O GUARANI INFANTIL E IMPREVIDENTE: arqueologia de um
estereótipo jesuítico/colonial.
A discriminação, o preconceito e as diversas formas de
violência sofridas atualmente pelos indígenas no Brasil, de norte a sul, tem
como pano de fundo um conjunto de estereótipos, degradantes e marginalizantes,
que os infantilizam e os inferiorizam socialmente e intelectualmente. Os
estereótipos são imagens poderosas, herdadas dos tempos coloniais, que se
traduzem/desdobram, em nosso tempo, em discursos e práticas sociais que atentam
contra a dignidade e a alteridade indígenas. Apesar dos avanços promovidos pela
constituição de 1988, que lhes assegurou direitos, o respeito ao seu modo de
vida e organização social e o reconhecimento do direito originário sobre as terras
que tradicionalmente ocupam, os índios
ainda são tratados como cidadãos de segunda categoria (para dizer o mínimo).
O efeito mais nocivo dos estereótipos é a naturalização de
certas características negativas atribuídas aos indígenas (preguiça,
indolência, infantilidade, inconstância, incapacidade e indigência). Tais
características, vistas como inatas, portanto insuperáveis, os tornariam
inaptos à convivência em sociedade ditas desenvolvidas. O estereótipo opera uma
simplificação esquemática das características presumíveis de determinados
grupos (Os ingleses são pontuais, os argentinos são arrogantes, os japoneses
são educados e disciplinados, etc.). A eleição de um dado particular, e sua
elevação à condição de enunciado coletivo, característico do reducionismo que subjaz
à construção dos estereótipos, leva às generalizações esquemáticas e à
caricatura cultural. Como bem observou Maria Consuelo Cunha Campos (Figurações
do outro), “entre a cultura que olha
e a que é olhada se estabelece um
espelhamento: eu olho o outro e a
imagem que construo desse outro me devolve, como um boomerang, uma certa imagem de mim, de nós, imagem, que é, todavia,
efetiva negação do outro (...).” O estereótipo, neste caso, enquanto definição
negativa do outro, é a afirmação
positiva do eu. É um jogo de
construções identitárias que define o meu lugar e o lugar do outro no mundo, e
os valores que orientam e regem estes mundos. Vejamos um exemplo. Um dos argumentos
contrário à demarcação das terras indígenas sustenta que os índios não trabalham. Logo, não precisam
de terras. Afinal, terra é para quem trabalha. O entendimento que se tem de
trabalho, certamente, não é mesmo que os indígenas têm. O julgamento auto-referenciado
(todo estereótipo encerra alguma forma de julgamento) e a constatação da
incapacidade do índio para o trabalho
são feitos com base na percepção que aquele que julga tem de si mesmo e do que
entende por trabalho, ligado a uma racionalidade produtiva e a uma lógica de
mercado estranhas ao universo da maioria dos indígenas brasileiros.
Convido-o, caro leitor, a me acompanhar numa breve jornada arqueológica
em busca de uma matriz discursiva, responsável pela fixação de algumas características
atribuídas aos índios, e perseguir
sua trajetória histórica em diferentes contextos, do século XVII ao século XX.
A proposição de uma arqueologia, aqui entendida como o
desvelamento das condições históricas em que uma determinada maneira de pensar
se configurou, é livremente inspirada em Michel Foucault. O procedimento
arqueológico, ao identificar a emergência de uma linhagem discursiva, e
situá-la historicamente, possibilita o questionamento dos estereótipos (ou
discursos fossilizados) e dos supostos atributos essenciais e transcendentais
que definiriam a natureza do indígena.
Comecemos a escavação do passado.
Num ensaio de 1973, sobre a vida de Santo Inácio e a
Companhia de Jesus, Alain Guillermou perguntava retoricamente: “Quem eram então
esses guaranis?” Seriam eles “selvagens terríveis” ou “bons selvagens”? Entre a
visão negativa deixada pelos conquistadores espanhóis, que os pintaram com
traços depreciativos que acentuavam sua ferocidade, e a visão romântica, que os
imaginavam dóceis e próximos do “estado de natureza”, Guillermou procurou outra
maneira de “ilustrar o caráter” dos “guaranis”. Desviou prudentemente das teses
da ferocidade e da docilidade, mas deixou-se embalar por uma “anedota” carregada
de etnocentrismo:
“Uma vez, alguns guaranis fugiram de uma redução, levando
consigo um boi e um arado. Encontraram-nos a alguma distância: com a madeira do
arado haviam feito fogo e estavam comendo quartos de boi que haviam assado.”
