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quarta-feira, 14 de julho de 2021

 

FUNDAÇÃO Fahrenheit PALMARES: O EXPURGO BOLSONARISTA DO ACERVO DA BIBLIOTECA

 


O Relatório bolsonarista sobre a Biblioteca da Fundação Cultural Palmares, assinado por Sérgio Camargo e Marco Frenette, dirigido a “todas as pessoas de bem” (seja lá o que isso signifique para eles), é uma coleção de slogans ultraconservadores, arbitrariedades e aberrações. O texto é revestido de um espírito messiânico e patriótico (no sentido corrompido destes conceitos), e os autores parecem imbuídos da missão elevada, a eles conferida pelo próprio Messias, de purificação da Biblioteca e dos ideais da Fundação, contaminados desde a origem, sugere o Relatório, pelo esquerdismo militante.  

Depois de uma busca policialesca no acervo da Biblioteca, no estilo distópico Fahrenheit 451, os inquisidores Sério Camargo e Marco Frenette decidiram pelo descarte de cerca de 300 livros considerados impróprios à Fundação (Mas o expurgo deve alcançar 9 mil títulos). As obras sequestradas abordam, entre outros temas, educação sexual, história do banditismo, sexualidade, história do marxismo, estudos do marxismo revolucionário e de técnicas de guerrilha.  As manobras desonestas que fizeram para justificar o sequestro das obras são de doer. Estudos importantes sobre educação sexual de jovens e adolescentes foram caracterizados como “sexualização da infância”, desconsiderando inclusive o contexto em que foram escritos, e um estudo originalíssimo do Hobsbawm sobre o bandistimo social e rural, que prosperou em algumas partes do mundo sob a ausência do estado, foi classificado como “bandidolatria”. Para comprovar o “elogio ao banditismo”, destacam um trecho do livro, recortado arbitrariamente. Na passagem, o historiador diz que o “banditismo é liberdade, mas numa sociedade camponesa poucos podem ser livres. A maioria das pessoas está presa aos grilhões da autoridade e do trabalho, um reforçando o outro”. Os inquisidores, intelectualmente desonestos, não fazem nenhum esforço para entender o emprego da noção de liberdade, numa sociedade rural tradicional que beira a servidão. Estigmatizam os livros com adjetivos desqualificadores, sem o menor esforço para entendê-los.

A “interpretação” que fazem das obras, distorcida e mal-intencionada, serve apenas para justificar suas posturas autoritárias e agradar ao chefe no Planalto. A ignorância carola dos inquisidores censurou também o livro As Santas Prostitutas, do antropólogo e tradicionalista gaúcho Antonio Augusto Fagundes, sobre a devoção popular por santas não canônicas, que o povo decidiu cultuar. E não poupou nem o passado distante. Sobrou também para a obra Ciranda dos Libertinos, do Marquês de Sade, julgada como pornografia juvenil e adulta, sem nenhuma contextualização. O julgamento deles é atemporal, olímpico, perpetrado por uma moral que não pertence a este mundo. 

Os livros sequestrados da Biblioteca certamente não foram lidos pelos censores. Mapearam os títulos, folhearam uma página ou outra, já convictos do que representavam, julgaram e sentenciaram. É uma caça às bruxas, um atentado à memória da Fundação e um desrespeito brutal à diversidade do conhecimento, comparável ao Index librorum prohibitorum, de meados do século XVI, e às queimas de livros nos regimes nazifascistas.

                                Estudantes nazistas queimando livros de autores judeus. 10 de maio de 1933, em Berlim.

Ademais, se lido com atenção, o Relatório não é sobre conteúdo dos livros, é sobre as mentes perturbadas dos inquisidores. É uma manobra suja para se mostrarem relevantes e alimentar o ódio ideológico pelo que desconhecem. É uma prestação de contas para justificar suas nomeações.

O argumento para encobrir a censura e a liberdade de pensamento, descabível de todos os pontos de vista, é a divergência dos livros dos propósitos da Fundação.  A função da Fundação, segundo o Relatório, é a “promoção da cultura negra e a valorização do negro como parte inseparável do povo brasileiro”. O resto é “desvio da função”. O acervo da Biblioteca não atendia a esta finalidade, diz o relatório. As obras descartadas tratam de temas que não interessam à Fundação. Para a professora de História do Livros, Ana Virgínia Pinheiro, não existe na literatura da Biblioteconomia qualquer referência aos critérios se seleção adotados pela Fundação para justificar a exclusão dos livros. O Relatório, alheio dos princípios bibliométricos que devem orientar a política de desbaste de um acervo, carece de bases técnicas e científicas.

Não resta dúvida de que os censores têm um conceito limitadíssimo de Biblioteca e uma intepretação mais limitada ainda dos propósitos das Fundação. Na verdade, o que eles querem é uma Biblioteca domesticada, alinhada com as diretrizes do bolsonarismo e das teses negacionistas do racismo, que tem sua gênese na noção equivocada de “democracia racial”, que surgiu ainda no século XIX e se projetou no século XX, e pintou e pinta o Brasil como uma democracia mestiça ou um paraíso racial.

Numa Biblioteca como a da Fundação cabem as obras de Gilberto Freyre e Florestan Fernandes, cabem todos os autores e obras que de alguma forma trataram do tema da escravidão e da cultura no Brasil, não importando o espectro político. E por se tratar de uma Biblioteca, aberta ao público, todos os temas são bem-vindos. A história da “cultura negra” no Brasil dialoga com uma variedade de temas. Não se limita à “cultura negra” e a “valorização do negro”.

