NEM
“REVOLUÇÃO”, NEM “MOVIMENTO DE 1964”: FOI G O L P E.
A situação política do Brasil é preocupante.
Mais uma vez, em nome da democracia, atropelam-na sem constrangimentos. Fala-se
abertamente no fechamento do Congresso e do STF e se referem ao tempo da
ditadura como uma idade heroica e de ouro, quando o suposto perigo comunista
foi varrido do Brasil. O presidente da república, o chanceler e
um ministro do STF declararam recentemente que a tomada do poder pelos
militares em março de 1964 não foi golpe. As declarações foram públicas e
sintonizadas com o relativismo histórico peculiar (porque meramente
opinativo) de setores da classe média, do empresariado e de alas das forças
armadas, que se populariza no Brasil do WhatsApp.
Não sou avesso às revisões históricas,
muito menos à reformulação ou ao questionamento dos conceitos e noções que
explicam acontecimentos do passado. Pelo contrário. As demandas e as novas
perspectivas do presente exigem dos historiadores e dos cientistas sociais, de
tempos em tempos, uma reavaliação rigorosa dos seus pressupostos, categorias e
a proposição de novos ângulos de observação que nos permitam um olhar mais
amplo e matizado sobre o passado. Sem isso, corremos o risco de naturalizar
conceitos e absolutizar certas interpretações. Revisão, no entanto, não pode
ser confundida com relativismo conveniente. É preciso ter muito cuidado,
especialmente quando o tema revisto mexe com questões ainda muito vivas na
sociedade brasileira, como o golpe de 64 e a subsequente ditadura
civil-militar. Opinar irresponsavelmente para plateias volúveis e leitores
desinformados sobre assuntos delicados é colocar a bola na marca do pênalti
para aventureiros oportunistas e milícias digitais.
“Movimento
de 1964”
Em outubro de 2018, numa palestra na
Faculdade de Direito da USP sobre os 30 anos da Constituição de 1988, o
ministro do STF, Dias Toffoli, expôs sua mais recente convicção: “Hoje, não me
refiro nem mais a golpe nem a revolução. Me refiro à movimento de
1964”.
Toffoli não detalhou nem fundamentou as razões da mudança de
posição. Apenas disparou-a na direção da plateia. Neste caso, estamos diante de
um relativismo inconsequente, baseado no mero achismo. Não se trata de uma
revisão séria do passado, com base em pesquisas e estudos.
Uma afirmação como esta - no momento delicado que estamos
vivendo, com a ascensão política de militares abertamente identificados com a
intervenção de 1964, apoiados por setores expressivos da classe média e do
empresariado - pode ser lida de duas maneiras: Toffoli está sendo ingenuamente
inoportuno e irresponsável (o que me parece mais provável) ou manifesta uma
tendência política em conformidade com o conservadorismo antidemocrático em
voga.
O ministro atribui a mudança de perspectiva ao aprendizado
que teve com o ministro da Justiça do governo Temer, Torquato Jardim. No caso
do Torquato, o emprego da terminologia “movimento” tem um que de auto-absolvição.
Ele exerceu inúmeros cargos e funções nas décadas de 1970 e 1980, sob os
governos Médici, Geisel e Figueiredo. Entre outras ocupações, foi chefe do
Gabinete Civil da Presidência da República durante o governo do general João Figueiredo. Assumir que houve
um golpe que resultou numa ditadura é admitir que prestou serviços importantes
para um regime ilegítimo e anticonstitucional.
Ainda que entendamos que se trata apenas de uma visão
(inoportuna) do ministro sobre os acontecimentos, a situação é mais delicada. A
posição que ocupa exige dele mais cuidado com certas afirmações e um olhar mais
acurado sobre o passado recente. Na sequência do discurso, Toffoli detalhou um
pouco mais o argumento: “Os militares foram um instrumento de intervenção. Se algum erro cometeram foi de, ao
invés de serem o [poder] moderador, que, em outros momentos da história,
interveio e saiu, eles acabaram optando por ficar, e o desgaste de toda a
legitimidade desse período acabou recaindo sobre essa importante instituição
nacional que são as Forças Armadas, também responsáveis pela nossa unidade
nacional.”
“Se algum erro
cometeram”, ministro? O senhor tem alguma dúvida? E o erro, se é que foi
cometido, foi o de “ficar” no comando político do país? Só isso? A tomada do
poder pela força das armas foi acertada? A violência de estado, a derrubada de
um presidente democraticamente eleito, as perseguições políticas, a censura, os
expurgos das instituições, as torturas, nada disso, na sua avaliação, pode ser
visto como erro?