(Alain Guillermou: Santo Inácio e a Companhia de Jesus).
Guillermou apresenta a narrativa sobre o boi e o arado como
uma “anedota”. Mas o que exatamente quis dizer com esta “anedota”? Os índios que abandonaram a redução levaram
consigo e, logo em seguida, queimaram e comeram o instrumento de trabalho que
lhes garantiria a subsistência. O que se pode deduzir disto? O caráter, ou o
ser do guarani, seria marcado por esta imprevidência, por este traço de
inconseqüência congênita? A “anedota”, recorrente na maneira de descrever os
guarani, sugere uma acentuada ingenuidade, acrescida de natural incapacidade
prospectiva. Guillermou não endossa nem a tese romântica nem a tese degradante
do índio, mas deixa no ar que
compartilha de uma visão ainda mais perigosa: a de que o índio, pela incapacidade de pensar prospectivamente, seria incapaz
do auto-governo. Os guarani que fugiram da redução, de onde eram tutelados
pelos padres, escaparam aos ditames da razão previdente e retornaram ao seu
antigo modo de vida. Donde se deduz que, longe das reduções e do olhar
vigilante dos padres, os índios
deslizam rapidamente para o abrigo das matas, abandonam os frágeis elos que os
prendiam à cultura e voltam à inocência selvagem. A “anedota” é uma reedição do
tema da natureza inconstante dos índios.
É o eco do discurso colonialista e da velha incapacidade europeia de pensar o
outro pelos seus próprios termos.
Mais do que indicar o ser/caráter do guarani, esta “anedota”
poderia muito bem “ilustrar o caráter” paternalista das reduções e, porque não,
do olhar deslocado do intelectual. Na verdade, o que Alan Guillermou chamou de
“anedota” traduz a percepção e a pedagogia jesuítica no espaço reducional.
Escavando em torno desta ideia vamos encontrar a gênese de um estereótipo
colonialista. O jesuíta Antonio Sepp, que atuou nas reduções do Paraguai entre
1691 e 1733, nos deixou páginas preciosas sobre esta suposta ingenuidade
guarani. De passagem pela redução de Japeyu, em julho de 1692, ouviu do
missionário responsável pela redução uma história que o impressionou:
“Não posso furtar-me
a relatar, diz o padre Sepp, neste
lugar, o que sucedeu a um missionário, há poucos dias. Deste fato pode-se
inferir que este povo não tem previdência alguma, que tudo devora num dia e não
cogita de que precisa viver também no dia seguinte. Quando chega
a época do amanho e da sementeira (...) o Padre dá de presente a cada índio
duas ou três juntas de boi para o amanho da roça, que muitas vezes não vai além
de quinze passos. A roça, sem dúvida, não é tão pequena por falta de terra, -
porque esta não tem marcos nem cercas, mas está aí livre, para quem queira
cultivá-la – mas por pura preguiça! E não dariam conta nem deste pedacinho de
roça, deste punhado de terra, se o Padre não apertasse o agricultor preguiçoso
com sovas e inspeções incessantes. E não amanhariam este punhado de terra nem
em dois meses e mal fariam um carreiro por dia, mas pendurariam sua rede entre
duas árvores e fariam folga perpétua”. (Antonio Sepp: Viagem às Missões
Jesuíticas e trabalhos apostólicos).
Numa dessas inspeções o padre avistou
de longe a fumaça e logo sentiu o cheiro de carne assada. O índio, sentindo-se
culpado ao avistar o padre, “começou a tremer”. Um dos bois já havia sido devorado e a roça mal começara a ser
lavrada. “Se o Padre quer que o agricultor preguiçoso e seus filhos tenham o
que comer o ano todo, precisa não fazer caso e dar-le outro boi. Este fato se
deu a pouco tempo com um Padre, e fatos semelhantes se dão todos os anos. Aos
europeus isto parecerá incrível, mas aqui entre nós é a dura verdade, que os
índios deixam, por pura preguiça, estragar as espigas de milho maduras e
amarelas, se os Padres não os ameaçam expressamente com 24 pancadas de sova
como castigo. Se alguém pergunta: de que maneira costumais castigar esses índios?
Respondo brevemente: Como um pai castiga aos filhos que ama, assim castigamos
os que merecem”.
