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sábado, 23 de dezembro de 2017

“UM ATRAZADO QUE A GANÂNCIA DAS GAZETAS SAGROU E A BOBAGEM DA MULTIDÃO FEZ UM DEUS”: A CRÍTICA DE LIMA BARRETO COMO CONTRAPONTO À DIVINIZAÇÃO DO BARÃO DO RIO BRANCO.

“UM ATRAZADO QUE A GANÂNCIA DAS GAZETAS SAGROU E A BOBAGEM DA MULTIDÃO FEZ UM DEUS”: A CRÍTICA DE LIMA BARRETO COMO CONTRAPONTO À DIVINIZAÇÃO DO BARÃO DO RIO BRANCO.



[...] repimpado em luxuoso automóvel de capota arriada, passou, com o ventre proeminente atraído pelos astros, o poderoso ministro do Estrangeiros [...]. (Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá - Lima Barreto).


Barão do Rio Branco, chanceler brasileiro entre 1902 e 1912, é considerado oficialmente herói nacional desde 2011. A Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania do Congresso Nacional aprovou, em caráter conclusivo, o Projeto de Lei 7403/02, que inscreveu o seu nome no Livro dos Heróis da Pátria. O culto à sua figura, no entanto, remonta ao começo do século XX. As vitórias nos arbitramentos com a Argentina e a França lhe conferiram grande notabilidade e sua chegada ao Rio de Janeiro, em 1902, para tomar posse no MRE, foi triunfal, com direito à carruagem aberta sob os aplausos da multidão. Ainda em vida o Barão era visto como verdadeiro herói nacional e cultuado no círculo das elites políticas e diplomáticas como uma espécie de semideus. Depois da morte, em 10 de fevereiro de 1912, foi transformado no modelo inalcançável e símbolo maior da diplomacia brasileira. Foi proclamado também como um dos artífices da identidade nacional. Descolado do mundo social e político no qual se construiu, foi alçado ao altar cívico da pátria. Os críticos silenciaram, ou se renderam às efusivas homenagens, e as virtudes e os feitos do “grande homem” foram elevados a uma condição olímpica. Os discursos laudatórios e toda sorte de homenagens (placas, monumentos, nomes de ruas, etc.), que enalteceram suas glórias e imortalizaram seus feitos, o transformaram numa unanimidade nacional (Ver o post anterior sobre o Barão).


Porém, quando examinamos mais de perto a figura do Barão, para além dos discursos mistificadores, nos deparamos com uma figura humana, como todas as outras, marcada por imperfeições. Estava longe de ser uma unanimidade. Na verdade, dividia opiniões. Os admiradores e apologistas, claro, eram maioria, mas os críticos eram dedicados e persistentes. Se para alguns lhe sobravam habilidades e talentos, para outros, o chanceler era defensor da eugenia, um negociador fraco, um gastador sem reservas e um egoísta ultrapassado.

Dar relevo às críticas e aos desafetos do Barão não significa desmerecer-lhe os talentos e as qualidades. A preferência por soluções pacíficas para as disputas, a não ingerência nos assuntos internos dos países vizinhos, o fortalecimento dos laços sul-americanos, visando a estabilidade regional, a busca por autonomia e o exercício discreto da liderança brasileira na América do Sul, são alguns dos pontos que se destacam na atuação do Barão na condução da política externa. Todavia, ler atentamente as críticas que sofreu é fundamental para que possamos retirar o véu das mistificações que o envolve e avaliarmos suas escolhas e decisões à luz das condições históricas e das relações políticas de sua época, e não como um ato de iluminação, inscrito num plano metafísico, superior.

Entre os críticos mais conhecidos, no Brasil, destacamos Lima Barreto e Oliveira Lima. O chanceler argentino Estanisláo Zeballos também foi um grande adversário. Lima Barreto, crítico severo do estilo e dos excessos do Barão, não perdeu oportunidade de denunciar-lhe os abusos (excessos e abusos aos olhos de Lima Barreto). Referiu-se direta ou indiretamente ao Barão em dois livros (um romance e uma sátira) e em alguns textos esparsos, sempre de maneira incisiva e cortante. Na vasta coleção de personagens característicos daquela época, verdadeiro banquete para um crítico perspicaz, o chanceler era um dos seus alvos preferenciais.