Chamar o Golpe de “movimento” é descaracterizar a violência
política que o presidiu, atenuar o caráter disruptivo da ação dos militares e relativizar
o ataque à Constituição (Logo ele, um juiz, num evento sobre a Constituição). A
ideia de “movimento” empresta certa legitimidade à intervenção de 64 e tira das
costas dos militares o peso e a responsabilidade pelo que se fez.
A opinião do ministro não espelha um novo olhar, que nos
ajuda a entender melhor o que aconteceu há 50 anos. Não conheço as intenções do
ministro, mas a declaração, da maneira como foi dada, e observando o momento
político do país, acaba por reforçar os argumentos em favor de uma nova
intervenção das forças armadas. É um flerte público com a indecência.
A terminologia “movimento” absolve os militares e reforça,
mesmo que não seja esta a intenção, a versão de que a intervenção foi
necessária. Aliás, o conteúdo do discurso de Toffoli tem um indisfarçável tom
de absolvição. A ideia de que “os militares foram um instrumento de
intervenção”, sobre os quais recaiu todo o ônus, é quase um pedido de desculpas
às forças armadas por terem sido levadas pela pressão que vinha da sociedade a
intervir e, posteriormente, arcarem sozinhas com a culpa. No limite, o
argumento infantiliza as forças armadas e as transforma num joguete de forças
políticas mais consistentes.
Pare reforçar seu ponto de vista, Toffoli citou o historiador
Daniel Aarão Reis Filho e sugeriu que, na época, tanto a esquerda quanto a
direita conservadora tiveram a conveniência de não assumir seus erros que
antecederam 1964, passando a atribuir os problemas aos militares. De acordo. Mas
isso não é argumento para sustentar que não houve um Golpe.
O apoio que Toffoli foi buscar no Daniel Aarão foi indevido e
equivocado. O próprio historiador o desacreditou. Segundo Aarão: “foi muito
infeliz da parte dele dizer que abandona a terminologia ditadura, que expressa
perfeitamente o estado de exceção que se passou no País, para assumir um outro
conceito. Vindo da parte de um juiz, presidente do STF, é uma coisa que provoca
espanto. Eu estou estarrecido de ver um juiz, que deveria ser o guardião da
lei, relativizando o desrespeito à lei”. Aarão foi ainda mais incisivo:
“Toffoli imagina amaciar a extrema direita com acenos conciliadores”.
A ideia de “movimento” só é possível se considerarmos que houve
manifestações em favor de uma intervenção militar, que levaram ao Golpe e,
consequentemente, à ditadura. Os anos anteriores a 64 foram de fato marcados
por articulações políticas, explicitas e veladas, passeatas e apelos à
intervenção dos quarteis. A confluência destas manifestações, civis e
militares, que poderíamos caracterizar como um movimento, levou ao Golpe. Uma
coisa não elimina a outra. Os termos (movimento e golpe) não são excludentes.
Enfatizar o “movimento” e descaracterizar o golpe, como fez Toffoli, é uma
escolha política desamparada de estudos sérios.
O nome correto, portanto, para a intervenção militar de 64,
com apoio de parte da sociedade civil, é GOLPE. Ainda que o governo do
presidente João Goulart não agradasse aos militares, à classe média, à igreja e
a setores da imprensa e do empresariado, a ação dos militares foi um ataque
direto à democracia e a Constituição. Havia de fato um movimento pela renúncia
ou deposição do presidente, orquestrado pela mídia, principalmente o jornal
carioca Correio da Manhã que, por meio de sucessivos editoriais às vésperas do
golpe, atacando o governo de Jango, construiu o caminho para a legitimidade da
ação militar. Num dos editoriais mais famosos e inflamados, intitulado “Basta”,
estampava-se o apelo: “O Brasil já sofreu demasiado com o atual governo. Agora
basta!” De mãos dadas com o jornalismo lacerdista, a igreja católica, na linha
de frente do golpismo, distribuía livrinhos anticomunistas nas missas,
demonizando a esquerda e alertando para o perigo que estava a caminho. Este
material, que circulou fartamente em todo o Brasil, muito contribuiu para a
histeria anticomunista que precedeu e, em larga medida, legitimou socialmente o
Golpe. Mas nada disso autoriza dizer que não houve um Golpe. Jango fora eleito
democraticamente pelo voto popular e ocupava a cadeira presidencial, conforme
mandava a Constituição, por conta da renúncia de Jânio Quadros. Depor o seu
governo sem um fundamento constitucional foi um Golpe de Estado. E não se trata
de simpatia ou antipatia pelo Jango. Trata-se de precisão conceitual e da
utilização da terminologia correta, do ponto de vista da ciência política. Se o
governo desagradava tanto, havia uma solução democrática para “depô-lo”: as
eleições presidências marcadas para 1965.