O que Guillermou chamou de “anedota”, padre Sepp relata num
tom grave, edificante e pedagógico. O índio glutão e imprevidente, após o castigo corretivo, redimiu-se,
beijou a mão do padre e em reconhecimento teria dito as seguintes palavras:
“Meu Pai, mil e dez mil vezes te agradeço que por teu castigo paternal ma
abriste o juízo e me tornaste no homem que antes não fui.” O arrependimento e a
gratidão do índio é a certeza do padre/pai da necessidade da tutela.
A batalha do padre Sepp contra a suposta natureza inconstante
dos guarani era a mesma que os primeiros missionários jesuítas que
evangelizaram no Paraguai travaram. Nas cartas anuas referentes aos anos de 1637 a 1639, organizada pelo
padre Provincial Lupércio de Zurbano, os combates contra os antigos costumes
ocupam uma parte considerável dos relatos. Tomemos um exemplo bastante
ilustrativo. No “Pueblo” de
“Nuestra Señora de Fé” a
situação era quase incontornável, e os padres, mesmo trabalhando duro, não viam
melhorias animadoras:
“Ya cerca
de dos años habían trabajado los Padres desesperadamente, y todavía no se vió
mejoría de costumbres, tan indomable es esta gente, tan dura de cabeza, y de
tanta bajeza de caráter. No les entran consejos de los Padres. Así es espantosa
entre ellos la borrachera, haciéndose un brebaje fermentado de miel silvestre
aumentando su eficacia para embriagar cierta flor del campo, donde sacan la
miel las abejas. A consecuencia de esta ebriedad son frecuentes abortos,
peleas, asesinatos, y a veces verdaderas batallas entre las diferentes tribus
de indios”. (Cartas
anuas de 1637-1639, escritas por Lupércio de Zurbano ).
Na mesma carta o Provincial prossegue
descrevendo a difícil luta dos padres contra os costumes herdados dos
antepassados:
“Se
aburren de la doctrina cristiana y de los misioneros, sin que por esto se
desanimen nuestros Padres en su empeño de evangelizarlos. Las mujeres de estas
tierras son desvergonzadas. Borrachas, la cara horriblemente pintada, bailan
unas danzas verdaderamente abominables. Al reprenderlas después nuestros Padres
por estos abusos, contestan con atrevimiento: Callate, Padre, tú también harás
pronto lo mismo que nosotros. Dicen además, que se marchen los Padres a buena
hora, cuando no quieren conformarse con nuestras costumbres. Nosotros nunca
dejaremos estas costumbres y viviremos como hemos aprendido de nuestros
antepasados. Tenemos que multiplicar nuestra raza teniendo muchas mujeres”.
O
apego aos antigos costumes e a inconstância dos indígenas dificultavam o
trabalho dos missionários. Viveiros de Castro analisou os discursos produzidos
na América portuguesa sobre a natureza inconstante dos “selvagens”. A
inconstância, “uma constante da equação selvagem”, tornava exasperadora a
tarefa de convertê-los. Os índios, na
percepção dos jesuítas, eram como “a mata que os agasalhava, sempre pronta a
refechar-se sobre os espaços precariamente conquistados pela cultura. Eram como
a terra, enganosamente fértil, onde tudo parecia se poder plantar, mas onde
nada brotava que não fosse sufocado incontinenti pelas ervas daninhas.”. (Eduardo Viveiros de
Castro. A inconstância da alma selvagem).
Padre
Zurbano queixou-se dessa inconstância algumas vezes. Chegou a dizer que
“nada tiene consistencia en este mundo”.
Ao mesmo tempo em que mostravam disposição para ouvir as palavras dos
missionários, com muita facilidade esqueciam a mensagem evangélica e voltavam
as velhas práticas.
