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sábado, 23 de março de 2013

RAUL, HOJE “EU TAMBÉM VOU RECLAMAR”.



RAUL, HOJE “EU TAMBÉM VOU RECLAMAR”.


Sou muito tranquilo, mas acordei hoje de manhã com uma vontade absurda de reclamar de alguma coisa. Sabe como é? Levantei cedo e fui até a cozinha, olhei para os lados, voltei de ré, sentei na sala, levantei, abri a porta que dá para o pátio, voltei para a sala, liguei a TV (os cachorros só me acompanhavam com os olhos), peguei uma revista. E nada. A vontade de reclamar não me abandonava. Acho que foi o efeito dos filmes de terror que encarei na madrugada. Liguei mecanicamente o computador, sem saber o que queria, e me deparei com uma foto de um rapaz, participando de um protesto, que segurava um cartaz com uma frase divertida sobre o “descobrimento do Brasil”. Finquei os olhos na foto e pensei: “Em outra situação eu simpatizaria contigo”. 

E assim começou este post...

O que dizer desta foto? À primeira vista, parece questionadora. Mas acho que não resiste a uma segunda mirada. A frase é criativa, provocadora. O perfil dos manifestantes me agrada. Mas não sei não. Tem uma coisa estranha nesta frase. Não acham? Aliás, duas coisas estranhas. Para ir direto ao ponto, temos um anacronismo e um equívoco em uma frase com oito palavras e um número.



Como forma de protesto, o efeito da frase funciona. Mas a frase de protesto, que questiona certa visão de história, pode também ser questionada, não é mesmo? Mas Paulo, o rapaz que segura o cartaz está usando de licença poética. É a necessária liberdade para transgredir as normas, de respirar sem aparelhos, e expressar-se livremente sem obedecer a gramática histórica. Eu sei, eu sei. Faço isso às vezes. É bom para escapar do redil canônico da área à qual estamos ligados. Mas essa maldita vontade de reclamar não me deixa em paz. E quando estou assim, fico paralisado. Se não reclamar de alguma coisa agora vou acabar sentado no sofá com o controle remoto na mão, feito um zumbi, procurando nada na tv. E o que eu tenho no momento é este cartaz. É isto ou isto.

Acredito nas boas intenções do rapaz. Afinal, salvar o mundo é um gesto nobre. Mas, repito, tem alguns problemas com a frase no cartaz. Parece querer inverter a tese de que Cabral descobriu o Brasil. Se for uma “brincadeira” com a velha versão oficial do descobrimento, eu entendo. O humor é desconcertante e derruba velharias e teimosias históricas. Mas se não for uma brincadeira, se o rapaz está levando a coisa a “sério”, e a expressão dele parece dizer isto, a situação se complica. Trocar uma versão histórica, digamos, tradicional, porém satisfatória e documentada,  por outra fantasiosa, e imprecisa, não me parece uma troca inteligente. Além disso, as historiografias brasileira e portuguesa nos oferecem novas versões, e não inversões duvidosas, sobre o tema do descobrimento.

Vamos “brincar” de historiador, entrar na onda, e protestar também? Posso, Raul?

1.       “Índios Brasileiros”, em 1500? É uma impossibilidade histórica. A razão é bastante simples. Parafraseando Edmundo O´Gorman, em 1500 o Brasil simplesmente não existia. Então não poderiam existir “índios brasileiros”, certo? O mesmo argumento me leva a dizer que Cabral nunca descobriu o Brasil, de acordo? Ah, Paulo, mas isso é rigoroso demais. Não, não é não. Isso se chama pensar historicamente. E um pouco de rigor, às vezes, ajuda a colocar as coisas no lugar. Além disso, estou no meu momento reclamão. Vamos em frente?

