WADJDA: A
Bicicleta Como Metáfora da Emancipação Feminina na Arábia Saudita.
Na
mesma semana em que correu o mundo a notícia de que as mulheres foram proibidas
de frequentar a biblioteca pública da cidade de Hafar AL Batin, na Arábia
Saudita, foi exibido no cinema do CIC, em Florianópolis, o filme “Wadjda” (“Um Sonho para Wadjda”).
O filme é o prenúncio das mudanças que muito lentamente começam a ocorrer no
país. Haifaa al-Mansour, primeira mulher cineasta na Arábia
Saudita, rodou o filme em 2012. É o primeiro longa-metragem filmado inteiramente
no país. Numa entrevista a revista TPM Haifaa contou que adora cinema desde
menina. Assistia filmes egípcios antigos e filmes de Bollywood,
mas eram os filmes norte-americanos os que mais mexiam com ela. “Quando fiquei mais
velha, conta Haifaa, passaram a existir locadoras de vídeo na Arábia Saudita,
mas eram proibidas para mulheres. Como eu não podia entrar, fiz amizade com o
rapaz que trabalhava em uma das locadoras perto de casa e ele levava o catálogo
de filmes na porta da loja para eu olhar.” Logo vieram os primeiros experimentos
com cinema e o documentário “Women Without Shadows”,
“sobre a história e realidade das mulheres sauditas”. Haifaa estudou cinema em
Sidney, onde iniciou o projeto do seu primeiro longa-metragem.
O
enredo de “Um Sonho para Wadjda” é simples e eficiente. Wadjda é uma menina
diferente. Não cobre o rosto com um lenço quando sai de casa, calça um all star
surrado para ir à escola (enquanto as colegas calçam sapatinhos pretos todos
iguais), ouve rock, músicas românticas e comete pequenos
delitos cotidianos como vender pulseiras não recomendáveis na escola e passar
bilhetes furtivos para os namorados proibidos das colegas. Diferentemente das
meninas da sua idade que sonham em casar, o seu sonho é comprar uma bicicleta para provar para um
menino que pode vencê-lo numa corrida. O problema é que na Arábia Saudita bicicleta é proibida pera meninas. Mitos como a perda da virgindade e a infertilidade estão associados ao objeto do desejo de Wadjda. Mas nada disso a abala.
Para
ter sua bicicleta a menina faz de tudo, junta dinheiro, faz pequenos favores
para as colegas e amigas, e se mete num concurso de declamação do corão, cujo
premio possibilitaria comprar o objeto do desejo. Vence suas dificuldades,
ganha o concurso, mas não recebe o dinheiro. O sonho fica cada vez mais
distante. No fim, de onde ela menos espera, a bicicleta chega. Ganha de presente
da mãe que, ao ver o sonho de um casamento monogâmico desaparecer, se dá conta de
que o sonho de Wadjda é, no fundo, o sonho dela: lutar por mundo com mais
espaço e direitos para as mulheres.
De
posse da bicicleta Wadjda pode enfim apostar corrida com o garoto. A
brincadeira de criança, o sonho da menina, é uma forma de dizer que as mulheres
podem disputar com os homens, se igualar, ou vencê-los. Basta a oportunidade. Mas
a oportunidade não vai cair do céu. A menina lutou pela bicicleta, desafiou o
conservadorismo e não baixou a guarda diante dos sermões, das chacotas e dos
esforços para domesticá-la. Wadjda não ganhou a bicicleta. Definitivamente, ela
a conquistou. Como conquistou o respeito do menino e do dono da loja que vendia
bicicletas.
Os
dois partem para a corrida. O menino logo fica para trás. Wadjda pedala freneticamente,
se afasta do centro mais tradicional do subúrbio e alcança a parte mais moderna
e cosmopolita da cidade. Pedala até uma avenida movimentada, para, mira o
horizonte e respira a liberdade do momento, da vitória, da conquista. Não é a vitória
sobre o garoto que importa. O que está em jogo aqui é a autonomia de andar com
as próprias pernas (rodas) e alcançar novos horizontes. Antes ela pedalava escondida
de todos, num espaço restrito, na bicicleta do amigo. E nós nos perguntamos:
qual é o limite do sonho de Wadjda?
A
bicicleta de Wadjda é uma metáfora da luta pele emancipação feminina num dos países
mais conservadores e machistas do mundo. Mas deixemos que Haifaa
al-Mansour nos conte com suas palavras o porque da bicicleta: “A bicicleta é uma metáfora para liberdade de movimento, que não
existe para mulheres e garotas na Arábia Saudita. Se eu quero ir a qualquer
lugar, preciso de permissão de algum homem da família. Eu não posso dirigir um
carro nem mesmo andar na rua ou tomar um trem sem permissão. Eu queria que a
aceleração, o movimento da bicicleta desse vida ao debate intelectual e fizesse
as pessoas entenderem que isso é apenas movimento. Essa foi a forma que
encontrei de dar uma face humana, levar vida a alguns desses problemas de que
falamos de um maneira tão teórica.”
O
filme situa-se num contexto de lentas mudanças em relação aos direitos
femininos no país que ocupa o 131º lugar, em um total de 135 países, de acordo com
o último Informe sobre Disparidade de Gênero do Foro Econômico Mundial, publicado
em 2012. A ONG Human Rights Watch apresentou recentemente um relatório mostrando
a ineficiência do governo saudita em garantir os direitos de 9 milhões de
mulheres e crianças no país, 8 milhões de trabalhadores estrangeiras e 2 milhões
de xiitas. As mulheres ainda precisam da autorização tutelar do homem para viajar,
estudar e para abrir contas bancárias, mas os sinais de mudança começam a aparecer.
Em 2013 uma campanha intitulada “Abusos Não Mais”, foi ao ar
nos canais de mídia social, Twitter e Facebook. A campanha contra a violência doméstica é pioneira na Arábia Saudita.
Mostra uma mulher coberta com o véu islâmico e com marcas de
agressão no olho, seguida
do slogan: “Algumas coisas não podem ser escondidas”.
Por fim, o filme de Haifaa al-Mansour chama a atenção para as particularidades das lutas das mulheres
sauditas e, de um modo geral, no mundo islâmico. A religião, sistema cultural
(Geertz) sob o qual se fundamenta o regime de restrições às liberdades femininas,
diferentemente do Ocidente, é usada pelas feministas muçulmanas como
instrumento de luta por direitos civis e liberdades. Wadjda aprendeu a usar a
religião para conquistar pequenas vitórias. A competição escolar de conhecimentos
e recitação do Alcorão, mencionada anteriormente, é para ela a oportunidade de
ganhar dinheiro para comprar a tão sonhada bicicleta. A menina faz uso tático e
invertido da religião para alcançar seus objetivos. Num misto de
inocência e esperteza, Wadjda atua astutamente nas fendas sociais, driblando o
discurso dominante e construindo alternativas ao cerceamento das liberdades
femininas. É a arte ordinária de transformar fendas em espaços de liberdade.
“A Arábia Saudita ainda tem um longo caminho a percorrer, as mulheres ainda têm que lutar muito, se unir, se impor... Fazer filmes foi a minha maneira de fazer isso.” (Haifaa al-Mansour).
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