Norberto Bobbio, filósofo político e historiador do
pensamento político, defensor da democracia social liberal, crítico de Marx, do
bolchevismo e do fascismo, nos ajuda a colocar os pingos nos is. “Na
maioria dos casos”, diz Bobbio, “o Golpe de Estado moderno consiste em
apoderar-se, por parte de um grupo de militares ou das forças armadas em seu
conjunto, dos órgãos e das atribuições do poder político, mediante uma ação repentina,
que tenha uma certa margem de surpresa e reduza, de maneira geral, a violência
intrínseca do ato com o mínimo emprego possível de violência física”. O golpe
militar, ou pronunciamento, segundo palavra cunhada pela tradição espanhola,
tornou-se, na segunda metade do século XX, a forma mais frequente do Golpe de
Estado.
O que aconteceu em março de 64 foi um golpe perpetrado pela
direita golpista, que no Brasil nunca conviveu bem com a diferença política.
Direita e esquerda, naquele contexto, não eram nada democráticas. A diferença é
que a esquerda não tinha força e não tinha base popular para uma revolução do
tipo socialista. Politicamente, a esquerda era pouco expressiva, embora
bastante ativa nos meios estudantil, sindical e cultural. A suposta
esquerdização do governo Jango foi a desculpa (ou farsa) que as forças
golpistas ofereceram para justificar uma intervenção para “salvar” o Brasil do
perigo comunista (naquele momento, representado pelas reformas de base do
governo Jango). Um parêntese (Sobre a acusação falaciosa de que Jango
transformaria o Brasil numa nova Cuba, vale a pena ler as declarações de sua
esposa, Maria Thereza Goulart, numa entrevista à Paula
Sperb, da Folha de São Paulo. Em resposta
à pergunta sobre a implantação de um regime comunista no Brasil, Maria Thereza
respondeu: “Imagina, comunista! Nunca passou pela cabeça dele. Ele vem de uma
família extremamente católica, uma família bonita, dedicada, muito católicos.
Era uma coisa que não tinha explicação. Não tinha nada de comunista.” Jango era
um rico fazendeiro, nacionalista e desenvolvimentistas, que, a exemplo de
outros políticos da época, como JK, recebeu apoio dos comunistas. No comício
das reformas de base, Maria Tereza, quando viu as bandeiras vermelhas na
multidão, disse ao então ministro da educação Darcy Ribeiro: “São muitas
bandeiras vermelhas. Isso não é coisa boa!”).
No
Brasil de 64 e no Brasil de hoje, a tática empregada pela direita farisaica é a
mesma: acusar de comunistas e esquerdistas todos os que discordam de suas
visões conspiratórias e se opõe ao seu projeto fascista e autoritário.
Menos de um mês depois do discurso pronunciado na USP,
Toffoli tropeçou na própria fala. Em reação ao vídeo desastroso de Eduardo
Bolsonaro, sugerindo que um soldado e um cabo eram suficientes para fechar o
STF, disse que “atacar o judiciário é atacar democracia”. De acordo, ministro. Então
não custa lembrar que o ataque à democracia promovido pelo golpe de 64 também
atingiu duramente o STF. Dois casos se tornaram celebres e emblemáticos: “o
caso das chaves” e o da “lei da mordaça”. Assim que tomou posse, Castelo Branco
fez uma visita de “cortesia” ao STF. Era uma tentativa de enquadrar o Tribunal
nas diretrizes e orientações “da revolução”. A resposta do ministro Álvaro
Ribeiro da Costa, presidente do STF, foi corajosa e exemplar. Disse que o
Tribunal não deveria seguir nenhuma ideologia revolucionária, sobretudo um
golpe. Diante da resposta de Castelo Branco de que quem mandava era o
Executivo, Ribeiro da Costa retrucou que se algum ministro fosse cassado, ele
fecharia as portas do Tribunal e entregaria as chaves ao porteiro do palácio.