Lima e Rio Branco, cada um à sua maneira, foram figuras de proa de mundos distintos do Brasil da Belle Époque. Muito diferente do aristocrático Rio Branco, e da diplomacia eugenista que praticava, Lima Barreto era um mulato pobre, suburbano, que vivia e escrevia em condições sociais e pessoais muito adversas. Se Rio Branco teve a vida política facilitada pelo sobrenome e por amizades, como a de Duque de Caxias, que lhe abriu as portas para a carreira diplomática, Lima não contou com estas facilidades e tropeçou a vida inteira na barreira da cor. De um lado, o Brasil branco, europeu, das elites, das distinções e do coronelismo ilustrado; de outro, o Brasil mestiço, inventivo e de poucas oportunidades, que corria à margem da república dos bacharéis.





A literatura ativista de Lima Barreto, numa época marcada pelo darwinismo social, combatia os preconceitos de classe e de cor e as múltiplas formas de injustiças daquele Brasil. Numa época em que teorias científicas de enorme prestígio e sucesso afirmavam existir diferenças irredutíveis e permanentes entre as raças humanas, Lima manteve-se cético e profundamente contestador das justificativas cientificas para as desigualdades raciais e a suposta superioridade branca (Schwarcz).

Lima fundiu estilos literários, empregando-os com originalidade para os seus propósitos. Intencionalmente, ao mesmo tempo, procurou descaracterizar o estilo, visando uma comunicação mais direta com o público. Dois recursos estilísticos, notadamente, marcaram sua obra: a ironia e a caricatura. Os modelos foram declaradamente inspirados nos grandes mestres do gênero: Dickens, Swift, Maupassant, Voltaire, Balzac e Daudet. A “suculenta ironia”, como dizia Lima, que ia da “simples malícia ao profundo humour”, vinha da dor. “Era o artifício através do qual se sobrepunha aos infinitos percalços que lhe entravam o desenvolvimento da personalidade e da carreira”. A caricatura derivava da percepção de que a realidade não falava por si. Era preciso apertá-la, exagerá-la, pintá-la com tons gritantes para denunciar seus defeitos e deformações (Sevcenko).

Tinha um agudo senso de observação do “instante presente” e escrevia para o futuro, com apurada consciência histórica. Deixou para a posteridade um retrato denso e multifacetado do seu tempo. Nas suas próprias palavras: “A minha atividade excede em cada minuto o instante presente, estende-se ao futuro. Eu consumo a minha energia sem recear que esse consumo seja uma perda estéril, imponho-me privações, contando que o futuro as resgatará – e sigo o meu caminho” (O destino da literatura).

Lima combatia os “literatos de atelier” e as expressões literárias de seu tempo, vistas como meramente decorativas e frívolas, para entreter as elites letradas que desdenhavam ociosamente dos problemas do país, e se debatia contra o bovarismo, a mania de dar as costas para o que era “nosso” e se voltar para as coisas do estrangeiro, ou “de se querer diferente do que se é”.

O Barão do Rio Branco, para Lima Barreto, encarnava uma espécie de síntese do bovarismo e da frivolidade exibicionista que afetava as elites da época.

Na sátira política “Bruzundanga”, escrita em 1917, Lima desfere críticas mordazes ao Brasil das oligarquias, das elites bovaristas (que fingiam ser o que não eram), do abuso de poder, dos privilégios e das injustiças. Bruzundanga, na trilha de Jonathan Swift e Thomas More, é um país imaginário, visitado por um narrador brasileiro, que em tudo se parece com o Brasil. O Capítulo VII é dedicado à diplomacia da Bruzundanga. O Barão do Rio Branco é retratado cartunescamente na figura do Visconde de Pancome, “um embaixador gordo e autoritário, megalômano e inteligente”, que veio ser “ministro dos Estrangeiros”. “Empossado no ministério”, continua Lima, “a primeira coisa que fez foi acabar com as leis e regulamentos que governavam o seu departamento. A lei era ele. O novo ministro era muito popular na Bruzundanga”. Os habitantes da República dos Estados Unidos da Bruzundanga eram “assim como nós, que temos grande admiração pelo Barão do Rio Branco por ter adjudicado ao Brasil não sei quantos milhares de quilômetros quadrados de terras, embora, em geral, nenhum de nós tenha de seu nem sete palmos de terra para ditarmos o cadáver”.

Na República da Bruzundanga, o Visconde de Pancome exercia a diplomacia baseado na sua vontade e “não houve bonequinho mais ou menos vazio e empomadado que ele não nomeasse para esta ou aquela legação”. “Não ha mal algum que assim seja a diplomacia daquelas paragens”, arremata Lima. “A Bruzundanga é um país de terceira ordem e sua diplomacia é meramente decorativa. Não faz mal, nem bem: enfeita”.

