CARTA DE KROPOTKIN À LENIN: Da Revolução à
Ditadura de um Partido.
A crítica anarquista, a despeito do romantismo
revolucionário e de certa ingenuidade política (o que sempre me pareceu ser o
charme dos anarquistas), sempre foi das mais lúcidas e honestas. A integridade,
a firmeza de caráter e o antiautoritarismo de homens como Kropotkin (e aqui no
Brasil o inesquecível Edgard
Leuenroth) representam um contraponto necessário que sublinha e acentua
os desvios e os abusos praticados em nome do socialismo e do comunismo ao longo
do século XX e neste começo do século XXI. O legado é inestimável. Vou dar uma
pequena amostra.
Depois da vitória dos bolcheviques Piotr Alexeyevich Kropotkin retornou
entusiasmado à Rússia, em meados de 1917. Estava motivado e inebriado pelos
acontecimentos. Lenin tentou uma aproximação a fim de convertê-lo à causa
bolchevique. O prestígio de Kropotkin era enorme na Rússia. Mas o entusiasmo
logo se transformou em manifesta desconfiança. Passou a criticar duramente a
postura totalitária e os métodos bolcheviques, acusando-os de estar construindo
uma ditadura sob o comando de Lenin, sem se importar com o próprio povo, que
era mais revolucionário que os próprios bolcheviques. No começo de 1919 os dois
se reuniram em Moscou e Kropotkin defendeu as cooperativas, que estavam sendo
atacadas pelos bolcheviques. O tom da reunião foi ameno, mas a partir daquele
momento as críticas foram se tornando cada vez mais duras. Numa das cartas à
Lenin, Kropotkin disse sem meias palavras: “Lenin não se compara a nenhuma
figura revolucionária da história. Revolucionários tinham ideais, Lenin não tem
nada. Lenin, suas ações concretas são completamente contrárias às ideias que
você finge sustentar”. Não há dúvidas de que o pragmatismo glacial e as
escolhas de Lenin assustavam o experiente e ressabiado anarquista. Em certo
sentido entendo as escolhas de Lenin (além de admirá-lo como vigoroso teórico),
e esforço-me para compreendê-las naquele contexto. Mas Kropotkin, que também viveu
aqueles tempos turbulentos, é a crítica contemporânea, escrita no calor da
hora, ao caminho que Lenin decidiu trilhar. Por mais que eu me esforce para entender
Lenin, devo admitir, minha consciência histórica sobre o que se convencionou
chamar de “revolução russa”, deve muito mais a Kropotkin. A desconfiança do
velho anarquista em relação aos pretensos guias da vontade popular orienta, em
grande medida, a leitura que faço dos caminhos de certa esquerda
latino-americana hoje.
Kropotkin morreu alguns meses depois, em 8 de
fevereiro de 1921. O governo bolchevique, que sempre tentou usar a seu favor a
popularidade e a credibilidade do velho e autêntico REVOLUCIONÁRIO, ofereceu um
funeral oficial. Felizmente a família e amigos libertários recusaram a duvidosa
oferta. Uma multidão de trabalhadores, estudantes, camponeses, soldados e
admiradores foram espontaneamente até a casa onde Kropotkin estava sendo
velado. Escolas fecharam as portas e a multidão acompanhou o cortejo até a estação
de trem, de onde o corpo foi transportado para Moscou. Na capital uma multidão
de mais de cem mil pessoas recebeu o corpo e o acompanhou por oito quilômetros
até o cemitério Novodévichi, ao som da Sinfonia Patética, de Tchaikovsky.
Vários amigos e correligionários tomaram a palavra para homenagear Kropotkin, e
Aarón Barón (anarquista que foi posto em liberdade provisória), último a falar,
protestou contra as prisões arbitrárias e as torturas contra os revolucionários
que faziam oposição aos bolcheviques (Prisões arbitrárias e torturas não
acontecem apenas na prisão de Guantánamo). Para muitos historiadores do
anarquismo o funeral de Kropotkin foi a última grande manifestação libertária
na URSS. A máquina bolchevique de triturar não permitiria mais manifestações
como esta. Recomendo que pesquisem sobre a figura “dramática e dostoievskiana”
(George Woodcock) de Nestor Makhno, líder anarquista rural que enfrentou a
ferocidade do “exército vermelho”. Só depois de vencer Makhno e as forças
anarquistas é que os bolcheviques conseguiram “adaptar o mundo camponês ao
estado marxista” na Ucrânia (Woodcock).
Oradores e amigos no funeral de Kropotkin.
Multidão acompanhando o funeral.
Na carta endereçada ao líder da revolução,
reproduzida abaixo, Kropotkin sugere que o camarada Lenin saia do seu gabinete,
deixe os livros um pouco de lado e vá conhecer os anseios, os desejos e as necessidades
do “povo”. Uma revolução não poder ser concebida à revelia do “povo”. Uma
revolução concebida apenas na teoria pode se converter em fantasmagoria. Neste
caso, o “povo”, em nome do qual se opera a mudança, torna-se um colossal
estorvo, e a revolução se volta contra ele. A revolução, como ideal, não enche
barriga. Ela pode ser o alimento do espírito para os intelectuais, mas não é o
trigo que alegra a mesa do “povo”.
As palavras dirigidas à Lenin em 1920 revelaram a
força da intuição e a aguda observação do velho anarquista. Nas décadas
seguintes o partido se transformaria num mostro tentacular e devorador da
própria revolução: a versão bolchevique do Saturno de Goya. A revolução
devoraria seus filhos e maltrataria o “povo”, em nome do “povo”. Lenin já
estava morto, Kropotkin também. Mas antes de morrer Lenin foi alertado.
