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terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

A CUBA MÍTICA, A CUBA OFICIAL E A CUBA REAL.



 A CUBA MÍTICA, A CUBA OFICIAL E A CUBA REAL.

Mais um post sobre Yoani Sánchez? Sim e não. A personagem Yoani, e as reações que ela desperta, oferecem boas entradas para discutir o que de fato me interessa: o encantamento da intelectualidade de esquerda com ditaduras cinquentenárias. Os sujeitos são críticos ferozes das ditaduras de direta, da “ditadura do capital”, do silenciamento de Julian Assange, do imperialismo, do monopólio dos meios de comunicação (até aí eu estou com eles), mas não conseguem escrever uma única linha crítica em relação às ditaduras de esquerda. O que acontece com esta gente? Os que conseguem escapar da cegueira ideológica são acusados de traidores, de estar de conluio com a tal “mídia golpista” e com os interesses norte-americanos. Tenham paciência. O silêncio das esquerdas sobre o regime castrista, já escrevi sobre isto, esta abrindo espaço para a velha direita (que no passado apoiou a ditadura militar no Brasil, que sempre apoia a política externa dos Estados Unidos e a ação do estado de Israel no Oriente Médio) pousar de defensora das liberdades democráticas. Ora bolas, Yoani Sánchez deveria ter a admiração do pessoal da esquerda. Mas não. Os heróis da esquerda vestem fardas militares, apegam-se desavergonhadamente ao poder e despejam slogans e jargões batidos na mídia “alternativa”. Enquanto isso, a direita, que outrora adulava generais, enche a boca para falar de direitos humanos e liberdade de expressão. 

Mas Paulo, você tem que entender que Cuba é uma democracia que funciona num outro registro. É a democracia popular em ação. Não, eu não tenho que entender nada disso. Não gastem tempo tentando me convencer de que um regime comandado por um grupo, liderado pelos irmãos Castro há mais de 50 anos, que mantém uma sociedade inteira sob tutela estatal, pode ser chamado de democracia. 

Para Yoani Sánchez existe uma Cuba idealizada pelos simpatizantes das ideias de esquerda e dos ideais socialistas e uma Cuba real onde vivem os cidadãos cubanos (Ela não disse exatamente com estas palavras). Vou tomar a liberdade de explorar esta ideia, livremente inspirado na entrevista que a blogueira concedeu no dia 23 de fevereiro a Branca Nunes e Duda Teixeira. Em seguida reproduzo a parte da entrevista que interessa. 

A Cuba idealizada, eu diria mítica, é uma espécie de ilha da fantasia social. Ela representa a projeção das esperanças e dos sonhos de um mundo mais justo e mais humano. A Cuba dos sonhos, apesar de alguns “desajustes”, seria um oásis social na desértica ordem capitalista globalizada. Os “desajustes” não seriam de responsabilidade da elite governante, mas do bloqueio mantido há décadas pelos Estados Unidos. Na Cuba ideal, a saúde e a educação são gratuitas e de ótima qualidade. Não existe miséria e o governo é o interprete das aspirações coletivas. Mesmo há mais de 50 anos no poder, os irmãos Castro, de acordo com os admiradores, representam a “vontade popular” (Que mania que esta gente tem de achar que entende e representa a “vontade popular”). Não estou debochando daqueles que admiram Fidel e defendem o regime cubano. Acredito de verdade que, tirando os ideólogos e os encrenqueiros profissionais, as projeções sobre Cuba traduzem a grandeza de espírito daqueles que acreditam. Tenho vários amigos muito próximos que admiram e defendem o regime cubano. Embora eu não tenha nenhuma simpatia e nenhuma ilusão em relação a Cuba castrista, acredito na honestidade, na boa fé e nas intenções dos meus amigos. E, em certo sentido, entendo a hostilidade e a enorme desconfiança que Yoani desperta, pois ela calcina o sonho da revolução que construiu um caminho alternativo para a humanidade. Os admiradores da Cuba mítica, em geral, não conhecem o país. Eles acreditam num ideal com o qual se relacionam à distância. A fé nos faz crer naquilo que não vemos. Alguns passaram alguns dias por lá em viagem de turismo. Foram para ver o que queriam ver, e viram. 

