Pin it

domingo, 10 de dezembro de 2017

“ESCOLA SEM PARTIDO”: Uma ilha de neutralidade seletiva no mar tempestuoso do mundo político.

“ESCOLA SEM PARTIDO”: Uma ilha de neutralidade seletiva no mar tempestuoso do mundo político.


As observações e as críticas que faço ao projeto de lei “Escola Sem Partido” levam em conta, principalmente, quem está na linha de frente do projeto e a minha experiência como aluno e como professor.

De autoria do senador Magno Malta, porta-voz (ou testa-de-ferro?) de um conservadorismo rasteiro e desinformado que (re)surgiu no Brasil na última década, o projeto de lei “Escola Sem Partido” representa uma tentativa oportunista e grosseira de invadir o ambiente escolar, patrulhar as condutas dos professores e transformá-los em transmissores passivos e apolíticos de conhecimentos estéreis. Afastar das escolas, por imposição legal, os debates/embates políticos que vicejam no mundo é pretender transformar as escolas em ilhas de neutralidade, em ambientes ascéticos e apolíticos descolados do mundo social.

O projeto de lei é um retorno ao positivismo do século XIX e à crença na neutralidade axiológica do conhecimento. Mas duvido que os proponentes deste modelo de Escola saibam disso. Se soubessem, saberiam também que a “crença” na neutralidade do conhecimento era uma entre as tantas utopias racionalistas do século XIX (como o socialismo) que foram derrubadas no século XX. Mas todos nós sabemos que os interesses que movem os defensores do projeto são outros.

Magno Malta, a ponta do iceberg, é figura folclórica do anticomunismo paranoico e anacrônico que tomou conta do Brasil nos últimos anos, ressuscitado na esteira dos graves deslizes éticos e morais dos governos do PT. Histérico e barulhento, pegou carona na onda antiesquerdista e se projetou como defensor, no senado federal, de um modelo de escola que se pretende neutra. Magno Malta é presidente da ‘Frente Parlamentar em Defesa da Família Brasileira’ e um típico “ficha suja”. Seu nome aparece em escândalos como o esquema de superfaturamento das ambulâncias (escândalo dos sanguessugas) e a aprovação de uma emenda para favorecer uma empresa fabricante de armários de cozinha (Será que é esta a relação que o senador estabelece entre o exercício do mando parlamentar e a defesa da família: armários de cozinha para a família brasileira?).

É esse senador exemplar que está propondo o projeto de lei. Malta e os defensores deste modelo de escola “neutra” não são nada neutros. Eles têm um partido. Eles são inimigos declarados das esquerdas e do marxismo e fazem disso a sua profissão de fé. São fanáticos antiesquerdistas que querem, em nome disso, varrer das escolas a pluralidade de pensamentos. Não é necessário nomear os demais defensores do projeto. Magno Malta os representa perfeitamente bem.

Na página do “Escola Sem Partido” está escrito em letras garrafais que o PT e o Sindicato dos Professores são contra o projeto de lei. O truque é manjado. A estratégia é vender a ideia de que apenas petistas e professores esquerdistas, por óbvios interesses, se opõe ao projeto. O descrédito político do PT e o macarthismo de ocasião os favorece. Pois bem. Eu não sou petista, não simpatizo com o PT, não sou filiado a nenhum Sindicato, e sou absolutamente contra a ideia da “Escola sem Partido”. Aliás, não conheço nenhum colega professor, das escolas e das universidades, que apoie o projeto. Tenho colegas de diversas tendências políticas: de socialistas à liberais, de keynesianos à admiradores da Hayek, de petistas à tucanos. Nenhum deles simpatiza com a ideia.

Sou professor há mais de vinte anos. Lecionei em escolas de primeiro e segundo grau, públicas e particulares, e há vinte anos leciono em Universidades, em cursos de graduação e pós-graduação. Como professor, sempre procurei exercer democraticamente o meu ofício oferecendo aos meus alunos diferentes pontos de vistas sobre os temas abordados, para que fizessem suas escolhas. Não procuro e nunca procurei orientar a conduta política de ninguém. E isso não é neutralidade. Nunca foi um professor neutro. Não acredito na neutralidade. Acredito no diálogo e na troca democrática e respeitosa de ideias.

