O GUARANI INFANTIL E IMPREVIDENTE - PARTE II: As narrativas da
conquista da América (Rio da Prata) como contraponto aos estereótipos jesuítico-coloniais.
A imagem do índio indolente, preguiçoso e
imprevidente, que vimos no post anterior, emerge num contexto histórico marcado
pela presença dos missionários e pelo estabelecimento de reduções nos
territórios indígenas. Já havia se
passado quase um século desde a chegada dos primeiros espanhóis no Paraguai
quando os jesuítas ali fundaram as primeiras reduções. Se compararmos os
registros deixados pelos primeiros cronistas espanhóis, que mantiveram contato
com os guarani na primeira metade do século XVI, com os relatos dos jesuítas,
as diferenças saltam aos olhos. Entre os guarani descritos por Luis Ramírez em
1528 e os descritos pelo padre Antonio Sepp no final do século XVII e início do
XVIII, vai uma grande diferença. Um retorno aos cronistas da conquista que
fizeram os primeiros contatos com estes povos, auxiliado pelas descobertas
arqueológicas e etnológicas do século XX, nos possibilita uma crítica ao velho
estereótipo colonial do índio indolente e pusilânime. Conquista e colonização
são momentos distintos da presença europeia no Novo Mundo. Os relatos da
conquista são as primeiras impressões dos primeiros contatos entre os
conquistadores e os grupos indígenas. Os cronistas que participaram das
primeiras expedições à América do Sul fizeram contatos inéditos com os guarani e
registraram flagrantes da vida desses povos antes da presença e da
interferência mais efetiva dos europeus.
Inimigos implacáveis ou
aliados valorosos, discípulos fieis ou adversários diabólicos, os indígenas,
especialmente os guarani, só não foram expectadores passivos do avanço do
colonialismo. Mas nem sempre prevaleceu essa visão. Por muito tempo
sustentou-se a ideia de que os “dóceis” guarani se submeteram passivamente ao
regime das reduções. Foram os cronistas jesuítas, de fins do século XVII e do
século XVIII, e depois os divulgadores europeus, que fixaram essa imagem do
guarani dócil, manso e passivo. Antonio Sepp e Cardiel (ver o post anterior)
podem ser identificados como as matrizes daquilo que Ernesto Maeder chamou de
“el mito de la pasividad guarani” (Pasividad Guarani? Turbulencias y defecciones en las misiones
jesuiticas del Paraguay). Maeder contrapõe ao mito da
docilidade as hostilidades e enfrentamentos que os guarani opuseram aos
jesuítas, inclusive martirizando vários
missionários. Para o autor a propalada docilidade guarani tem matriz jesuítica,
mas a melhor caracterização do mito encontra-se na obra de Félix de Azara
(Engenheiro militar e cronista espanhol que viveu na América do Sul entre 1781
e 1801).
Além da incapacidade de
lidar com o futuro, os guarani do padre Sepp eram de uma doçura e de uma
resignação tocantes. Aceitavam tudo sem reclamar, inclusive os castigos físicos
aplicados pelos padres. Ademais, eram “tão pueris, tão grandemente simplórios e
de juízo tão curto, que os primeiros Padres, que converteram estes povos,
duvidaram realmente se eram capazes de receber os Santos Sacramentos.” (Viagem
às Missões Jesuíticas e trabalhos apostólicos).
Essa imagem de
passividade e docilidade atribuída aos guarani vem sendo desmontada por alguns
pesquisadores apoiados numa leitura menos seletiva das fontes jesuíticas e mais
atenta dos cronistas da conquista. Refiro-me aos estudos de Branislawa Susnik,
Louis Necker e Bartomeu Meliá, que levantaram os primeiros questionamentos e
apontaram caminhos para a crítica dos estereótipos. Mais recentemente,
apareceram os estudos de Maria Cristina dos Santos, Florência Roulet e Dayse
Ripodas sobre a resistência guarani à conquista espanhola e jesuítica. Minha
abordagem, embora distinta em alguns aspectos, é tributária desses estudos,
especialmente da etno-história de Bartomeu Meliá.
Já esta
suficientemente demonstrado que os guarani organizaram uma complexa sociedade
guerreira e que a guerra ocupava um lugar central nas relações que mantinham
com os povos vizinhos. Luis Ramírez, no primeiro relato europeu sobre os
guarani do Paraguai, deixou uma nítida impressão dessa sociedade guerreira:
“Aqui con nosotros está outra
generación que son nuestros amigos, los cuales se llaman guarenís y por outro
nombre chandris. Estos andan derramados por esta tierra y pos otras muchas,
como corsários, a causa de ser enemigos de todas estas otras naciones y de
otras muchas que adelante diré. Son gente muy traidora, todo loque hacen es con
traición. Estos señorean gran parte de esta Índia (...) Estos comen carne
humana.” (Carta de Luís Ramírez a su padre desde el Brasil (1528).