Em 1731, em visita às reduções do Tape, cem anos depois da
carta do padre Zurbano, foi a vez de José Cardiel registrar o “débil y defectuoso entendimento” dos guarani. “Son hombres de un día”, atestou
Cardiel, “no discurren las
consecuencias de lo futuro”. Devoram numa única refeição o alimento que duraria
até quatro meses. Desperdiçam e dão tudo o que tem: “a ese modo es el porte del
indio en la providencia económica”. Ao invés da narrativa do boi e do
arado, deixada por Sepp, Cardiel usa
como exemplo da inconstancia selvagem o “caso” dos carneiros:
“Es tiempo perdido el usar largos discursos con
ellos, ni razones sobre razones. Lo que aprovecha es decirles poco y muy
trivial y material en sermones y confesiones, y aun en cosas materiales. Pondré
un solo caso: aunque cada día me suceden a mí otros semejantes. Un Padre
párroco le dio a guardar a un indio diez carneros, encargándole que cada semana
trajese uno para él y su compañero. Hízolo así cinco semanas: y a la sexta vino
diciendo que ya se había acabado. Díjole el cura: Cómo puede ser eso? Yo te di
diez. – Es verdad, respondió. – Cada semana no has traído más que uno, y sólo
cinco semanas los has traído: luego no has traído más que cinco. – Es verdad
todo. Si de diez no trajiste más que cinco, quedan otros cinco. Dónde están
esos? Respondió: - Tú los comiste. Volvió el Cura en toda forma: A quien de
diez no le traen más que cinco, le quedan otros cinco: tú no trajiste más que
cinco, etc: y siempre respondía: Tú lo comiste, después de haber concedido todo
lo antecedente”. (José Cardiel: Carta y relación de las misiones de la
Província del Paraguay).
Cincuenta anos depois da dispersão das
missões, o viajante naturalista francês August de Saint-Hilaire, em viagem pelo
Rio Grande do Sul, observou entre os guarani este mesmo traço de personalidade
e completa ausência da noção de futuro. Passando pela região das missões, em
1822, registrou uma variação da “anedota”:
“Os guaranis, como todos os índios, não têm nenhuma idéia de
futuro: aprendem com facilidade o que se lhes ensina, mas não criam nem compõe
nada. De índole dócil, obedecem sem dificuldade, mas seu caráter não têm
nenhuma fixidez; vivendo só do presente, não podem ser fiéis a palavra
empenhada; não possuem nenhuma elevação de alma; são estranhos a qualquer
sentimento generoso; ainda menos de honra; não têm ambição, cobiça ou amor
próprio. Se alguma vez economizam, é sempre por muito pouco tempo. Um guarani,
por exemplo, consegue comprar, por suas economias, uma roupa que pode
abrigá-lo, durante longo tempo, das intempéries, mas logo depois a trocará por
uma vaca, da qual nada restará ao fim do dia”. (Auguste de Saint-Hilaire:
Viagem ao Rio Grande do Sul).
O ponto de vista, desta vez, não é o de um jesuíta, que
poderia ser qualificado como suspeito. O juízo foi emitido por uma autoridade
científica, um viajante naturalista, de renome internacional e amplo
reconhecimento. Ecoando os poderosos juízos emitidos pelo naturalista francês
Buffon e Cornelius De Pauw sobre os americanos, Sain-Hilaire fez um diagnóstico
sombrio, pessimista e inexorável da situação em que se encontravam os guarani.
A sentença final não deixou dúvidas: “A civilização não nasceu para índios.”
Imprevidentes e sem visão prospectiva, os guarani eram, para Saint-Hilaire,
comparáveis as crianças. Mas a criança, porém, desperta o interesse porquanto
será homem um dia. O viajante ilustrado não vê saída para o impasse criado pelo
colonialismo. Os guarani encontram-se, pois, encurralados numa espécie de limbo
evolutivo, a meio caminho entre a civilização e a selvageria. A vida na
floresta não lhes é mais possível, a vida em sociedade lhes é inatingível!
Pablo Hernández, em 1913, também deixou um quadro nada
lisonjeiro dos guarani. À total incapacidade de previsão, acrescenta o estado
de decadência moral em que se encontravam. O mais notável, avalia o
historiador, é que nos primeiros anos de vida a criança guarani anuncia-se como
uma promessa. A docilidade, a facilidade para aprender e a disposição
prenunciam um “feliz desarrolho”. Mas
com tempo, com o passar dos anos, percebe-se que os Guarani estacionam e voltam
para trás, “tornándose incapaces e ininteligentes como los mayores, y perdiendo
también la gracia y prontitud de aprensión, se volvían broncos y adquirían la
tosquedad de los demás índios”. Hernández
observa os índios com os olhos de Cardiel e endossa o juízo do padre com a
chancela dos “profesores del evolucionismo”. A respeito da imprevisão, nada
“muestra mejor ese carácter que la descripción que él hace P. Cardiel: No hay
remédio da hacerles prevenir lo futuro, de que guarden el sustento para todo el
año”:
“El major trabajo es hacer que hagan buena sementera: porque
como el pobre índio no considera lo que há de durar el año, y su ánimo es
sumamente flojo, aniñado é inadvertido, con un poço que tenga, ya está más
contento (...)”. (Pablo Hernández: Organización social de las doctrinas
Guaraníes de la Compañia de Jesús. 1913).