As coisas não ficaram apenas nesta troca dura de palavras entre o ministro e o
presidente. Castelo Branco não cassou os ministrou, mas, por meio do AI2, em
outubro de 1965, aumentos de 11 para 16 o número de magistrados e nomeou 5
ministros, alinhados com o regime. Pretendia com este gesto ter a maioria dos
juízes a favor do governo. Em 1967 nomeou Adaucto Lucio Cardoso, para ocupar a
vaga deixada pela aposentadoria de Ribeiro da Costa. Mas o tiro saiu pela
culatra. No governo Médici, foi aprovado pelo Congresso o decreto-lei 1.077, de
março de 1971, que trazia para o ordenamento jurídico brasileiro a censura
prévia de qualquer livro que se desejasse publicar (A fiscalização dos escritos
ficaria a cargo da Polícia Federal). O decreto, no entender da oposição, e do
MDB, era inconstitucional e atentava contra a liberdade de expressão. Muito
apropriadamente, a norma ficou conhecida como “lei da mordaça”. Acionado, o STF
informou que não se intrometeria nos assuntos da “revolução”. Na sessão que
examinaria a reclamação da oposição, Adaucto Cardoso, o ministro indicado por
Castelo Branco, levantou-se inconformado, tirou a toga e anunciou que não
voltaria mais ao Tribunal. Em seguida, o ministro solicitou a aposentadoria.
Adaucto dava uma lição de autonomia e inconformismo aos seus pares que, se
comportando como rebanho ilustrado, abaixavam docilmente a cabeça para a
truculência da ditadura. O STF, criado para ser o guardião da Constituição,
havia se tornado um “enfeite institucional” (expressão utilizada por Ivan
Furman), inútil e indecoroso. Toffoli deveria se espelhar nas lições de
independência de Álvaro Ribeiro e Adaucto Cardoso e não nos ensinamentos duvidosos
de Torquato Jardim.
A “revolução
de 64”.
Tão equivocado quanto o conceito de “movimento” é o de “revolução”.
Os militares golpistas chamavam, e continuam chamando, o golpe de 64 de “revolução
redentora”, ou contrarrevolução, argumentado que havia uma revolução socialista
em curso. Apoiadores civis, como Roberto Marinho, também denominavam o golpe de
revolução. No editorial do jornal O Globo, em março de 1984, por ocasião dos 20
anos do golpe, o jornalista deixou o seguinte testemunho: “Participamos da
Revolução de 1964, identificados com os anseios nacionais de preservação das instituições
democráticas, ameaçadas pela radicalização ideológica, greves, desordem social
e corrupção generalizada.”]
Em nenhum sentido podemos afirmar, a não ser por
conveniência, que os militares, apoiados pelos civis, foram protagonistas de
uma “revolução”. Nem o movimento que levou ao golpe nem os desdobramentos do
golpe foram revolucionários. Um golpe na democracia, que encurralou o país numa
ditadura vergonhosa e criminosa que durou 21 anos, não pode ser chamado de
revolução. A bem da verdade, o Brasil retrocedeu, tropeçou na democracia e
deixou para o futuro, para a nossa cultura política, uma herança de violência,
autoritarismo e impunidade com a qual nos defrontamos hoje (O bolsonarismo é
herdeiro do que de pior o golpe de 64 legou para o Brasil). Chamar o golpe de
64 de revolução, a exemplo do que se fez com o golpe de 1930, consagrado até
hoje na historiografia como “Revolução de 1930”, é uma tentativa de conferir legitimidade
à ação truculenta de derrubada de governos pela força das armas, característico
da instabilidade política brasileira (Mas é importante destacar que o golpe de
1930, diferentemente do golpe de 64, abriu caminho para mudanças sociais e
políticas significativas no Brasil. A legislação trabalhista, o projeto
nacional baseado na industrialização e o sepultamento das práticas políticas da
república oligárquica, são alguns exemplos das transformações, revolucionárias
do ponto vista político e sociológico, que modernizaram o país, ainda que de
forma autoritária).