Luis Ramírez era
membro da tripulação da armada comandada por
Sebastián Caboto. A armada, que viajava
sob bandeira espanhola, desviou do destino original e acabou, em 1525, chegando
ao Rio da Prata. Em carta endereçada ao pai, datada de julho de 1528,
Luis Ramírez deixou um valioso testemunho:
“Aqui con nosotros está outra
generación que son nuestros amigos, los cuales se llaman guarenís y por outro
nombre chandris. Estos andan derramados por esta tierra y pos otras muchas,
como corsários, a causa de ser enemigos de todas estas otras naciones y de
otras muchas que adelante diré. Son gente muy traidora, todo loque hacen es con
traición. Estos señorean gran parte de esta Índia (...) Estos comen carne humana.”
Outro relato de inestimável valor foi escrito pelo militar e conquistador bávaro Ulrico Schimdl, membro voluntário da expedição comercial comandada pelo adelantado Pedro de Mendoza ao Rio da Prata em 1535. O relato, escrito em alemão, e posteriormente publicado em espanhol como Viaje al Río de la Plata, aborda os anos que o autor passou no Novo Mundo, entre 1535 e 1553. A primeira edição foi lançada em 1567. A descrição que Schimdl fez dos guarani da Província de Lambaré deixa entrever toda uma estrutura defensiva composta de fossos e paliçadas, erigida por um povo que tinha na guerra uma das manifestações essenciais do seu modo de ser.
“También hemos hallado su
lodalidad o asiento de estos Carios sobre un terreno alto sobre el rio
Paraguay. También este asiento está hecho de dos palizadas de palos en derredor
o en círculo y cada poste há sido tan grueso como un hombre en la grosura y por
la mitad del cuerpo, y ha estado parada una palizada a doce pasos de la outra y
los postes han estado enterrados bajo tierra por uma buena braza y sobre la
tierra tan altos como hasta donde un hombre puede alcanzar con una tizona
larga. También los Carios han tenido sus trincheras, también han hecho fosos a
distancia de quince pasos de este muro o palizada tan hondos cuan altos três
hombres. Dentro de éstos han clavado una Lanza de un palo duro y ésta há sido
tan afilada y puntiaguda como una aguja (...).”
O guarani
pintado por Ramirez e Ulrico Schimdl, belicoso, antropófago e traidor, em nada
lembra a imagem do dócil selvagem fixada pelos jesuítas.
Os cronistas da
primeira metade do século XVI observaram perplexos os rituais de antropofagia,
mas foi o conquistador espanhol Cabeza de Vaca quem o detalhou com grande
riqueza etnográfica, desde a captura do prisioneiro até a execução ritual. Na
crônica que se convencionou chamar de “Comentários”, que registra as
experiências do conquistador na sua segunda viagem à América em 1540,
encontramos a seguinte descrição:
“Esta nação dos guaranis fala uma
linguagem que é entendida por todas as outras castas da província e comem carne
humana de todas as outras nações que têm por inimigas. Quando capturam um
inimigo na guerra, trazem-no para seu povoado e fazem com ele grandes festas e regozijos,
dançando e cantando, o que dura até que ele esteja gordo, no ponto de ser
abatido. Porém, enquanto está cativo, dão a ele tudo o que quer comer e lhe
entregam suas próprias mulheres ou filhas para que faça com elas os seus
prazeres. São estas mesmas mulheres que se encarregam de tratá-lo e de
ornamentá-lo com muitas plumas e muitos colares que fazem de ossos e de pedras
brancas. Quando esta gordo, as festividades são ainda maiores. Os índios se
reúnem e adereças três meninos de seis ou sete anos de idade e colocam-lhes nas
mãos umas machadinhas de cobre. Chamam então um índio que é tido como o mais
valente entre eles, colocam-lhe uma espada de madeira nas mãos, que chamam de macana, e o conduzem até uma praça onde
o fazem dançar durante uma hora. Terminada a dança, dirige-se para o
prisioneiro e começa a golpeá-lo pelos ombros, segurando o pau com as duas
mãos. Depois bate-lhe pela espinha e em seguida dá seis golpes na cabeça (...)
Somente depois de muito bater com aquela espada (...) é que consegue derrubar o
prisioneiro e inimigo. Aí então chegam os meninos com as machadinhas e o maior
deles, ou filho do principal, é o primeiro a golpeá-lo com a machadinha na
cabeça até fazer correr o sangue (...) enquanto estão batendo, os índios que
estão em volta gritam e incentivam para que sejam valentes (...) que se
recordem que aquele que ali esta já matou sua gente. Quando terminam de
matá-lo, aquele índio que o matou toma o seu nome, passando assim a chamar-se
como sinal de valentia. Em seguida, as velhas pegam o corpo tombado, começam a
despedaçá-lo e a cozinhá-lo em suas panelas. Depois repartem entre si, sendo
considerados algo como muito bom de comer, e voltam às suas danças e cantos por
mais alguns dias, como forma de regozijo” (Naufrágios e comentários).