Mas afinal, o que Kropotkin teria a dizer a nós,
homens e mulheres do século XXI, que ainda acreditamos que o mundo pode ser
melhor (embora por caminhos diferentes)? Além do alerta do perigo do
autoritarismo que ronda a ideia de revolução, um recado para os
“revolucionários” latino-americanos: o “povo” é de verdade. “Povo” não é
“massa”. “Povo” não é discurso. Revolução não é um brinquedinho temporário da classe
média universitária nem um capricho de uma elite intelectual que se refugiou preguiçosamente
no mundo das ideias. Deixem a teoria e a soberba um pouco de lado e afinem os
ouvidos. Ouçam o que o “povo” tem a dizer. Pode soar estranho, conservador até,
mas se não for assim, o ideal da revolução vai seguir sua marcha surda e
indiferente, iluminada por uma teoria descolada do mundo real que atribui um
papel ao “povo” que ele teimosamente se recusa a cumprir.
As palavras e o alerta de Kropotkin ecoam em
“nuestra América” (sempre as voltas com a “revolución”), os métodos
bolcheviques também. Kropotkin, revolucionário genuíno e crítico implacável do
autoritarismo, é um excelente companheiro de viagem pela história das
revoluções sul-americanas e seus desdobramentos contemporâneos. O velho
anarquista sabia das coisas.
A Carta.
“Vivendo no centro de Moscou, você não pode
conhecer a verdadeira situação do país. Teria de deslocar-se às províncias,
manter estreitos vínculos com as pessoas, compartilhar seus desejos, trabalhos
e calamidades; com os esfomeados – adultos e crianças – suportar os
inconvenientes sem fim que impedem a obtenção de provisão para um mísero
lampião … E as conclusões a que chegaria, poderiam ser resumidas numa só: a
necessidade de abrir caminho para condições de vida mais normais. Se não o
fizermos, esta situação nos conduzirá a uma sangrenta catástrofe. Nem as
locomotivas dos aliados, nem a exportação de trigo, algodão, cobre, linho ou
outros materiais dos quais temos enormes necessidades poderão salvar a
população.
Em vez disso fica uma verdade: ainda que a ditadura de um partido constituísse um meio útil para combater o regime capitalista – o que duvido muito - , esta mesma ditadura seria totalmente nociva para a criação de uma ordem socialista. O trabalho, necessariamente, tem de constituir-se na base das forças locais, mas até agora, isto não ocorre nem é estimulado por nenhum lado. Em seu lugar se encontram, a todo instante, individualidades que desconhecem a vida real e cometem os maiores erros, ocasionando a morte de milhares de pessoas e arruinando regiões inteiras. Sem a participação das forças locais, sem o trabalho construtivo de baixo para cima, executado pelos trabalhadores e todos os cidadãos, a edificação de uma nova vida é impossível.
Uma obra semelhante poderia ser empreendida pelos sovietes, pelos conselhos locais. Mas a Rússia, devo enfatizar, é uma república soviética apenas no nome. A influência e o poder dos homens do partido, que são frequentemente estranhos ao comunismo – os devotos da ideia estão sobretudo instalados aí no centro – têm aniquilado a influência verdadeira e a força daquelas instituições que muito prometiam: os sovietes. Repito: não há mais sovietes na Rússia, mas somente comitês do partido que fazem e desfazem. E as suas organizações padecem de todos os males do funcionalismo.
Para sair da desordem atual a Rússia deve retomar o espírito criador das forças locais que, asseguro, são as únicas capazes de multiplicar os fatores de uma nova vida. Quando antes se compreender isto, melhor! As pessoas se disporão a aceitar mais facilmente as novas formas de organização social. Entretanto, se a situação atual se prolongar, a mesma palavra socialismo se converterá numa maldição, como ocorreu na França com a ideia igualitária durante os quarenta anos que seguiram ao governo dos jacobinos.”
Piotr Kropotkin – Dimitrov, 04 de março de 1920
Creio que é minimamente honesto falar da posiçao de Kropotkin durante a Primeira Guerra (pra nao falar de seu passado), que foi em apoio ao "imperialismo" russo contra o campo alemão e não pela derrubada do poder burguês, como a posiçao bolchevique que os levou a derrubar o czar.
ResponderExcluirDepois me parece também um pouco mais honesto dizer que entre 1919 e 1922 pelo menos, a Russia sob a direçao bolchevique se enfrentava ao exército branco (dos burgueses e oligarcas que queriam retomar o controle do país) em aliança com diverdas grandes potencias, ao mesmo tempo em que apareciam rebeliões internas sob a direçao de anarquistas como Makno.
A partir daí e tomando em consideraçao que um país semi-feudal, vindo de quatro anos de uma guerra sangrenta que dizimou milhares de vidas e devastou a Russia, podemos começar uma discussao mais séria.
Fique à vontade, Birú Birú, para escrever algo mais “sério” e mais “honesto”. Pelo que entendi da sua manifestação, você deve dominar estes atributos. De minha parte, vou continuar, sem muita seriedade, cometendo minhas pequenas desonestidades. Lembro apenas que, naquele contexto, “imperialismo” e “poder burguês” eram categorias habilmente manejadas pelos bolcheviques para justificar seus atos e desqualificar seus adversários.
ExcluirPaulo Melo:
ExcluirÓtima resposta!
Gostei muito de conhecer um pouco mais de KROPOTKIN,através desta carta.Penso que há nela índices importantes a serem mais desenvolvidos que podem ajudar-nos a compreender e agir em nosso cotidiano atual.
ResponderExcluirObrigada.
Oi Capitu. Concordo contigo.
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