PETRALHA,
NEOLIBERAL, ESQUERDOPATA E REAÇA: Os Nomes da Intolerância no Léxico Simplificador
dos Patrulheiros Virtuais.
Em
agosto 1978, depois do lançamento de Chuvas de Verão, Cacá Diegues deu uma
entrevista, publicado no Jornal O Estado de São Paulo, comentando a recepção do
filme e a perseguição sistemática sofrida pelas produções culturais brasileiras
não alinhadas às orientações políticas ditadas pelo partido comunista e pelos
jornalistas engajados (segundo Diegues, a maioria dos críticos de cinema estava
ligada ao PCB). O filme - uma crônica de costumes sobre a amizade, o sexo e o
amor na terceira idade – não agradou aos vigilantes, que exigiam um cinema politizado
(uma arte politicamente correta) de acordo com os cânones estéticos da época. Foi
nesta entrevista que apareceu pela primeira vez a expressão “patrulhas
ideológicas”, para definir a depreciação e desqualificação sistemática que as
obras dos artistas não engajados sofriam. Dois anos depois era publicado o
livro “Patrulhas Ideológicas” (escrito por Heloísa Buarque de Holanda e Carlos
Alberto Pereira). No livro, Cacá Diegues pode definir melhor, numa nova entrevista,
o modo de agir das patrulhas: “O
que existe é um sistema de pressão, abstrato, um sistema de cobrança. É uma
tentativa de codificar toda manifestação cultural brasileira. Tudo o que escapa
a esta codificação será necessariamente patrulhado.” O cineasta exagerou, foi
dramático? Não lidou bem com a frieza da crítica que já o havia detonado em
1976, com Xica da Silva, seu primeiro filme de grande sucesso de público? Pode
ser. Mas nada disso diminui ou invalida o achado da expressão. “Patrulhas ideológicas”
define um modo vigilante de agir politicamente que, em nome de uma ortodoxia, desautoriza
sistematicamente as vozes que desafiam ou estão em desacordo com o cânon.
Nos dias
de hoje a expressão achada por Cacá Diegues faz algum sentido? Deixando para trás
o que era específico daquela época (a ditadura, o conceito de ideologia corrente
e as particularidades do marxismo dos anos 70), eu diria que a noção de “patrulhas
ideológicas”, infelizmente, ainda não perdeu o “prazo de validade”. Os tempos
são outros, os cânones não são mais os mesmos, o partido comunista virou um
fóssil político, mas o “sistema de pressão” e de cobrança e a “tentativa de
codificar”, realinhados no ambiente digital e democrático, estão aí, mais vivos
do que nunca. Grupos de pressão, que agem em bloco, ou indivíduos dotados de
certezas inabaláveis e investidos do poder de julgar implacavelmente a opinião
alheia, pagos ou não, ligados a partidos ou avulso, fazem vigília, farejam as manifestações
discordantes e vasculham o ambiente virtual como cães policiais. Os
patrulheiros, ontem e hoje, estão sempre certos, andam de mãos dadas com a
verdade e sequer cogitam a possibilidade do engano. São portadores de verdades
históricas (ou de um historicismo das conveniências), praticam uma sociologia
das certezas, detém o monopólio das virtudes e navegam conformados no mar imutável
das essências. Quando se enganam jamais se desculpam, afinal, o inimigo – seja
ele de classe ou de fé - se define pela vilania e torpeza de caráter. A fórmula
é mais ou menos a seguinte: a causa é justa, e o inimigo, opaco e equívoco,
induz ao erro. O engano, portanto, é justificável.
O ambiente virtual e as redes sociais, como
territórios da intolerância política, deram novo sentido ao patrulhamento. Tudo
o que se diz, tudo o que se escreve, todo pensamento tornado público é
monitorado e instantaneamente julgado, patrolado e desqualificado. Não parece
um tribunal online? (Tom Zé chamou de “Tribunal do Feicebuqui”) Vivemos numa
espécie de juízo final virtual: os avatares, em eterna vigília, não dormem, não
piscam, sabem de tudo, sabem de todos. Os formadores de opinião, verdadeiras entidades
digitais divinizadas, destilam ressentimentos, exercitam-se em duelos sofísticos
semanticamente acrobáticos, apedrejam impiedosamente os adversários, vomitam mandamentos
políticos, e seus acólitos os divulgam nas redes sociais. (Um tanto dramático,
eu sei. Mas me deem um desconto. Deve ser algum alinhamento planetário mexendo
com a minha Lua).
Vamos ao ponto.
Meu
blog é um armazém virtual para os meus escritos. Nada mais que isso. Embora não
muito lido, se comparado aos blogs mais famosos, recebe uma média diária
considerável de leitores de várias tendências políticas, a julgar pelos
comentários, de várias partes do mundo - o que muito me surpreende - e com
interesses bastante diversos. Não sei exatamente quem são meus leitores. Não
faço questão de saber. Uma parcela deles, no entanto, me deixa bastante
intrigado. São patrulheiros virtuais que frequentam meu armazém para monitorar
o que escrevo e, ocasionalmente, demarcar território e deixar uma ofensa qualquer.