Estas descrições
contrastam violentamente com a imagem de docilidade e passividade frequentemente
atribuída aos guarani. Eram notáveis guerreiros e viviam em permanente conflito
com os povos que habitavam as fronteiras dos seus territórios. Schmidl os reputou
entre todos os outros como os melhores guerreiros por terra e Ramirez constatou
que eram “enemigos de todas estas otras naciones”.
Os guarani eram caçadores e
coletores, mas eram também semeadores em constante movimentação no espaço em
busca de melhores terras. Praticavam uma horticultura itinerante e exploravam
habilmente as terras de florestas, derrubando e queimando árvores para plantar
o milho, a mandioca, legumes e outras culturas. Essa particularidade, que os
diferenciava das outras etnias que viviam basicamente da caça e da pesca,
também foi destacada pelos primeiros cronistas. Ulrico Schmidl exaltou a
“gracia divina” por terem encontrado entre os:
“Carios o Guaraníes (...) trigo turco o maíz y
mandiotín, batatas, mandioca-poropí, mandioca-pepirá, maní, bocaja y otros
alimentos más, también pescado y carne, venados, puercos del monte, avestruces,
ovejas índias, conejos, gallinas y gansos y otras salvajinas (...) También hay
en divina abundancia la miedl de la cual se hace el vino; tiene también
muchísimo algodón em el país.”
Esses dados permitem um bom
contraponto com as teses de Cardiel e Pablo Hernández e com a “anedota” do boi
e do arado contada por Alain Guillermou (Ver post anterior). Os guarani,
imprevidentes e incapazes de semear e colher pensando no futuro, salvaram da
fome com suas lavouras e reservas de alimento os numerosos exércitos espanhóis,
e os abasteceu por quase trinta anos. A antropóloga esloveno-paraguaia
Branislava Susnik, vale registrar, observou que este abastecimento contínuo de
víveres nos primeiros trinta anos da conquista desintegrava a potencialidade
econômica e abalava o antigo interesse pelo cultivo entre os guarani (El índio
colonial del Paraguay - El Guarani colonial I. 1965). Talvez
Os relatos dos
cronistas capturaram imagens das práticas culturais dos guarani antes do avanço
da conquista e dos impactos da colonização sobre os territórios e o modo de
vida dos povos indígenas. Antes dos franciscanos e dos jesuítas iniciarem seus
trabalhos apostólicos, os espanhóis já percorriam e ocupavam estas terras há
pelo menos oitenta anos. As guerras, as alianças militares, a exploração da
mão-de-obra, as mestiçagens e as duras quedas demográficas alteraram
significativamente a distribuição dos grupos indígenas no espaço e as suas
formas de organização política. Os guarani do tempo do padre Sepp já não eram
os mesmos do tempo de Luis Ramírez. Já haviam passado por diversas experiências
com os espanhóis que, certamente, condicionaram as respostas que deram à
chegada dos jesuítas. Daí a importância de conhecer este cenário histórico
antes da entrada em cena dos missionários.
A jocosa “anedota” utilizada
por Guilhermou para ilustrar o caráter dos guarani, devidamente localizada,
abre-nos a possibilidade de rastrear as pistas de uma linha discursiva, de
matriz jesuítica, que alcança os viajantes naturalistas e se consagra na
historiografia e na literatura. O discurso colonial, cuja faceta mais perversa
é a construção do colonizado como incapaz e degenerado, se perpetua nestes
estereótipos que articulam uma forma sutil de dominação, muitas vezes camuflada
de proteção.
O guarani
capturado e embalsamado pelo discurso colonial, descrito como “flojo” e
imprevidente, infantil e preguiçoso, que não pensa no dia seguinte,
contrasta fortemente com os registros dos cronistas da primeira metade do
século XVI sobre o guarani guerreiro e semeador. Vista de outra maneira, esta
suposta ausência de uma visão de futuro talvez possa nos indicar não algum
traço do “modo de ser”, mas os impactos do colonialismo sobre o “modo de ser”
guarani. Neste sentido, as fontes coloniais das primeiras décadas da conquista,
que flagraram o modo de vida guarani anterior à formação da sociedade colonial
e à obra evangelizadora dos jesuítas, permitem um necessário contraponto às
fontes coloniais e jesuíticas e a desconstrução de uma matriz discursiva
colonial que fixou a imagem negativa e inferiorizada do guarani que se
perpetuou na literatura e na historiografia.
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