A Cuba real, onde vivem Yoani Sánchez e os cubanos, e onde não vivem os admiradores do regime, é bem diferente. Calma. Não vou me valer do velho argumento da direita leviana e mandar os admiradores de Cuba morar lá. Argumentos como este são para aqueles que não querem o debate. Querem impor um ponto de vista a força exatamente como aqueles que acusam, sem provas, Yoani de ser uma mercenária. Nunca fui a Cuba. Leio blogs de cubanos que vivem em Cuba e faço os meus filtros. Yoani nos fala sobre sua experiência em Cuba, sobre sua vida sob o regime castrista. Vejo as crônicas do Generación Y como UM ponto de vista sobre a realidade cubana. Um ponto de vista que me agrada, e com o qual me identifico politicamente e esteticamente. Não vou escrever sobre a Cuba real. Não teria condições. Você não precisa necessariamente conhecer um país para formar uma opinião sobre o sistema político e social. Mas acho melhor deixar isso para quem vive lá. Na parte da entrevista que reproduzo mais a frente Yoani nos deixa a sua impressão sobre a Cuba em que vive.
No filme Guantanamera (1995), de Tomás Gutiérrez Alea e Juan Carlos Tabío, realizado durante o chamado “Período Especial”, a Cuba real aparece com a graça, a leveza e a inventividade dos cativantes personagens que improvisam a vida e a sobrevivência no dia a dia e superam as dificuldades criadas pela inoperância do regime. O taxista (Tony) que leva os familiares da morta (Yoyita) de Guantánamo para ser sepultada em Havana é a melhor expressão da realidade cubana que teima em existir apesar dos equívocos e dos fracassos da planificação econômica. Tony, que compra e transporta mercadorias clandestinamente de um lugar para outro da ilha, é uma espécie de agente do capitalismo informal que viceja em Cuba.

Além da Cuba mítica (que sobrevive nos sonhos da esquerda romântica) e da Cuba real (onde vivem os cubanos), sugiro uma terceira: a Cuba oficial. Esta versão pode ser lida no Gramna e vista nos outdoors, nos cartazes e na propaganda oficial exageradamente espalhada pela ilha (ver o post Hannah Arendt em Cuba). A propaganda oficial se encarrega de construir a imagem da sociedade ideal, que equacionou as grandes contradições enfrentadas pelas sociedades capitalistas, e aposta na credulidade dos admiradores, que nunca questionam os números apresentados pelo governo nem os dados de instituições internacionais (não quando elas falam favoravelmente de Cuba).

A Cuba oficial também pode ser vista no filme Guantanamera. Ela esta representada pelo personagem Adolfo, um burocrata fracassado do regime, arrogante e frio, que caiu em descrédito e ocupa provisoriamente a função de agente funerário estatal. Adolfo cria um plano mirabolante, mas detalhadamente planejado, de transporte dos mortos para reduzir gastos, enquanto sonha com o reconhecimento e com a volta por cima. Na Cuba em que ele vive o importante são as estatísticas e as cifras, orgulhosamente anunciadas pela rádio nacional. Diferentemente do taxista, que representa o improviso e o vigor da economia informal, Adolfo representa a oficialidade do regime, o socialismo decadente e a planificação ineficiente.

Antes de deixá-los com a entrevista, comento rapidamente o lamentável texto de Beto Almeida, publicado no portal Carta Maior. Para o jornalista, Yoani é uma jogada da diplomacia de Washington para desestabilizar o governo cubano. Fica evidente que ele nunca leu os textos da blogueira. Nem precisa, ele já sabe, sem ler, o que ela representa. Já tem opinião mais do que formada. Para que ler se não é o debate de ideias que ele quer? Segundo o jornalista, Yoani recebe instruções e orientações dos Estados Unidos para dizer isto ou aquilo, como no caso do bloqueio. Yoani sempre condenou o bloqueio (e o uso que o regime cubano faz dele). Mas para Beto Almeida ela foi orientada, neste momento em que o bloqueio “recebe múltiplas condenações da ONU”, a assumir um tom crítico. Ora, quem acompanha os textos de Yoani sabe que ela condena o bloqueio. Mas ela não fica só nisso. Ele condena, sobretudo, o uso que o governo cubano faz do bloqueio para manter o regime obsoleto e camuflar seus fracassos. Segue um trechinho de uma de suas críticas:

“La prolongación por cinco décadas del “bloqueo” ha permitido que cada descalabro que hemos padecido sea explicado a partir de él, justificado con sus efectos. No obstante, su existencia no impide que en las lujosas mansiones de la nomenclatura abunde el whisky, los congeladores estén abarrotados y los autos modernos descansen en los garajes. Para colmo, el cerco económico ha contribuido a alimentar la idea de plaza sitiada, donde discrepar viene a equipararse a un acto de traición. El bloqueo exterior ha robustecido así el bloqueo interior.
Deseo que la votación de hoy en Naciones Unidas sea favorable a quienes deseamos que tal absurdo termine, especialmente a esos que consideramos el fin del embargo como un golpe definitivo al autoritarismo bajo el que vivimos. La delegación oficial, por su parte, lo interpretará de otra manera: aplaudirá satisfecha, declarará que esta constituye “otra victoria de la Revolución”. En La Habana mientras tanto –lejos de las miradas- ciertos jerarcas celebrarán con Johnny Walker y engullirán algún delicado aperitivo “Made in USA.”