Coleciono xingamentos e tentativas de desqualificação. Às vezes tenho a
impressão que meus textos são mais lidos por pessoas que não gostam do que
escrevo. Não gostam, mas estão sempre ali, anonimamente, policiando,
monitorando, patrulhando. São os fiscais do pensamento alheio.
No
meu armazém, sou o escritor e o faxineiro. Lido com a palavra e com o lixo. Nas
faxinas regulares que faço, para manter a coisa com alguma decência, me deparo
com a palavra-lixo deixada por alguns visitantes. Aí, não tem jeito. Desinfeto
mesmo. Invariavelmente, excluo os xingamentos e os comentários pilantras. Não
vou deixar essa gente fincar suas bandeiras/prisões na minha Lua.
Abaixo, uma pequena amostra do que os
inspetores do pensamento escrevem no blog.
Na
semana passada um rapaz furioso, que se declarou em defesa “do que é certo” e
contra o “conservadorismo espúrio que infesta o Brasil”, deixou um comentário no
post sobre o filme “Juan de los Muertos”. Um comentário a meu respeito, não
sobre o filme. O rapaz não me conhece, e não viu o filme, mas afirmou em caixa
alta, gritando, que eu sou um “fascista direitoso” e um “reaça a serviço do
capital e das elites conservadoras”. No final do comentário, a cereja do bolo
progressista: “Acho que você deveria ir morar em Miami”. Repararam que está na
moda mandar os indesejáveis embora. A turma que se auto define como “de
direita” manda o povo “da esquerda” ir morar em Cuba. Parece que na democracia
dessa gente a melhor saída para resolver as diferenças políticas é uma passagem
só de ida para o opositor. Cuba e Miami são lugares preferenciais, simbolicamente carregados. Em Miami um “fascista direitoso” como eu se sentiria à vontade ao
lado da “burguesia cubana” expatriada que, em conluio com a CIA, tenta
desestabilizar a “democracia cubana”.
Tentei
imaginar o que se passa na cabeça da criatura. Ele deve acreditar piamente que
o meu blog é um blog de fachada mantido por uma espécie obscura de maçonaria anti-progressista
e anti-cubana, sediada quem sabe em Miami, e financiado por dragões ultra
liberais, como o Instituto Milenium, a Editora Abril e o Instituto von Mises.
Deve crer também que recebo incentivos de “burgueses” e banqueiros
inescrupulosos para atacar as forças progressistas. Deve ser isso. A versão
patrulheira do “santo guerreiro”, que percorre as redes sociais e vasculhas os
blogs em busca do “dragão da maldade” – para brincar com as metáforas
glauberianas -, encontrou na minha Lua terreno fértil para exercitar seu ciber-heroísmo-progressista.
Já estou acostumado com este tipo de coisa. Já
fui xingado, anonimamente, de coisa pior. Já insinuaram, por exemplo, que eu
deveria “escrever na Veja”, que sou “um neoliberal desumano” e, acreditem, que
estou “contra o Brasil”. Mas o mais curioso nisso tudo é que tem outra turma,
igualmente exaltada, que diz o contrário. Várias vezes deixaram comentários no
blog me chamando de “petralha”, de “comunista disfarçado” e de “fascista
esquerdopata” (Essa tendência de “patologizar” as orientações políticas dos
outros, como bem disse Cristian Dunker numa polêmica recente, carrega alguma
coisa de “fóbico” e de “francamente não resolvido”). Uma moça bastante irritada
com o post que escrevi sobre “Os esqueletos no armário da Revista Veja”
perguntou se eu era “a favor da ditadura comunista” e me chamou de “esquerdista
intolerante”. No post “A Ressurreição do Tenentismo”, um rapaz, que declarou
ódio ao PT e se disse “honestamente a favor de uma intervenção militar”, me
chamou de “comuna” e de “PeTezinho de merda”. Os anti-petistas se imaginam numa
cruzada moralizadora e redentora pela “salvação do Brasil”. Enxergam comunismo
em tudo e não economizam adjetivos ofensivos para desqualificar o suposto
inimigo. Exibem nas redes sociais um anticomunismo anacônico e esquizofrênico,
de causar vergonha.
Desde
que o PT virou governo, a patrulha não é mais exclusividade das esquerdas. Os
vigilantes “de direita” se espalharam no mundo virtual e, cada vez mais agressivos,
agem como verdadeira polícia do pensamento. Esta turma vê o meu blog, imagino,
como um robô de opinião orientado pelo partido ou como um agente da MAV
(Militância em Ambientes Virtuais) criado para rebater as críticas ao governo (Neste
caso, o destino certo para um “comuna” como eu seria Cuba). Os neopatrulheiros
- macarthistas de ocasião e iletrados barulhentos – manejam um vocabulário
assustadoramente pobre e praticam nas redes sociais um conservadorismo azedo, burro,
que empobrece o cristianismo, que dizem professar, e envergonha o liberalismo,
que julgam seguir. Recomendaria aos vigilantes a leitura de José Guilherme Merquior
(De Praga à paris, quem sabe), de Hayek (O Caminho da Servidão), de Stuart Mill
(Ensaio sobre a Liberdade), mas suspeito que estaria jogando pérolas aos
porcos.
