razoáveis, é uma máquina de insultos, agressões e
ofensas.
O
caso das manifestações contra exposições de arte, e mais recentemente contra
Judith Butler, são exemplares. Sem o mínimo entendimento sobre os sentidos da
arte, e as intenções dos artistas, ou sobre o que escreve e pensa a filósofa estadunidense,
manifestantes, que se julgam pessoas de bem, montam guarda, no pior estilo
fascista, em nome de supostos bons costumes, para impedir exposições artísticas,
que até ontem desconheciam, e o livre pensamento de uma filósofa, da qual nunca
ouviram falar. Butler tem uma trajetória intelectual e acadêmica de mais de
trinta anos, e os estudos de gênero no Brasil remontam ao começo dos anos 80.
Mas para a turma que acordou agora (Afinal, o gigante acordou), e desfila seu
bloco da intolerância na avenida, tudo parece novidade. Acusam levianamente
artistas de incentivarem a pedofilia e a filósofa de pretender destruir a
família. Os ativistas, que se auto-intitulam de direita, combatem o que não conhecem, não concordam com o que
não leram e berram nas ruas e nas redes sociais para silenciar tudo o que está
em desacordo com as suas recentíssimas “convicções”. E o curioso é que quanto menos sabem, mais certezas têm. O volume ensurdecedor do berro é proporcional ao
tamanho da ignorância!
Aconteceu
coisa parecida, em fevereiro de 2013, quando a blogueira cubana Yoani Sanchéz
veio ao Brasil lançar o livro “De Cuba, com Carinho”.
Fascistas ditos de esquerda montaram
uma milícia castrista, ignorante e barulhenta, para impedir a bruxa traidora da revolução de falar.
Exibiam, orgulhosos, cartazes ofensivos e gritavam palavras de ordem adestradas.
Típico dos rebanhos políticos. Para quem diz estar em lados opostos, os tais de esquerda e os de direita são tão parecidos. São os dois extremos da ferradura.
Andam quase de mãos dadas, irmanados pelo fanatismo, e não se dão conta.
Aliás,
o extremismo desta turma que combate a “ideologia de gênero” não fica devendo
nada à mentalidade inquisitorial medieval, profundamente misógina. Como há 500
anos, estamos vivendo, perplexos, uma verdadeira e delirante caça às bruxas. Em
defesa da “família” e da “tradição”, manifestantes queimaram um boneco de uma
bruxa com o rosto de Judith, em frente ao Sesc Pompeia. Aos gritos, e exibindo
cruzes, os novos fanáticos gritavam: “queimem a bruxa”. E queimaram! Queimaram
a filósofa em efígie. Lançaram às chamas o pensamento diferente, em pleno
século XXI. O ato é de uma violência simbólica estarrecedora, de viés
totalitário. Logo eles, que se dizem liberais e críticos dos totalitarismos de
esquerda. Pelo visto, além de lutar contra o que jamais compreenderam, defendem
também o que não conhecem. São antifeministas por arremedo e liberais por
desconhecimento!
O
que mais esperar desta turma¿ Já invadiram salas de aula, aos gritos, à caça de
supostos professores comunistas. Difamam todos aqueles que se manifestam
publicamente a favor do que eles condenam (recentemente atacaram Fernanda Montenegro).
Tentam, em nome de duvidosos valores democráticos, intimidar, constranger, silenciar
e destruir reputações. Um pouco mais e estarão queimando livros em praça
pública.
Uma
petição que circulava entre os manifestantes concentrados em frente ao Sesc
Pompeia, dizia: “Não podemos permitir que a promotora dessa ideologia nefasta
promova em nosso país suas ideias absurdas, que têm por objetivo acelerar o
processo de corrupção e fragmentação
da sociedade”. Como cavaleiros cruzados, os heroicos defensores da “família”
e da “tradição” julgam estar numa cruzada antiapocalíptica em nome da decência
e do que é certo (estão tão certos disso que nunca lhes ocorre que os outros também podem estar, à sua
maneira, certos).