Encontrei na minha trajetória todo tipo de professor. Conheci liberais radicais, convivi com colegas de tendências fascistas e tive contato com esquerdistas exaltados. Mas eles sempre foram não mais do que alguns gatos pingados. Uma minoria caricata que os próprios alunos se encarregavam de desacreditar. Eram figuras folclóricas, como Magno Malta e, por isso mesmo, não eram levadas a sério (A grande maioria era de professores equilibrados e ponderados, quer à esquerda, quer à direita). Alunos e colegas davam apelidos apropriados e faziam gracinhas com os excessos de idealismo ou de autoritarismo dos professores mais extremados. Numa das escolas que trabalhei, no começo dos anos 90, o professor com tendências fascistas era chamado nos corredores de Adolfinho, e o exaltado de esquerda, de cumpanheiro. Eram verdadeiras caricaturas! O primeiro vestia-se formalmente, com a calça acima do abdômen, camisa caprichosamente para dentro da calça, cintos e sapatos impecáveis e sempre muito bem barbeado. Segundo os murmúrios do corredor, o sujeito não admitia a menor desatenção dos alunos. Fulminava com os olhos e chamava atenção com o dedo em riste. Embora não fosse professor de história, gostava de falar da segunda guerra mundial. Na hora do intervalo, parava na porta da sala dos professores em pose marcial, com as mãos para trás, cumprimentando todos que chegavam: “satisfação revê-lo, professor”, dizia sempre. Era intimidador. Nunca o vi sentado, relaxado. O segundo usava barba irregular, vestia-se com certo desleixo e usava uma indefectível bolsa de couro. Qualquer que fosse o assunto tratado em aula, ela dava um jeito de falar de revolução e luta de classes. Tinha mau hálito e explicava absolutamente tudo com base nos escritos de Trotsky. Embora, a julgar pelas poucas vezes que conversamos, parecesse nunca ter realmente lido “A Revolução Permanente”. Adolfinho e cumpanheiro não se cumprimentavam. Pareciam se odiar, embora, aos meus olhos, fossem tão parecidos (assimetricamente iguais). Em outra escola, conheci uma professora que, em sala de aula, se dizia admiradora da ditadura militar. Dizia que naquele tempo tudo era melhor e que os alunos deveriam se inspirar no exemplo dos militares. Tinha fama de autoritária e de perseguir alunos do centro acadêmico ou os que discordassem dela. Quando passava nos corredores, os alunos batiam continência e juntavam as pernas, sem ela ver, claro. Na sala dos professores, mantinha um tom mais discreto. Mesmo assim, não escapou da zombaria: o professor de física a apelidou de sargentão. Quando sargentão entrava ereta na sala dos professores o ambiente mudava. Ficava um clima artificial. Ela nunca percebeu. Se esforçava para ser simpática. Usava laquê no cabelo, maquiagem permanente e sempre combinava a cor da bolsa com a cor do sapato. Sargentão tinha cheiro de roupa guardada. Anos mais tarde encontrei o professor de física num bar e fiquei sabendo que a professora abandonou a sala de aula, queixando-se da indisciplina dos alunos, e foi trabalhar no setor administrativo da escola.

Todos os três professores eram autoritários e usavam a sala de aula para exercitar sua profissão de fé. Mas não pensem que os(as) alunos(as) são presas fáceis e vítimas inocentes de predadores com diplomas. Professores com tendências autoritárias e catequizadores voluntariosos viram rapidinho motivo de piadas e chacotas. Quantas vezes vi no recreio alunos fazendo a saudação nazista, pelas costas, quando Adolfinho passava. Não foram poucas as vezes também que ouvi um aluno mais saidinho gritar para o outro professor: o que Trotsky diria sobre isso, cumpanheiro?

O “abuso da liberdade de ensinar”, como querem os defensores do projeto, existe, mas é a exceção, não a regra. Não se pode interferir na liberdade de ensino para conter um punhado de professores exaltados. E não são apenas professores ditos de esquerda que praticam esse abuso. Mas os defensores do “Escola Sem Partido” não querem saber disso. Eles demonizam os professores de esquerda como se eles fossem de alguma maneira perigosos. Ora, se as escolas vivessem uma epidemia ideológica, como pretendem os alarmistas, e os tais doutrinadores de esquerda tivessem de fato o poder de converter crianças e adolescentes em militantes esquerdistas, seríamos uma “república sindicalista”, para usar uma velha expressão, ou viveríamos numa sociedade do tipo socialista há muito tempo.


