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sábado, 10 de agosto de 2013

GUANTÁNAMO: O Pesadelo kafkiano nos Porões Obscuros da Democracia Norte Americana.



GUANTÁNAMO: O Pesadelo kafkiano nos Porões Obscuros da Democracia Norte Americana.




"Assim, não há possibilidades de engano. As nossas autoridades, até onde eu conheço, e os meus conhecimentos não vão além das categorias mais baixas, não são daquelas que andam atrás das culpas das pessoas, mas, como diz a Lei, são forçadas pelos delitos a enviarem-nos a nós, os guardas. É assim a Lei. Como poderá haver enganos?"



(Fala do personagem Franz, guarda do presídio do romance “O Processo”, de Franz Kafka).









As notícias que nos chegam com alguma frequência da prisão de Guantánamo são perturbadoras, embora não nos causem surpresa. Os relatos de presos publicados no The New York Times ou os documentos vazados pelo Wikileaks deixam entrever uma realidade brutal e um completo desprezo pelo Estado de Direito, dignos dos piores pesadelos imaginados na ficção Kafkiana. 


Não é nenhuma novidade falar do “realismo” singular e da atualidade de Kafka. Realismo, no sentido estético, que traduz um olhar minucioso e crítico sobre o mundo, e o desejo de mostrar, com imagens deformadas e absurdas, as coisas como elas são (Não confundir com a pretensão conservadora positivista de descrever o mundo como ele realmente é). Numa conversa com um amigo sobre uma exposição de obras cubistas e pós-cubistas de Picasso, Kafka disse que “a arte é um espelho que adianta, como um relógio, não as nossas formas, mas as nossas deformidades”. O “realismo” de Kafka, apontado para as deformidades do mundo e a incomunicabilidade entre as pessoas, é do tipo que comporta a indignação e intervém no sentido de sacudir o conformismo. 


Os personagens kafkianos e as situações inesperadas em que repentina e inexplicavelmente se encontram poderiam ser facilmente identificados com situações dos nossos dias. O homem do campo, da fábula “Diante da Lei”, poderia ser substituído por um aposentado do INSS sem muita dificuldade. Alguns prisioneiros de Guantánamo, do mesmo modo, parecem viver o pesadelo do personagem Josef K, de “O Processo”. No romance, escrito por Kafka em 1914 e publicado postumamente em 1925, o personagem Josef K acorda num belo dia e, sem que lhe exponham os motivos, é levado à prisão e submetido a um intrincado processo por um crime que não lhe é revelado. A individualidade de K fora sequestrada por uma lei impessoal e distante, expressão de uma coletividade anônima e sem rosto. Impotente diante de um poder invisível e hierarquizado, cujas manifestações mais próximas são os guardas da prisão, K vê sua vida se esvair num longo e incompreensível processo.


Quantos prisioneiros em Guantánamo não estão nesta mesma condição? Presos numa malha de poderes invisíveis, são mantidos sem acusação formal, sem direito a um julgamento e a informações, sem saber qual é afinal o seu crime ou do que exatamente estão sendo acusados. Como no romance “O Processo”, o Estado de Direito não existe em Guantánamo. “N´O Processo a ficção básica é a do Estado de Direito” (Luiz Costa Lima). Em Guantánamo a ausência desta situação jurídica é a realidade básica. 




A vaga acusação de terrorismo, em alguns casos sem provas concretas, é tão genérica que de modo algum autoriza a prisão dos supostos suspeitos. Mas o que manda, na ausência do Estado de Direito, é a lógica da suspeição. A suspeição produzida e a delinquência presumível. Foucault, estudando as instituições penais do século XIX, percebeu uma cadeia de discursos sobre a delinquência que identificaria, por um exame das tendências psicológicas dos suspeitos, um criminoso antes mesmo do crime ser cometido. No mundo pós 11 de setembro a lógica da suspeição em ação se anteciparia ao crime e identificaria os suspeitos pelos sobrenomes, pelo país em que vive, pela religião que professa e pelos traços fisionômicos. Um iemenita de passagem pelo Paquistão em 2001, depois de uma temporada no Afeganistão, seria um suspeito em potencial a procura de um crime. Neste caso, meus caros, infelizmente, não estamos no campo da ficção.



