GUANTÁNAMO:
O Pesadelo kafkiano nos Porões Obscuros da Democracia Norte Americana.
"Assim, não há possibilidades de engano.
As nossas autoridades, até onde eu conheço, e os meus conhecimentos não vão
além das categorias mais baixas, não são daquelas que andam atrás das culpas
das pessoas, mas, como diz a Lei, são forçadas pelos delitos a enviarem-nos a nós,
os guardas. É assim a Lei. Como poderá haver enganos?"
(Fala do personagem Franz, guarda do presídio
do romance “O Processo”, de Franz Kafka).
As notícias que nos
chegam com alguma frequência da prisão de Guantánamo são perturbadoras, embora não
nos causem surpresa. Os relatos de presos publicados no The New York Times ou os
documentos vazados pelo Wikileaks deixam entrever uma realidade
brutal e um completo desprezo pelo Estado de Direito, dignos dos piores pesadelos
imaginados na ficção Kafkiana.
Não é nenhuma novidade
falar do “realismo” singular e da atualidade de Kafka. Realismo, no sentido estético,
que traduz um olhar minucioso e crítico sobre o mundo, e o desejo de mostrar,
com imagens deformadas e absurdas, as coisas como elas são (Não confundir com a
pretensão conservadora positivista de descrever o mundo como ele realmente é). Numa
conversa com um amigo sobre uma exposição de obras cubistas e pós-cubistas de
Picasso, Kafka disse que “a arte é um espelho que adianta, como um relógio, não
as nossas formas, mas as nossas deformidades”. O “realismo” de Kafka, apontado para
as deformidades do mundo e a incomunicabilidade entre as pessoas, é do tipo que
comporta a indignação e intervém no sentido de sacudir o conformismo.
Os personagens kafkianos
e as situações inesperadas em que repentina e inexplicavelmente se encontram
poderiam ser facilmente identificados com situações dos nossos dias. O homem do
campo, da fábula “Diante da Lei”, poderia ser substituído por um aposentado do
INSS sem muita dificuldade. Alguns prisioneiros de Guantánamo, do mesmo modo,
parecem viver o pesadelo do personagem Josef K, de “O Processo”. No romance,
escrito por Kafka em 1914 e publicado postumamente em 1925, o personagem Josef
K acorda num belo dia e, sem que lhe exponham os motivos, é levado à prisão e
submetido a um intrincado processo por um crime que não lhe é revelado. A
individualidade de K fora sequestrada por uma lei impessoal e distante,
expressão de uma coletividade anônima e sem rosto. Impotente diante de um poder
invisível e hierarquizado, cujas manifestações mais próximas são os guardas da
prisão, K vê sua vida se esvair num longo e incompreensível processo.
Quantos prisioneiros em
Guantánamo não estão nesta mesma condição? Presos numa malha de poderes
invisíveis, são mantidos sem acusação formal, sem direito a um julgamento e a
informações, sem saber qual é afinal o seu crime ou do que exatamente estão
sendo acusados. Como no romance “O Processo”, o Estado de Direito não existe em
Guantánamo. “N´O Processo a ficção básica é a do Estado de Direito” (Luiz Costa
Lima). Em Guantánamo a ausência desta situação jurídica é a realidade básica.
A vaga acusação de
terrorismo, em alguns casos sem provas concretas, é tão genérica que de modo
algum autoriza a prisão dos supostos suspeitos. Mas o que manda, na ausência do
Estado de Direito, é a lógica da suspeição. A suspeição produzida e a delinquência
presumível. Foucault, estudando as instituições penais do século XIX, percebeu
uma cadeia de discursos sobre a delinquência que identificaria, por um exame
das tendências psicológicas dos suspeitos, um criminoso antes mesmo do crime
ser cometido. No mundo pós 11 de setembro a lógica da suspeição em ação se
anteciparia ao crime e identificaria os suspeitos pelos sobrenomes, pelo país
em que vive, pela religião que professa e pelos traços fisionômicos. Um
iemenita de passagem pelo Paquistão em 2001, depois de uma temporada no
Afeganistão, seria um suspeito em potencial a procura de um crime. Neste caso, meus
caros, infelizmente, não estamos no campo da ficção.