Gostaria
muito de saber o que eles entendem
por “fragmentação da sociedade”? A tal sociedade, que eles dizem defender, é,
por acaso, una, homogênea, monolítica? Talvez seja exatamente isso que eles desejam (mas não conseguem
formular), uma sociedade homogênea, de valores férreos e imutáveis, de machos e
fêmeas inequívocos, desempenhando papeis para os quais nasceram, e que silencia
e lança às chamas quem ousa pensar de outra maneira. Uma sociedade que não
pensa, que não comporta a diferença, que não reflete sobre si mesma, que apenas
reproduz certezas convenientes ao modelo normativo dominante.
No
aeroporto, antes de embarcar, Judith foi hostilizada por um grupo, e por duas
mulheres em particular, que a perseguiam, empunhando cartazes, acusando-a de
ser “assassina de crianças” e “destruidora da família”. Que tristes figuras,
absolutamente certas sobre o que desconhecem.
Um
dos guias morais destas pessoas, e digníssimo representante da novíssima
decência nacional, Alexandre Frota, se expressou, em português peculiar, sobre
a heroica ação no aeroporto: “Se alguém achou que iríamos deixar Judith Butler
sair do Brasil sem ouvir a verdades se enganou estávamos a espera dela no
aeroporto de Congonhas e lá teve q ouvir”. Prefiro não saber sobre “a verdades”
de Frota. Por outro lado, sua ignorância é eloquente!
O pensamento de Judith Butler não está acima das
contestações e deve, claro, ser examinado criticamente, mas com honestidade e
respeito, como ela fez, por exemplo, com Simone de Beauvoir, na obra “Problemas de gênero: feminismo
e subversão da identidade”, de 1990. Butler questionou a dicotomia sexo/gênero,
formulada por Beauvoir, marcada pelo dualismo ontológico cartesiano e pelo essencialismo de
gênero, que, entre outras coisas, apontava para a categoria mulher como um
bloco monolítico. O “Segundo Sexo”, de 1949, uma das mais significativas e influentes obras do feminismo do século
XX, distinguiu pela primeira vez a construção do gênero do sexo
dado,
e abriu, com isso, a possibilidade de desmontar a sentença de Freud
de que “a anatomia é destino” e as construções deterministas do século XIX que partiam da biologia
para explicar as desigualdades sociais entre homens e mulheres. Butler reconhece esta valiosa contribuição, mas
entende que ela precisa ser superada, principalmente sua estrutura binaria (homem/mulher, macho/fêmea, masculino/feminino),
para dar lugar às interpretações que sustentam o caráter mais fluido do gênero,
que admitem uma multiplicidade de sujeitos. Em outras palavras, as identidades
de gênero, e as experiências humanas, não cabem e não se esgotam nas categorias
fixas de homem e mulher.
Conchita Wurst.
A obra de Butler, como qualquer outra,
precisa e deve ser questionada. Mas para isso,
é necessário entender o
que ela propõe. É preciso lê-la. Não
tem outra maneira. Questioná-la sem ler o que ela escreveu, e protestar contra,
é a mesma coisa que dizer que odeia jabuticaba, sem nunca ter experimentado, e
tentar convencer os outros de que a fruta não presta. Daí as aberrações: “assassina
de crianças” e “destruidora da família”.
Os que não leram, e não sabem o que Butler pensa,
seguem outros que também não leram. A desinformação faz escola (partidária e doutrinadora) e marcha, orgulhosa da própria
ignorância, pelas ruas do Brasil medieval. “Queimem a bruxa”!
Coerente, irônico e preciso, como sempre. Bravo!
ResponderExcluirAbraços,
Juliano F.
Valeu, Juliano.
ExcluirAquele abraço.
Paulo que delícia ler teu texto! Irônico e provocante! Tu colocou essa característica recorrente dos extremistas atuais... criticar o que não conhecem e pior... terem um rebanho de ovelhas insanas!rs
ResponderExcluirÉ meio clichê isso q vou dizer, mas não vejo mta esperança, além de pensar que é na escola, desde as series iniciais, que a educação sob a perspectiva dos estudos de gênero poderá trazer alguma lucidez.
Grazi, é realmente uma pena essa desinformação toda sobre gênero. A escola perde, nós todos perdemos. Tristes dias!!!
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