Samir Naji al Hasan Moqbel, um iemenita de 35 anos, um dos tantos Josef K de Guantánamo, afirma que está preso há 11 anos: "Eu poderia estar em casa há anos - ninguém seriamente acha que eu sou uma ameaça -, mas eu ainda estou aqui. Há anos os militares disseram que eu era um 'guarda' de Osama bin Laden, mas isso não fazia sentido, como algo tirado de filmes americanos que eu costumava assistir". Vivendo uma típica novela kafkiana da vida real, Moqbel contou, num relato publicado no The New York Times, que  “viajou para o Afeganistão no início dos anos 2000 após ouvir de um amigo de infância que poderia melhorar sua condição de vida no país. Ele diz que descobriu que não havia empregos apenas quando chegou ali, mas que não tinham dinheiro para voltar para casa. Quando os Estados Unidos invadiram o Afeganistão em 2001, ele conseguiu ir para o Paquistão. "Os paquistaneses me prenderam quando eu pedi para ver alguém da embaixada do Iêmen. Eu fui então enviado para Kandahar (no Paquistão), e colocado no primeiro avião para Gitmo (termo que se refere a Guantánamo).” 




Vale lembrar as palavras de Josefina Salomon, porta-voz do Programa de Combate ao Terrorismo da Anistia Internacional: “Guantánamo não faz do mundo um lugar mais seguro e sim um lugar onde qualquer um pode ser pego de sua casa, colocado em um avião, preso em um centro de detenção sem nem ao menos saber do que é acusado e ficar anos sem processo legal”.


A prisão, pelo que podemos ler nos depoimentos dos presos, é um pesadelo kafkiano. Os atormentados personagens fictícios de Kafka encontram em Guantánamo correspondentes do mundo real que nada deixam a desejar. Os prisioneiros do império, assim como os personagens de Kafka, encontram-se impotentes diante de um poder tentacular, arbitrário, labiríntico e atrozmente desumano que lhes sequestra a vida, a dignidade e escarra no Estado de Direito. Um poder que não nomeia claramente o crime, usa e abusa de métodos ultraviolentos para obter as suas “verdades”  e não dá aos sujeitados o direito de defesa. Afinal, em Guantánamo a culpa é indubitável. A vida dos presos encontra-se em suspenso. Estão num limbo jurídico, não são julgados nem libertados. Nem direito a greve de fome eles tem. Os zeladores da prisão injetam alimento por sondas contra a vontade dos presos.


De acordo com o relato de Moqbel, que em março de 2013 se encontrava hospitalizado em decorrência de uma greve de fome, oito homens das Forças de Reação Extrema o amarraram numa cama e o forçaram a se alimentar através de uma sonda: "Eu passei 26 horas neste estado, amarrado a uma cama. Durante este tempo, não me permitiram ir ao banheiro. Eles inseriram um catéter, o que foi doloroso, degradante e desnecessário. Eu não recebi permissão nem para rezar". Esta técnica ambivalente de preservação da vida dos presos, que também funciona como mecanismo de punição e desumanização, lembra a terrível máquina de tortura e extermínio detalhadamente descrita na “Colônia Penal”. 


 Guantánamo é verso e reverso, ao mesmo tempo estranho e familiar, da democracia norte-americana. É o porão da democracia, supondo que este porão, mantido longe da vista, dê sustentação arquitetônica a casa, que esta à vista. Porão/prisão do império, Guantánamo desafia o Direito Internacional, faz pouco caso do Estado de Direito e revela os laços indissociáveis entre democracia, violência e intolerância na história dos Estados Unidos. Produto direto do realismo neoconservador da doutrina Bush, a prisão erguida em território alheio é a melhor tradução da arrogância do império e do desrespeito às leis internacionais, não apenas da administração Bush, mas da forma como os Estados Unidos historicamente conduzem e perseguem seus objetivos no plano internacional.

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