Com o perdão do trocadilho, o argumento de Beto Almeida bloqueia o debate. Ele nega a Yoani a condição de crítica do regime castrista. Ela é uma cartada diplomática dos Estados Unidos e ponto final. Tratando a blogueira como um fantoche dos interesses norte-americanos ele fica desresponsabilizado de debater as ideias e as críticas que ela faz ao regime.  Assim fica fácil. Basta sentar na cadeira, abrir o computador e seguir a cartilha oficial de acusações contra Yoani. Beto Almeida condena “os absurdos ditos por esta personagem.” Mas, inexplicavelmente, não diz quais são os absurdos? Na mesma linha de Beto Almeida, Carlos Latuff, outro bajulador de ditadores, publicou uma charge no Opera Mundi afirmando que Yoani é um boneco de corda dos Estados Unidos.

E que tal uma charge de Carlos Latuff como uma marionete dos irmãos Castro? 

Fiquem agora com uma parte da entrevista de Yoani. Eu gostaria que esta entrevista, seguida de um amplo debate, tivesse sido feita por jornalistas e intelectuais do campo da esquerda e publicada no portal Carta Maior. Lamentavelmente a esquerda esta surda ao que Yoani tem a dizer, e satisfeita com a versão oficial da “blogueira mercenária” difundida pelo governo cubano e pelos “embaixadores” de Cuba espalhados pelo mundo.

Como a senhora viu as manifestações hostis dos últimos dias? Por um lado me sinto feliz por estar num país onde existe liberdade democrática e pluralidade. O problema é quando essas manifestações impedem e boicotam algo tão pacífico quanto a apresentação de um documentário ou uma sessão de autógrafos. Acho contraditório usar um espaço democrático para impedir que alguém se expresse livremente.

A senhora ficou amedrontada? Não, porque conheço esses métodos do meu país: a coação e a difamação. Infelizmente, nos últimos anos vivi situações semelhantes em Havana e outras cidades.

ELES CONHECEM A REALIDADE CUBANA? Lamentavelmente, a maioria não conhece meu país, minha história ou meus textos. Eles acreditam numa Cuba estereotipada, uma ilha de esperança, com liberdade para todos. Cuba não vive um comunismo, mas um capitalismo de estado. Recomendaria que cada um deles morasse um tempo em Cuba para viver na pele a realidade de um mercado racionado, dualidade monetária, falta de liberdade, impossibilidade de se manifestar na rua. Depois desse tempo, duvido que continuem a defender o governo cubano. Tentam me calar porque divulgo uma Cuba menos parecida com o discurso político e mais parecida com a rua. Uma Cuba real.

QUE CUBA É ESSA? Uma Cuba linda, mas difícil. É importante diferenciar Cuba de um partido, de uma ideologia, de um homem. Ela é muito mais do que isso. É um país onde as pessoas precisam esconder suas opiniões com medo de represálias, onde muitos jovens querem emigrar por falta de expectativa, onde o estado tenta controlar todos os detalhes da vida. Onde colocar um prato de comida em cima da mesa significa submergir-se diariamente à ilegalidade para conseguir dinheiro.

Muitas pessoas de vários países costumam elogiar o sistema de saúde e o sistema educacional de Cuba. Esses elogios são pertinentes? Nos anos 70 e 80, Cuba viveu o florescimento de toda a estrutura de saúde e educação. Foram construídas escolas e postos de saúde em toda parte graças aos subsídios soviéticos. Quando a União Soviética caiu, Cuba teve que voltar à realidade econômica. Os professores imigraram por causa dos baixos salários, a qualidade diminuiu e a doutrina aumentou. Exatamente como na área da saúde. Hoje, quando um cubano vai a um hospital, leva um presente para o médico. É um acordo informal para que o atendam bem e rápido. Levam também desinfetante, agulha, algodão, linha para as suturas. O governo usa a existência de um sistema gratuito de saúde e educação para emudecer os críticos, silenciar a população. Não passo todos os dias doente ou aprendendo, quero ler outros jornais, viajar livremente, eleger meu presidente, poder me manifestar, protestar.