O ideal de escola que emerge do projeto nem chega a ser o bicho de sete cabeças que estão pintando. O projeto é ingênuo e, em certo sentido, inofensivo. Mas é bom ter cuidado!  Na atual conjuntura de polarização ideológica, ele pode se transformar numa forma policialesca e vigilante de fiscalização do trabalho dos professores. Não que eu ache que os professores não devam prestar contas do seu trabalho. Pelo contrário. Tem que prestar sim e devem ser avaliados constantemente. Mas isso é diferente do tipo de controle pretendido pelos idealizadores do projeto. A atitude do vereador de São Paulo, Fernando Holiday, eleito pelo MBL, é um bom exemplo do exercício de um poder abusivo e inquisitorial, seletivamente exercido. O vereador anunciou na sua página na internet que está fazendo visitas surpresas nas escolas da rede municipal de São Paulo para fiscalizar o conteúdo das aulas. Justificando as “visitas”, o vereador disse num vídeo que: “Temos de ver se está tendo algum tipo de doutrinação ideológica, se os professores estão dando aquilo que realmente deveriam dar de acordo com a grade curricular ou se tem professor entrando com camisa do PT, do MST, jogando tudo pro alto e fazendo aquela doutrinação porca”. Holiday se julga um verdadeiro fiscal do conhecimento, investido de um poder e de uma verdade que o habilitam a se lançar na heroica missão de limpar as escolas da “doutrinação porca”. Que tipo de isenção o representante do MBL tem para adentrar de surpresa nas escolas para fiscalizar a conduta dos professores?  Na verdade, o vereador é um fanático antiesquerdista que está à caça de tudo o que não se parece com ele. Se os defensores e simpatizantes da sigla quisessem de fato um Brasil decente, livre da corrupção, estariam nas redes sociais e nas ruas pedindo o afastamento de Michel Temer. O silêncio deles diz muito sobre o que entendem por uma “Escola sem Partido”. Será que o vereador “do bem” se importaria com professores que fazem em sala de aula a apologia do regime militar?

Nossos alunos não precisam deste tipo de “proteção” e nossas escolas não precisam ser expurgadas e higienizadas de supostas infecções ideológicas, e transformadas em redomas do conhecimento “puro”. Os pais que defendem o “Escola Sem Partido” estão passando um atestado de imbecilidade e de incapacidade dos filhos de lidar com a diferença de pensamento. As escolas precisam de investimentos, não de castração. Precisam de laboratórios e boas bibliotecas, não do sequestro da reflexão política e, se for o caso, dos embates políticos. Nossos alunos precisam de professores mais bem pagos e melhor preparados. Conviver com vozes dissonantes, com ideias diferentes e conflitantes com as que trazem de casa, não é nenhum problema. Pelo contrário, é também um aprendizado para crescerem no mundo, conviverem com os embates políticos e poderem fazer suas escolhas. Estudei na escola primária, no final dos anos 70 e início dos anos 80, com professores (não todos) que exaltavam as virtudes das forças armadas, nos faziam marchar, cantar o hino (como pretende Magno Malta) e escrever pequenos textos laudatórios do governo militar. No entanto, minha postura, desde o final do primário, sempre foi de oposição à ditadura. Os professores doutrinadores de OSPB e de Educação Moral e Cívica, do meu tempo de aluno, que adaptavam as duas disciplinas às exigências dos governos militares, também eram motivo de piadas e imitações. Aliás, acho que devo a eles a decisão de fazer a faculdade de história. Não tive a disciplina na escola. O que era para ser “aula de história” era, na verdade, um exercício laudatório das virtudes cívicas, segundo a ótica do regime militar. Fui estudar história por fora, nos livros, longe da escola. Na universidade, estudei com professores marxistas, liberais, positivistas e nacionalistas. Soube, como a maioria dos meus colegas, tirar de cada um o que me interessava.

O projeto de lei encabeçado por Magno Malta, equivocado e descabido, está sendo proposto numa conjuntura de extremismos e de polarização política. Ainda que tivesse pertinência, o que não é o caso, não seria este o melhor momento para se apreciar este tipo de interferência na vida escolar. Além disso, os propositores e defensores do projeto, pelo que se depreende das falas e dos discursos, não têm a ciência nem a competência para pensar um tema tão delicado. São, com efeito, motivados por um antiesquerdismo febril, circunstancial, oportunista e bastante mal informado. Querem amputar as ideias de esquerda da vida do país como se fosse uma doença, como se os extremismos vicejassem apenas à esquerda. São, portanto, antidemocráticos. Numa democracia se convive com valores, projetos e ideias antagônicas.


Espero que o Escola Sem Partido, verdadeiro delírio reacionário, seja uma dessas perturbações passageiras da jovem democracia brasileira, e que logo vire piada. A melhor forma de se livrar de besteiras perigosas é rir delas, como os alunos riam, e continuam rindo, dos professores que usam a sala de aula para exaltar as suas preferências políticas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário