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sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

TURISTAS, REFUGIADOS, SMARTPHONES, A GLOBALIZAÇÃO DA INDIFERENÇA E O FILME MANIFESTO DE EMANUELE CRIALESE.

TURISTAS, REFUGIADOS, SMARTPHONES, A GLOBALIZAÇÃO DA INDIFERENÇA E O FILME MANIFESTO DE EMANUELE CRIALESE.



No dia 27 de janeiro de 2017, uma cena chocante, e profundamente triste, foi vista por milhões de pessoas no mundo todo. Enquanto um jovem de Gâmbia, de 22 anos, se afogava no Canal Grande da “charmosa” Veneza, turistas filmavam e compartilhavam a tragédia a bordo de um barco de passeio. É difícil avaliar o que se passou na cabeça dos turistas que fizeram as imagens, mas se o primeiro impulso de uma pessoa ao ver outra se afogando é pegar o smartphone para filmar, tem alguma coisa de muito errado nisso tudo. Não bastasse isso, a filmagem do afogamento tem um áudio perturbador. Entre gritos e falas incompreensíveis, é possível distinguir algumas frases: “Deixe-o morrer”, "Vá em frente, volte para casa”.

A tragédia, transformada em espetáculo, é eloquentemente sugestiva das particularidades da mobilidade do mundo global. Estamos na era do turismo em massa (Marc Augé) e dos deslocamentos globais de milhares de pessoas que fogem da fome e das guerras, principalmente na África e no Oriente Médio. O mar Mediterrâneo é um dos destinos mais procurados pelos turistas e, ao mesmo tempo, a ponte que liga estes continentes à Europa. Turistas e migrantes (ou refugiados) são expressões das formas contemporâneas de mobilidade e da enorme desigualdade de direitos que preside o mundo globalizado.

Contrariando a utopia pós-moderna de um mundo de mobilidade sem fronteiras, o direito de ir e vir na era da globalização, definitivamente, não é para todos. “A maioria das pessoas não tem os recursos econômicos nem os direitos políticos necessários para a livre circulação” (Stephen Castles). Enquanto uns viajam confortavelmente para lugares excelentes, segundo as agências de turismo, outros se empilham clandestina e claustrofobicamente dentro de contêineres na esperança de chegar nalgum país europeu. Neste cenário, os (des)encontros dos turistas, e seus inseparáveis smartphones, com os migrantes clandestinos (os “vagabundos”, de Bauman) se multiplicam no paradisíaco e terrível Mediterrâneo. Em julho de 2016, enquanto uma embarcação militar espanhola atracava no porto de Catânia, ao sul da Sicília, com dezenas de migrantes vindos das costas da Síria que tentavam entrar na Itália, um cruzeiro turístico de dez andares, a poucos metros de distância, acompanhava a operação de desembarque e os procedimentos rotineiros de registro e identificação (de controle, como diria Michel Agier).

Assim que vi as imagens do afogamento, lembrei-me do filme italiano “Terraferma”, que aborda o tema das migrações contemporâneas e os encontros incidentais entre turistas e refugiados. O filme é um manifesto contra a intolerância e a indiferença. O eixo narrativo gira em torno de uma família de pescadores, numa pequena ilha mediterrânea (alusão à ilha de Lampedusa), que resgata, sem o conhecimento das autoridades, uma etíope grávida e a esconde em sua casa. As opiniões dos moradores da ilha se dividem, pois a presença de migrantes ilegais, especialmente os africanos, está afetando a imagem da ilha que vive do turismo. Emanuele Crialese (diretor) condenou o lado dantesco das formas atuais de mobilidade, e os sentimentos de repulsa e atração envolvidos, por meio de uma metáfora contundente. No mesmo ambiente em que turistas, sempre bem vindos, se jogam dos barcos de passeio, ao som da salsa, nas águas cristalinas e convidativas do Mediterrâneo, barcos precariamente improvisados abarrotados de indesejáveis africanos naufragam e as pessoas se lançam desesperadas ao mar para se salvar.

A ideia do filme surgiu depois que Crialese leu sobre uma migrante africana que sobreviveu, depois de 21 dias à deriva no mar num bote lotado, alcançando a ilha de Lampedusa. “Fiquei hipnotizado pelo rosto dela, por sua expressão”, disse Crialese. “Ela tinha acabado de passar pelo inferno, três semanas em alto mar, com pessoas que os viam, se aproximavam e jogavam água e então os abandonavam novamente. E ela parecia ter chegado ao paraíso”. Para o diretor, os migrantes globais “são vítimas de uma legislação desumana. A lei do Estado é perversa e fere a lei moral da civilidade. Não é decente que se deixem morrer homens, mulheres e crianças no meio do mar, sem prestar socorro. O que ocorre hoje na Itália, e no mundo, é que há uma indiferença muito grande pelo sofrimento alheio. Meu pescador não perdeu seu vetor moral e isso era absolutamente necessário para mim.”  (...) “O Estado é criminoso, mas a imprensa joga seu papel. São histórias que vendem. Mais importante, seria lutar contra o preconceito. É o que espero estar fazendo com meu filme.” (...) “Não julgo nem acuso ninguém. Meu ideal é um espectador capaz de olhar essa tragédia com olhar virgem. Só assim será possível mudar.”

Filmes como “Terraferma” são contrapontos críticos absolutamente necessários à política discriminatória dos Estados, à onda conservadora condenatória das migrações internacionais e à insensibilidade e indiferença em relação às tragédias envolvendo refugiados e deslocados globais. Infelizmente, a procura por filmes como este, exibidos apenas em cineclubes e festivais temáticos de cinema, não acompanha a espantosa disseminação de vídeos bobos e dispensáveis, feitos com celulares, que se espalham vertiginosamente na internet. Imagino que o vídeo do afogamento em Veneza foi, em poucos minutos, mais visto do que toda a bilheteria mundial de “Terraferma”, desde seu lançamento em 2011. É difícil competir com as pequenas divindades digitais e o seu poder hipnótico sobre os usuários. De minha parte, vou continuar frequentando, promovendo e estimulando os cineclubes e os festivais de cinema sobre as migrações internacionais. Esses espaços são as nossas “heterotopias cinematográficas” (expressão cunhada por Victor Burgin e utilizada por Michel Shapiro), isto é, espaços de resistência e reflexão a desafiar as práticas de subjugação e discriminação que cercam os deslocamentos populacionais nas últimas décadas (e as barulhentas salas de cinema dos shopping centers).





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