O argumento da contrarrevolução é ainda mais vazio. Nem de
longe havia uma revolução em curso no Brasil, para admitir uma
contrarrevolução. As reformas de base propostas pelo governo de João Goulart
visavam o desenvolvimento de um capitalismo nacional autônomo. O apoio que
Jango recebia de parte da esquerda não fazia do seu governo um governo com tendências
socialistas. Era um apoio estratégico que tinha a ver com as expectativas da
esquerda, não de Jango. Além disso, as forças de esquerda no Brasil, naquele
momento, não tinham a força e a articulação que a cabeça conspiratória dos
militares e dos grupos civis anticomunistas imaginavam. Não passava de paranoia
anticomunista. A mesma paranoia que vimos renascer recentemente e que embalou a
eleição de Jair Bolsonaro. Naquela época, a estrutura de poder mundial conhecida
como guerra fria explicava, de alguma forma, a histeria anticomunista. Hoje,
não passa de conspiracionismo requintado, de charlatanice. Para o delírio dos
fanáticos, vamos lembrar a ironia mordaz do velho Marx: “Hegel observa em uma de suas obras que todos os
fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por
assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia,
a segunda como farsa”. Pegando carona na sacada de Marx, e modelando-a à nossa tragicômica
paróquia, diria que farsescamente o
presidente Jair Bolsonaro declarou, às vésperas do 55º aniversário do golpe, que
o exército deveria comemorar a tragédia
política de 64.
Otávio Rêgo Barros, porta voz da
presidência, explicou a posição do presidente: “O presidente não considera 31
de março de 1964 o golpe militar. Ele considera que a sociedade reunida, e
percebendo o perigo que o país estava vivenciando naquele momento, juntou-se
civis e militares e nós conseguimos recuperar e recolocar o nosso país num rumo
que, salvo melhor juízo, se isso não tivesse ocorrido, hoje nós estaríamos
tendo algum tipo de governo aqui que não seria bom para ninguém. E o presidente
já determinou ao Ministério da Defesa que faça as comemorações devidas com
relação a 31 de março de 1964, incluindo uma Ordem do Dia, patrocinada pelo
Ministério da Defesa, que já foi aprovada pelo nosso presidente”.
Nenhuma surpresa em relação a Bolsonaro. Se até o presidente
do STF suavizou a intervenção dos quartéis em 64, o que esperar de um
presidente da república que se declara publicamente admirador do coronel Ustra,
um torturador covarde que foi condenado duas vezes pela justiça brasileira!
Sob o efeito da declaração da presidência, o vice-presidente
e um empresário bolsonarista realimentaram a retórica anticomunista. Hamilton
Mourão disse que as celebrações do 31 de março deveriam ter um tom conciliador.
“O que vai ser feito em termos de ordem do dia vai ser algo muito conciliador,
colocando que as Forças Armadas combateram o nazi-fascismo, combateram o
comunismo e isso é passado, faz parte da história”. Luciano Hang, dono da
Havan, costuma dizer que se lançou nas redes sociais para evitar que o Brasil
se torne um país comunista/socialista. A fala do Mourão é previsível, e o tom moderado
e conciliador, adotado já nos primeiros dias do governo, é o de quem sabe, ou
presume, que a presidência pode, mais cedo ou mais tarde, cair no seu colo. Mourão
é um defensor da velha guarda dos militares de 64, e já foi mais inflamado nas
suas declarações. Na condição de vice-presidente, atento aos efeitos políticos
da polarização, que tornou Bolsonaro refém das próprias falas, soube adaptar
seu discurso aos novos tempos. O caso de Luciano Hang é um pouco mais sério. O
empresário, popular nas mídias sociais, se julga numa cruzada heroica, do bem contra
o mal, típica dos fanáticos maniqueístas, contra o fantasma do comunismo, tema
que ele demonstra desconhecer profundamente. Popular e desinformado, misto de
empresário bem-sucedido com macartista fora de época, tornou-se uma
celebridade proferindo discursos rasos e espalhando bobagens nas redes sociais.
Hang é figura emblemática do bolsonarismo. No twitter, o empresário
manifestou-se pela comemoração das vitórias contra o comunismo, em 1964 e em
2018, e negou que tenha havido um golpe em 64: “Jamais o Brasil irá reconhecer
o que nunca ouve. Sem os militares o país seria uma Cuba desde 1964. Viva os
militares que venceram os guerrilheiros”. Daqui alguns anos, quando estes
tempos tiverem passado, ele será lembrado como figura caricata e folclórica do
conservadorismo truculento, autoritário e vazio de ideias que ameaçou a jovem
democracia brasileira.
A mais recente declaração de que não houve golpe em 1964 foi
a do chanceler Ernesto Araújo. Em audiência na Comissão de Relações Exteriores
e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, em 27 de março de 2019, em resposta
à pergunta sobre à orientação dada pelo presidente Jair Bolsonaro para que
os quartéis celebrassem o 31 de
março, Araújo disse: “Vossa Excelência
me perguntava se eu considero 1964 um golpe. Eu não considero um golpe.