Como funciona o sistema de aposentadoria em Cuba? Esse é um dos setores mais pobres. Um aposentado ganha cerca de 15 dólares conversíveis por mês. Como a maioria dos cubanos não vive do salário, mas do que pode roubar do estado dentro do local de trabalho, quando se aposenta ele perde essa fonte de renda. Em Havana é possível ver muitos velhos vendendo cigarros nas ruas. 

Que tipo de racionamento existe em Cuba e como ele funciona? Cada cubano tem direito a uma cota mensal de alimento com preços subvencionados pelo estado. Estudos dizem é possível se alimentar razoavelmente bem por duas semanas com essa cota. Nela existe arroz, açúcar – que por sinal é brasileiro –, um pouco de café, azeite e, às vezes, frango. Para sobreviver a outra metade do mês os cubanos precisam ter os pesos conversíveis. O salário médio na ilha é de 20 dólares. Um litro de leite custa 1,80 dólares. Por isso, as pessoas apelam para a ilegalidade: roubam do estado e vendem no mercado negro, prostituem-se, exercem atividades ilegais, como dirigir taxis ou vender produtos para os turistas. Graças a isso e às remessas enviadas pelos cubanos exilados é possível sobreviver. Uma revolução que rechaçou esses exilados agora depende deles.

A senhora disse que os gritos de ordem dos manifestantes brasileiros já não se escutam mais em Cuba. Qual lhe surpreendeu mais? “Cuba sim, ianques não”, por exemplo. É uma expressão fora de moda. Em Cuba não usamos mais a palavra ianque para os americanos. Ela é usada apenas nos slogans políticos. Falamos yuma, que não pejorativo. Ao contrário, mostra um certo encanto em relação a eles. A propaganda oficial, de ataques aos Estados Unidos e ao imperialismo, criou um sentimento contrário ao esperado. A maioria dos jovens hoje é fascinada pelos americanos. Até acho ruim esse enaltecimento por outro país, mas é uma realidade.

O que os cubanos nascidos depois da revolução acham de figuras como Fidel Castro e Fulgêncio Batista? Nasci em 1975, quando tudo já estava burocraticamente organizado. Na escola, apresentavam Fidel como o pai da pátria. Era ele quem decidia quantas casas seriam construídas, o que iríamos vestir. Na juventude, Fidel passou a ser uma figura distante. Diferente dos nossos pais, que viveram uma fascinação pela figura de Fidel, minha geração é mais crítica. O Fulgêncio Batista era o ditador anterior. A revolução tirou um ditador do poder e se converteu em uma ditadura.

As gerações mais antigas continuam fiéis à revolução? Existem os que creem realmente na revolução, sem máscaras nem oportunismo, um pequeno grupo. Os que já não creem, mas não querem aceitar que se equivocaram, porque entregaram a ela seus melhores anos, e aqueles que deixaram de acreditar no sistema e se transformaram em pessoas críticas. 

Em 2007, o governo brasileiro deportou os boxeadores cubanos Guilhermo Rigondeaux e Erislandy Lara, que tentavam o exílio na Alemanha. Qual sua opinião sobre isso? O governo brasileiro teve um triste papel neste caso, de cumplicidade. Quando os atletas retornaram, o governo cubano fez um linchamento público na imprensa oficial, com vários insultos. Fidel Castro falou na televisão que um deles foi visto com uma prostituta na praia. Os filhos e a mulher desse homem foram expostos a isso. Foi um episódio bastante lamentável. 

Por que a ditadura cubana ainda tolera suas críticas? Penso que a visibilidade que alcancei me protege. Sou vigiada constantemente, meu telefone é grampeado e existe uma série de mecanismos e estratégias para matar a minha imagem. Se não podem matar a pessoa, matam sua imagem. 

A senhora é frequentemente acusada de receber dinheiro de governos contrários a Cuba para manter seu blog. Qual a origem desses rumores? Faz parte da estratégia de difamação: não discutir as ideias, mas a pessoa. Para ter um blog é preciso muito pouco dinheiro. O meu está num software livre, o wordpress, e fica hospedado num servidor da Alemanha que custa 36 euros por ano. Em 2006, um amigo alemão pagou vários anos a esse servidor. Quanto à conexão, aprendi alguns truques. Por exemplo, vou a um hotel e compro um cartão de conexão que custa 6 dólares a hora. Como preparo quatro ou cinco textos em casa, programo para que sejam publicados em dias diferentes. Com esse método, consigo me conectar mais de cinco vezes com um único cartão. No twitter, publico via mensagem de texto.

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