Se o presidente da Fundação acha que a biblioteca é “brutalmente parcial”, que tem apenas uma linha, não descarte o que tem, acrescente o que julgue faltar. O acervo da Biblioteca é amplo e diversificado porque diferentes grupos e tendências a abasteceram ao longo dos anos. A Biblioteca não é particular, não é a estante de livros do Sérgio Camargo. Como toda Biblioteca, ela é cumulativa e diversa. Ela tem que contemplar os interesses do leitor conservador, do leitor de esquerda, do leitor.

 

                                    Recorte seletivo do acervo da Biblioteca para caracterizar a “dominação marxista”.

Os autores do Relatório falam em três décadas de “dominação marxista na Fundação”. Bem, fazer o que se a direita nunca se interessou pela história da escravidão e pela sorte dos negros e negou a existência de racismo no Brasil, como o próprio Sérgio Camargo? A Fundação tem uma história que não pode ser apagada, gostem dela ou não. Criada em 1988, às Vésperas do Centenário da Abolição da escravatura, foi um marco das lutas do movimento negro no Brasil. A gênese na Fundação articula-se às lutas históricas do movimento negro contra o racismo e pela memória dos africanos no Brasil, e boa parte desta história está ligada aos movimentos de esquerda das décadas 1950, 1960 e 1970, e aos intelectuais negros progressistas, como Carlos Alves Moura, Lélia González, Abdias do Nascimento, Conceição Evaristo, Francisco Lucrécio, Hamilton Cardoso (A lista é enorme).

O cidadão que hoje preside a Fundação, que se define no Facebook como “negro de direita, contrário ao vitimismo e ao politicamente correto”. O problema não é esse. Ser de direita ou de esquerda é escolha de cada um. E ser crítico do vitimismo, quando ele de fato existe, é uma virtude. Não é o caso do Camargo. Na verdade, a julgar pelas declarações, ele é um polemista barato de rede social, imaturo e negacionista tóxico. Gosta de se exibir e causar com frases de efeito agressivas e xingamentos rasteiros. Destaco algumas declarações do seu vomitório geral.

“No Brasil de hoje Zumbi seria um bandido ou defensor de bandido, integrante do MST”.

“O Dia da Consciência Negra "celebra" a escravização de mentes negras pela esquerda. Precisa ser abolido!”

“Esses filhos da puta da esquerda não admitem negros de direita. Vou colocar meta aqui para todos os diretores, cada um entregar um esquerdista. Quem não entregar esquerdista vai sair. É o mínimo que vocês têm que fazer.”

“Deviam dar medalha a branco que meter preto militante na cadeia por crime de racismo”.

“Angela Davis é uma comunista e mocreia assustadora”.

“Se você é africano e acha que o Brasil é racista, a porta da rua é serventia da casa”.

Como levar a sério e aceitar no comando da Fundação Palmares um homem que, contra todas as evidências, nega o racismo no Brasil e defende a ordem escravocrata? Além disso, o sujeito é um macartista enfurecido que obriga os diretores da Fundação e “entregar um esquerdista”, sob pena de serem demitidos.

Para Camargo, a “escravidão era um negócio lucrativo tanto para os africanos que escravizavam, quanto para os europeus que traficavam escravos”. O sujeito diz isso como se fosse a novidade das novidades, como se estivesse revelando alguma coisa que mudaria a visão que temos sobre a escravidão. Qualquer um que tenha lido Joseph Conrad, Manolo Florentino ou Jacob Gorender, sabe que o tráfico era vantajoso, tanto África quanto nas Américas, tanto para os traficantes (comércio) quanto para os régulos africanos (escambo). Os historiadores quando sustentam esta tese, embora divirjam em alguns pontos, pretendem mostrar que o tráfico durou tanto tempo justamente porque o comércio era bastante vantajoso nas duas margens do Atlântico. Mas o que o Camargo pretende? Relativizar a escravidão comprometendo os próprios africanos com o comércio de gentes? Se ele se dispusesse a ler os livros e os autores que demoniza talvez não fosse tão leviano nas afirmações.

 Sua intenção é expurgar a Fundação de tudo o que não agrada sua sensibilidade “conservadora e de direita”. Camargo quer que a Fundação tenha a cara dele. Se comporta como dono. E na condição de novo dono está fazendo uma faxina para descartar e jogar fora tudo o que julga inadequado. A faxina começou pela retirada de nomes de Benedita da Silva, Madame Satã, Marina Silva, Milton Nascimento, Zezé Motta, Gilberto Gil, Elza Soares, Martinho da Vila (27 no total), homenageados pela Fundação. Pessoas que, quer ele queira ou não, tiveram e tem um papel importante na Fundação e na história dos movimentos negros.

A intenção indisfarçável dos autores do Relatório é apagar (queimar) a história de lutas da Fundação e sua vinculação ao pensamento progressista brasileiro, e reduzi-la a um apêndice domesticado do bolsonarismo. Querem uma Fundação com a sua cara.

Ray Douglas Bradbury, numa entrevista à Playboy em 1996, comentando sobre sua obra Fahrenheit 451, disse que a “ficção científica é uma ótima maneira de fingir que você está escrevendo sobre o futuro quando, na verdade, você está atacando o passado recente e o presente.” A “queima” dos livros da Fundação Palmares conseguiu o feito de reunir no presente o pior dos regimes totalitários do passado e abreviar o caminho para o futuro distópico, imaginado por Bradbury. No romance, Guy Montag é um bombeiro, agente do Estado, desviado de sua ocupação original, cuja única função é procurar e queimar livros.

Sérgio Camargo, crítico da supressão das liberdades nos regimes comunistas, age do mesmo modo. Numa atitude totalitária, sequestra livros e os queima, metaforicamente, no altar do ultraconservadorismo. Sérgio Camargo é o Guy Montag do pesadelo distópico bolsonarista que rasga e dilacera o tecido social do Brasil.







 

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