Considero que foi um movimento necessário para que o Brasil não se tornasse uma
ditadura. Não tenho a menor dúvida disso. Essa é minha leitura da história”.
Araújo, como alguns militares, tem uma visão salvacionista e
patriótica da intervenção militar. Mas o curioso é que o “movimento” que
deveria salvar o Brasil de uma ditadura, meteu o país numa ditadura que durou 21
anos. A “leitura da história” do ministro não passa de conveniência que ajusta
o passado histórico às suas convicções políticas. É uma simples rejeição do que
ele, equivocadamente, considera ser uma interpretação de esquerda.
Para o chanceler, e para esta turma patriótica que quer
celebrar o 31 de março, ditadura mesmo só em Cuba e na Venezuela. É uma
“leitura da história” bem conveniente, com dois pesos e duas medidas, avaliada
com base numa moral dupla (O que vale lá para fora não vale aqui dentro).
Deixo com os ministros do STF e das Relações Exteriores, e
com os “patriotas” de plantão, convertidos ao bolsonarismo, a lição de Rui
Barbosa, que não praticava a moral dupla. Entre 1893 e 1895, Rui combateu energicamente
o militarismo dos tempos de Floriano Peixoto. Numa polêmica com o militar
autoproclamado “patriota” Carlos Sampaio, Rui lembrou que: “todos os violentos
fizeram sempre, a seu favor, monopólio do patriotismo. Todos eles têm o
privilégio tradicional de patriotas por decreto próprio e patriotas com
exclusão dos que com eles não militam”. Como não era um patriota de ocasião, nem
adulador de ditadores, Rui teve que exilar-se em Buenos Aires por dois anos,
até o furacão florianista passar.
Rui não era contra o exército. Era contra a presença do
exército na política. E chamou esta intromissão de militarismo. Para
Rui, analogamente, “o militarismo está para o exército, como o clericalismo para a
religião, como o mercantilismo para o comércio, como o cesarismo para a monarquia, como o demagogismo para o
governo popular, como o egoísmo para o eu”.
Nossa república nasceu sob o
signo do militarismo. Foi o nosso pecado
político original. A sucessão de golpes perpetrados pelos militares (1889,
1930, 1937 e 1964) parece não deixar dúvidas de que o militarismo paira
sobre a república como uma sombra tutelar. Por isso, nos
dias que correm, com o STF na mira do conservadorismo bolsonarista, que marcha
“patrioticamente” pelas ruas, aliado à pior linhagem evangélica e aos setores
golpistas e militaristas do exército, é bom tomar cuidado com o que se diz
sobre o passado. Absolver o golpismo da forma como Toffoli fez abre uma porta
perigosa para certos “movimentos” do presente. Militares pouco afeitos à
democracia, que acumulam cargos no governo, podem se sentir muito à vontade e
encorajados a manifestar seu desprezo pelas instituições democráticas (Como fez
recentemente o general Heleno, mandando um “foda-se” ao Congresso).
Em certos momentos, senhor ministro, guardar silêncio é uma
grande virtude. Declarações inconsequentes e infundadas ajudam a normalizar o
absurdo e autorizam pronunciamentos, como o do filho do presidente, que
ressuscitam instrumentos pavorosos, como o AI5, para ameaçar e silenciar a
oposição.
Mensagem compartilhada pela rede bolsonarista do WhatApp.
Bibliografia
BOBBIO, Norberto. Dicionário de
Política. 2. ed. Brasília: UNB, 1986.
CHAGAS, Carlos. A Ditadura
Militar e os Golpes Dentro do Golpe (1964-1969). Editora Record, 2014.
D´ARAUJO, Maria Celina; SOARES,
Gláucio Ary Dillon; CASTRO, Célio. Visões do golpe: a memória militar sobre
1964. Relume Dumará, 1994.
FICO, Carlos. Além do golpe:
versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Editora Record,
2004.
FILHO,
Daniel Aarão. Entrevista ao El País. Neste endereço: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/02/politica/1538497133_463693.html
MACHADO,
Juremir. 1964: golpe midiático-civil-militar. Editora Sulina, 2014.
MARINHO,
Roberto. Editorial do jornal O Globo de 1984.
RECONDO, Felipe. Tanques e Togas:
o STF e a ditadura militar. São Paulo: Cia das Letras, 2018.
Lucidez e análise histórica impecável, chega a dar um arrepio na espinha dorsal de um país tão precariamente governado.
ResponderExcluirTristes tempos, Ana.
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