Atribuo
a ambivalência dos comentários à polarização política dos últimos anos no
Brasil e a incapacidade crônica de ler de algumas pessoas. Num ambiente de
polarização ideológica se você não se define clara e inequivocamente em favor
de um dos lados (levantar bandeira mesmo), você vira alvo dos dois lados. O
rapaz que me chamou de “fascista direitoso” terminou o comentário perguntando:
“e aí fascista tá torcendo contra o Brasil na Copa?” (risos). Olhei para
bandeirinha que pendurei em casa, do lado de dentro, e lembrei-me da Copa de
82. Se este rapaz vivesse naqueles dias,
certamente estaria torcendo contra o Brasil, seguindo a tendência de boa parte
da esquerda da época, que torcia pela URSS, do grande Dasayev, porque uma
vitória do Brasil favoreceria a ditadura militar. A vitória da URSS significava
a vitória do socialismo. As criaturas estabelecem uma relação mecânica e
reducionista entre futebol e política, como se o esporte fosse um mero reflexo dos
interesses políticos. Vem daí o uso deslocado do conceito romano da “política do
pão e circo” (panis et circenses), para
caracterizar o futebol como um instrumento de “manipulação das massas” e, por
tabelinha, imbecilizar os apreciadores do esporte. Os usos do futebol como
estratégia política e as relações/interações entre futebol e política, bastante
conhecidas e estudadas, não fazem do esporte um acessório de luxo dos arranjos
políticos. No senso comum, este tipo de associação é responsável por aberrações
do tipo: “a copa foi comprada”. Na cabeça ilumi(nada) do sujeito que me chamou
de “fascista”, eu torceria contra o Brasil porque, segundo sua ótica, sou
anti-petista. Para ti, camarada, nada de pão e circo. Teu metabolismo não seria
capaz de digerir tal combinação. Recomendo grama, em grandes quantidades, e um daqueles
manuais de doutrinação escrito por V. Kachine e N. Tcherkassov.
Na semana passada alguém deixou um comentário
no post que escrevi sobre Eduardo Campos. O “leitor” não gostou do texto (eu
também não gostei muito) e esbravejou: “só pode que tu também é contra o Brasil
e a favor da canalha petista”. A grosseira polarização resume-se a estar contra
ou a favor do PT. Para a turma que serrou fileira nas hostes petistas, quem se
manifesta contra o governo ou o partido está contra o Brasil. Para a turma que
odeia o PT, quem apoia o partido também está inapelavelmente contra o Brasil.
De um lado a crença de que o PT é o único caminho, de que não existe alternativa
para o país fora do universo político dito “progressista”. Quem não está de
acordo ou ousa fazer críticas à ortodoxia governista é atropelado pela
vigilância política, desacreditado e lançado no pântano nebuloso do
conservadorismo e da entidade fantasmagórica e perversa que eles chamam de “neoliberalismo”.
De outro, a certeza de que com o PT o Brasil caminha rumo a cubanização ou a
venezualização, o que, na linguagem desta gente, quer dizer uma forma decadente
e anacrônica de (acreditem!) comunismo. Os mais exaltados e delirantes falam em
“ditadura comunista”!
As rotulações seguem a risca o esquema toscamente
binário que rege o universo mental dessas pessoas. Entrar no blog e deixar um
comentário acusando o blogueiro de “petralha” ou de “reaça” é um ato heroico, um
gozo purificador, verdadeiro descarrego de consciência cívica das milícias
virtuais. É a masturbação ideológica deles(as).
Parabéns pelo texto, já fui seu aluno, mais não é por isso que entro em seu blog, e sim pelas provocações bem escrita sobre assuntos que gosto (como o cinema por exemplo gostei muito do texto de "Nollywood") fiquei um pouco chocado saber que seu blog recebe muitas críticas, não entendo por que devemos fincar uma bandeira ao nosso lado pra mostrar "quem somos?" ou ideologias que seguimos (ou não podemos criar as nossas?) mais pondero aqui o gosto de ler seus textos, pode ser pra eles que é "um ato heroico", eu vejo de total desinteligência.
ResponderExcluirValeu, Tiago. Tudo bem contigo?
ResponderExcluirPois é, os patrulheiros estão aí.
Abraço.
Paulo, não tenha dúvida que os críticos não são a maioria dos seus leitores. Apenas fazem parte da patrulha ideológica que faz mais barulho que seus leitores admiradores. Abraço
ResponderExcluirProfessor, os que te criticam destas maneiras certamente não tiveram o privilégio de assistir uma de suas aulas ou, se tiveram, não prestaram atenção! Abraço
ResponderExcluirVc é o Tom Zé?
ResponderExcluirE você é o Dr. Fausto?
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