O PRESIDENTE EUROPEÍSTA E O VIZINHO SELVAGEM (DES)GOVERNADO POR UM PRESIDENTE NEGACIONISTA
Não sei exatamente o que o
presidente da Argentina Alberto Fernández tinha em mente quando disse que os
mexicanos vieram dos indígenas, os brasileiros da selva e os argentinos da
Europa, de barco. Não vou acusá-lo de racista porque ele pode, na tentativa de
soar poético, ter cometido apenas um ato infeliz. Mas uma coisa é certa, errou
a autoria. Os versos não são de Octávio Paz, são do refrão da canção “Llegamos
de los barcos”, do músico argentino Litto Nebbia, amigo do presidente.
Mas isso não explica muita coisa.
Além de não sabermos ao certo as intenções de Fernández, o autor dos versos, mesmo
que admitamos a licença poética, parece não saber que a gênese histórica dos
três povos guarda muitas semelhanças.
Europeus espanhóis, sob o comando
de Hernán Cortez, também chegaram de barco no México, em 1519, onde se
depararam com diversos povos: Maias, Totonaques, Astecas. Europeus portugueses
também chegaram de barco nas costas brasileiras, em 1500, onde viviam inúmeros
povos indígenas, de diferentes etnias. Indígenas de várias etnias também viviam
nas selvas, na região onde hoje é a Argentina, quando os espanhóis, liderados
por Juan Dias de Solís, chegaram pelo Mar del Plata em 1516. Até onde eu
entendo, brasileiros, argentinos e mexicanos, com o perdão do anacronismo, porque
esses povos ainda não existiam, vieram do encontro, às vezes violento, às vezes
mais amistoso, dos grupos indígenas com europeus que chegaram de barco.
Africanos, de diferentes etnias, também chegaram de barcos, mas escravizados,
na costa brasileira e, em menor número, na Argentina (Fernández não lembrou
deles).
Considerando então que para
Fernández os argentinos e os mexicanos vieram respectivamente dos europeus e
dos indígenas, o que ele quis dizer sobre os brasileiros terem vindo da selva?
Que somos um povo, nem indígena nem europeu, que nasceu espontaneamente nas
matas, já com as características identitárias atávicas dos brasileiros, e posteriormente
ocupou o território? Que descendemos de
algum tipo particular de primata que das selvas pulou das árvores e fundou
cidades?
Pode ter sido uma gafe,
mas também pode ter sido uma sobrevivência intempestiva do pensamento
racialista do século XIX, que remonta ao político e intelectual Domingos
Faustino Sarmiento, que foi presidente argentino entre 1868 e 1874. Sarmiento
foi um notório detrator das “raças” que julgava inferiores, negros e indígenas.
Sustentava que a debilidade, a instabilidade e o atraso que marcavam a região,
e a Argentina em particular, estavam relacionados à presença de “raças”
inferiores e à mestiçagem. A superação do atraso e a garantia da estabilidade dependeriam
de políticas de homogeneização social e cultural, sob o signo de uma unificação
étnica branca. Para alcançar este ideal, colocou em ação políticas de
extermínio dos indígenas, como os Araucanos do sul, e institucionalizou e incentivou
políticas branqueamento da Argentina por meio da migração europeia, o que
também aconteceu no Brasil. Este pensamento racialista se projetou pelo século
XX e prosperou entre setores da elite argentina. Conscientemente ou não, a fala
de Alberto Fernández ecoou o determinismo racial e o ideal de uma sociedade
europeia e branca do século XIX.
Seja como for, uma gafe tosca,
um descuido com as palavras ou a manifestação acidental de um pensamento
racista internalizado, Fernandez, de um só golpe, branqueou de vez a Argentina,
o que a geração de Sarmiento não conseguiu fazer, eliminou toda diversidade e demarcou
de vez, no melhor estilo “Civilização e Barbárie”, a diferença cultural com o
vizinho selvagem.
Para fechar com chave de ouro a
mancada, Fernández ainda deu palco para o seu adversário falastrão e
oportunista fazer graça, sem graça nenhuma, e pousar de amigo dos índios. A
política (anti)indigenista do presidente brasileiro não o permite querer
brincar de rei da selva.
No começo do mandato, por meio de medida provisória, o governo tentou subordinar a FUNAI ao Ministério da Agricultura, ato felizmente revertido pelo STF. Mas o desmonte da FUNAI e medidas contrárias a demarcação das terras indígenas seguiram adiante. A normativa 09, segundo denúncia do MPF, excluiu da base de dados do sistema que administra a gestão fundiária no Brasil todas as terras indígenas que ainda não estivessem no último estágio de demarcação. Com esta medida, ou manobra, os territórios a serem demarcados desapareceram do sistema e os antigos títulos de propriedade anulados pela Constituição de 88 foram validados.
O presidente cloroquiner,
que quer parecer amigo dos índios, vetou, em julho de 2020, o projeto aprovado
pela Câmara e pelo Senado que pretendia levar água potável, matérias de
higiene, leitos hospitalares e respiradores mecânicos às aldeias, para combater
a covid em terras indígenas. A desculpa para o veto é tão repulsiva que não
merece ser lembrada.
Senhor presidente Alberto
Fernández, o brasileiro, identidade não fixa e plural, vem de muitos
lugares, de barco, de jangada, a pé, a cavalo, voando, fala muitas línguas, tem
muitas e belas cores, e luta, apesar dos Ricardos Sales, para preservar uma das
coisas mais extraordinárias que tem, as selvas. Mas alguns brasileiros, por
vezes autoproclamados cidadãos de bem, assim como certa elite argentina,
ainda vive na selva (uso metafórico) da ignorância, da barbárie, do
autoritarismo, do preconceito e do desrespeito às diferenças.
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