No romance “Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá”, publicado em 1919, Lima fixou uma imagem nada lisonjeira do herói nacional. Por meio do narrador Augusto Machado, que recorda o falecido Gonzaga de Sá, o Barão é visto como um homem de uma “mediocridade supimpa”. “Sempre voltado para tolices diplomáticas (...) era um atrazado, que a ganância das gazetas sagrou e a bobagem da multidão fez um Deus”.

Autoritário e egocêntrico, o Barão teria feito “do Rio de janeiro a sua chácara”. Não dava satisfação a ninguém e se julgava acima da Constituição. Armava situações diplomáticas para “mostrar seu atilamento de Tayllerand, ou sua astúcia Bismarkeana”. Para Lima, Rio Branco era “egoísta, vaidoso e ingrato.”

O chanceler, na apreciação de Lima, era demasiado apegado aos detalhes cerimonias, caprichosos e inúteis. O seu ideal de estadista não é fazer a vida fácil e commoda a todos; é o apparato, a filigrana dourada, a solennidade cortezan das velhas monarchias europeas - é a figuração theatral, a imponência de um ceremonial chinez, é a observância das regras de precedência e outras vetustas tolices versalhezas”.

A imagem que Lima tinha do Barão é um contraponto, cáustico e demolidor, à decantada unanimidade que se supunha existir em torno do seu nome. Embora, por antipatia, Lima possa ter exagerado e carregado nas tintas (os apologistas do Barão, por simpatia, não fazem o mesmo?), ele parece ter expressado um ponto de vista que, supomos, era compartilhado entre aqueles que se opunham à diplomacia das oligarquias cafeeiras, da qual o Barão era o olímpico condutor.

A unanimidade só veio mesmo depois da morte. O discurso de Oliveira Lima utilizado por Celso Lafer e Francisco Weffort, em 2002, para justificar a inscrição do nome de Rio Branco no livro dos Heróis da Pátria é um bom exemplo disso (ver o post anterior sobre o Barão). Oliveira Lima, diplomata visto como dissidente, foi desafeto e crítico do Barão ao longo da sua gestão no MRE. Além de ser contrário à política pan-americana, acusava-o de dificultar a sua carreira diplomática. Depois da morte, recolheu as críticas e rendeu-lhe as mais honrosas homenagens. O mesmo aconteceu com Estanisláo Zeballos, chanceler argentino e rival do Barão desde o litígio lindeiro de Palmas, que conduziu uma política externa abertamente antibrasileira. Num artigo publicado logo após a morte do Barão, Zeballos abandonou o tom crítico e escreveu um discurso de homenagem ao velho rival: “Si el Brasil consolida la obra territorial del Barón de Rio Branco, le deberá el título de su primer servidor y del mas grande de los benefactores de su amor proprio nacional y de su mapa”.

A morte do Barão, as pomposas e intermináveis homenagens que se seguiram e o culto que se ergueu em sua memória, só não diminuíram a verve crítica de Lima Barreto. “Os Bruzundangas” e “Morte e Vida” foram escritos, respectivamente, cinco e sete anos depois da morte do Barão, e em plena maturidade literária de Lima (Barbosa). Lima não deu descanso ao Barão nem depois de morto. Em vida, criticou a conduta, os valores ultrapassados e o autoritarismo esnobe do chanceler. Posteriormente, não se rendeu à comoção nacional e à força do mito. Continuou implacável!

Na Bruzundanga contemporânea, Lima se indignaria e se deliciaria com os personagens, de todas as cores políticas, que nada ficam devendo às formidáveis caricaturas que pintou em sua época. A corrupção, as enormes desigualdades, as trocas de favores, o racismo, os abusos de autoridade e o saque aos bens públicos, que tanto o incomodaram, continuam, quase cem anos depois de sua morte, a dar as cartas e a esculhambar o país.

A Bruzundanga é aqui, e agora! E em repúblicas onde barões são heróis, mulatos pobres continuam tropeçando nas barreiras de cor e de classe.



Referências bibliográficas.
BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Rio de janeiro: José Olympio, 2002.
BARRETO, Lima. Os Bruzundangas. São Paulo: Ática, 2000.
BARRETO, Lima. Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá. Rio de janeiro-Belo Horizonte: Livraria Garnier, 1990.
BARRETO, Lima. Obras completas de Lima Barreto. (Francisco de Assis Barbosa. Org.). São Paulo: Brasiliense, 1956.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.



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