Samir Naji al
Hasan Moqbel, um iemenita de 35 anos, um dos tantos Josef K de Guantánamo, afirma
que está preso há 11 anos: "Eu poderia estar em casa há anos - ninguém
seriamente acha que eu sou uma ameaça -, mas eu ainda estou aqui. Há anos os
militares disseram que eu era um 'guarda' de Osama bin Laden, mas isso não
fazia sentido, como algo tirado de filmes americanos que eu costumava
assistir". Vivendo uma típica novela kafkiana da vida real, Moqbel contou,
num relato publicado no The New York Times, que “viajou para o Afeganistão no início dos anos
2000 após ouvir de um amigo de infância que poderia melhorar sua condição de
vida no país. Ele diz que descobriu que não havia empregos apenas quando chegou
ali, mas que não tinham dinheiro para voltar para casa. Quando os Estados
Unidos invadiram o Afeganistão em 2001, ele conseguiu ir para o Paquistão.
"Os paquistaneses me prenderam quando eu pedi para ver alguém da embaixada
do Iêmen. Eu fui então enviado para Kandahar (no Paquistão), e colocado no
primeiro avião para Gitmo (termo que se refere a Guantánamo).”
Vale lembrar as
palavras de Josefina Salomon, porta-voz do Programa de Combate ao Terrorismo da
Anistia Internacional: “Guantánamo não faz do mundo um lugar mais seguro e sim
um lugar onde qualquer um pode ser pego de sua casa, colocado em um avião,
preso em um centro de detenção sem nem ao menos saber do que é acusado e ficar
anos sem processo legal”.
A prisão, pelo que podemos
ler nos depoimentos dos presos, é um pesadelo kafkiano. Os atormentados personagens
fictícios de Kafka encontram em Guantánamo correspondentes do mundo real que
nada deixam a desejar. Os prisioneiros do império, assim como os personagens de
Kafka, encontram-se impotentes diante de um poder tentacular, arbitrário,
labiríntico e atrozmente desumano que lhes sequestra a vida, a dignidade e
escarra no Estado de Direito. Um poder que não nomeia claramente o crime, usa e
abusa de métodos ultraviolentos para obter as suas “verdades” e não dá aos sujeitados o direito de defesa.
Afinal, em Guantánamo a culpa é indubitável. A vida dos presos encontra-se em
suspenso. Estão num limbo jurídico, não são julgados nem libertados. Nem
direito a greve de fome eles tem. Os zeladores da prisão injetam alimento por
sondas contra a vontade dos presos.
De acordo com o relato
de Moqbel, que em março de 2013 se encontrava hospitalizado em decorrência de
uma greve de fome, oito homens das Forças de Reação Extrema o amarraram numa
cama e o forçaram a se alimentar através de uma sonda: "Eu passei 26 horas
neste estado, amarrado a uma cama. Durante este tempo, não me permitiram ir ao
banheiro. Eles inseriram um catéter, o que foi doloroso, degradante e desnecessário.
Eu não recebi permissão nem para rezar". Esta técnica ambivalente de
preservação da vida dos presos, que também funciona como mecanismo de punição e
desumanização, lembra a terrível máquina de tortura e extermínio detalhadamente
descrita na “Colônia Penal”.
Guantánamo é verso e reverso,
ao mesmo tempo estranho e familiar, da democracia norte-americana. É o porão da
democracia, supondo que este porão, mantido longe da vista, dê sustentação arquitetônica
a casa, que esta à vista. Porão/prisão do império, Guantánamo desafia o Direito
Internacional, faz pouco caso do Estado de Direito e revela os laços
indissociáveis entre democracia, violência e intolerância na história dos
Estados Unidos. Produto direto do realismo neoconservador da doutrina Bush, a
prisão erguida em território alheio é a melhor tradução da arrogância do
império e do desrespeito às leis internacionais, não apenas da administração
Bush, mas da forma como os Estados Unidos historicamente conduzem e perseguem
seus objetivos no plano internacional.
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