Carlos Dante de Moraes, crítico literário e ensaísta
riograndense, dedicou um ensaio ao caráter dos guarani sob o regime
missioneiro. Publicado em 1959, o ensaio procurava aplicar conceitos da
psicologia ao estudo dos “povos primitivos”. Considerava o guarani de caráter
“flutuante e incerto”, tudo nele era duvidoso e tosco. Por mais que os padres
se esforçassem, afirma Dante, “jamais conseguiriam tornar o índio capaz de
nutrir-se e vestir-se por seu exclusivo labor e iniciativa (...). Deixados a si
mesmos, sem o olhar vigilante do padre e a disciplina dos açoites, andariam nus
e famintos. Não demonstravam a menor aptidão para tirar partido da terra
fértil”. Quanto à criação de animais, não possuíam previdência alguma. Usou o
mesmo exemplo de Guillermou para traçar um quadro sorumbático da psicologia
guarani: “Comiam o boi que lhes davam para rotear o solo, assando-o no próprio
arado, que servia de lenha. Das vacas leiteiras, devoravam a cria, perdendo o
leite, e logo depois sacrificavam a mãe.” (Carlos Dantes de Moraes: Figuras e
ciclos da história Rio-Grandense).
A repetição da narrativa, inicialmente como passagem
edificante, depois como um traço insuperável da condição selvagem e, por fim,
como anedota, congela uma imagem estereotipada e a-histórica do guarani no
tempo que, pela insistente repetição em diferentes contextos narrativos (nos
relatos jesuíticos, nos relatos de viagem e em ensaios históricos), passa a
definir-lhe o caráter. O estereótipo, principal estratégia discursiva do poder
colonial, fixa uma imagem do colonizado, geralmente expressa em termos
excessivos, ou anedóticos. Repetida à exaustão, em diferentes conjunturas
históricas e contextos discursivos, acaba produzindo um efeito de
naturalização. Os estereótipos acabam por produzir um conhecimento do outro
como se fosse um negativo da imagem do colonizador. O discurso colonial,
de acordo com Homi K. Bhabha, “é um
aparato que acende o reconhecimento e a negação das diferenças
raciais-culturais-históricas. Sua função estratégica predominante diz respeito
à criação de um espaço para a "subjetividade das pessoas" através da
produção de conhecimentos em termos de a vigilância ser exercida e a forma
complexa de prazer-desprazer, incitada. O objetivo do discurso colonial se
concentra em construir o colonizado como população de tipo degenerado, tendo
como base uma origem racial para justificar a conquista e estabelecer sistemas
administrativos e culturais.” (Ver: A questão do “outro”:
diferença, discriminação e o discurso do colonialismo e O local da cultura).
A jocosa “anedota” utilizada
por Guilhermou para ilustrar o caráter dos guarani, devidamente localizada,
abre-nos a possibilidade de rastrear as pistas de uma linha discursiva, de
matriz jesuítica, que alcança os viajantes naturalistas e se consagra na
historiografia e na literatura. O discurso colonial, cuja faceta mais perversa
é a construção do colonizado como incapaz e degenerado, se perpetua nestes
estereótipos que articulam uma forma sutil de dominação, muitas vezes camuflada
de proteção.
Alain Guillermou reproduziu a narrativa do boi e do arado, na
forma de uma “anedota”, como se fosse um dado natural do “caráter” dos guarani,
sem se preocupar em situá-la historicamente ou mencionar a fonte. Endossou o
ponto de vista jesuítico/europeu sem levar em conta as condições históricas que
conferiam sentido às representações europeias sobre os indígenas, os interesses
e visões de mundo dos sujeitos envolvidos e as profundas assimetrias das
sociedades coloniais. Confundindo estereótipo com anedota, Guillermou atualizou
e perpetuou a visão dos colonizadores sobre os indígenas. Não precisamos de
muita imaginação para saber que a “anedota” é um prato cheio para os detratores
hodiernos dos indígenas e para os adversários da demarcação das terras pelo
Brasil a fora. Seria a confirmação, com a chancela sofisticada de um linguista
francês, de que estão certos. “Não disse, diriam eles, o índio é assim. Adianta
dar terras para essa gente? Vão vender a terra, beber todo o dinheiro e depois
pedir esmolas e sujar as ruas de nossas cidades.”
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