Vários náufragos foram encontrados pelos “índios” nas costas da América Portuguesa. Não vou entrar na discussão sobre o conceito de “índio”, mas neste caso seria admissível falar de uma descoberta por parte dos índios. Vários grupos indígenas de fato encontraram espanhóis e portugueses naufragados, perdidos no mar. Algumas vezes os acolherem bem. Outras não. Vários tripulantes da expedição francesa que explorava a costa da atual Bahia, por volta de 1510, que sobreviveram ao naufrágio e conseguiram alcançar a praia foram mortos pelos tupinambá. Diogo Álvares Correia, o Caramuru, sobreviveu porque impressionou os índios ao atirar num pássaro com uma arma de fogo (um mosquete). Neste caso, os índios descobriram o poder da arma de fogo. Diogo Álvares Correia foi apelidado de “pau que cospe fogo” (Caramuru). São tantas as descobertas. Pequenas e grandes descobertas. Mas o pessoal parece que implica mesmo é com a descoberta do Cabral. Por quê? O problema não é Cabral, mas certa visão histórica sobre o Brasil. O navegador português foi, na verdade, o nome eleito pela historiografia apologista da colonização portuguesa para fixar uma origem para o Brasil. Questionar a descoberta de Cabral é questionar uma interpretação do Brasil que embalou a formação do estado nacional e a construção de uma identidade nacional europeia. Eu sei disso. Mas não basta inverter as coisas, seus reclamões.

2.       Cabral Perdido no Mar? Com dez naus e três caravelas, além de contar com marinheiros experientes, a frota de Cabral era a mais bem equipada a zarpar de Portugal. Não. Cabral tinha endereço certo. Viajava com as instruções de Vasco da Gama, com informações detalhadas sobre o percurso. Duarte Pacheco, o cosmógrafo que acompanhou Vasco da Gama às índias dois anos antes, estava na esquadra de Cabral. Existe uma suspeita bastante razoável de que Duarte Pacheco tenha refeito a rota da viagem de Vasco da Gama, antes de embarcar com Cabral, com o intuito de explorar a "quarta parte", o quadrante oeste do Atlântico Sul. Mas não existe documentação que comprove definitivamente a realização dessa viagem. A Coroa portuguesa, e a espanhola, mantinham uma política de sigilo nos empreendimentos marítimos.

A rota era conhecida. De Lisboa a Calicute, com a “volta do mar” no meio do caminho, não tinha erro. O desvio para “achar” as terras de cuja existência se suspeitava desde a viagem de 1488 fazia parte dos planos da expedição. A ausência de surpresa na carta do contador Pero Vaz, como se eles já esperassem encontrar as terras, é um dos fortes indícios a favor desta tese.


3.       Se vamos falar de “descobrimento”, vamos ser justos. A iniciativa foi portuguesa, eles atravessaram o mar e foram ao encontro das terras que Vasco da Gama suspeitava existir. Não vejo problemas com o termo descobrimento. Descobrir, para simplificar as coisas, quer dizer “encontrar o que era desconhecido”. Francisco Adolfo de Varnhagen, em 1850, já dizia que os portugueses, em 1500, estavam vendo a exuberância da costa do futuro Brasil pela primeira vez. Este era o sentido de descoberta para Varnhagen. Acho que, neste ponto, ele foi certeiro.

Alguns questionam afirmando que Cabral e Colombo não foram os primeiros a encontrar ou topar com estas terras. E não foram mesmo. Mas a questão não é essa. O importante a considerar foram os efeitos sociológicos das viagens destes dois navegadores. Os que chegaram aqui antes deles não registraram o feito, não o tornaram público. As viagens de Cabral e Colombo não apenas foram registradas e conhecidas em toda a Europa, como resultaram em outras viagens que deram início a ocupação e colonização das terras descobertas. Ouve, portanto, um descobrimento que resultou num movimento em larga escala de ocupação das terras até então desconhecidas.

Alguém poderia objetar dizendo que lá no século XV para o XVI não se usava a palavra descobrimento. Não creio que isso seja um problema. Se usarmos a palavra para dizer que os portugueses encontraram o que até então desconheciam, mesmo que suspeitassem, não tem problema. Nós usamos signos e conceitos do presente para pensar o passado.

Entendo a causa que está por trás do cartaz. Mas não é desta maneira que os ditos “índios” vão tornar-se, de acordo com o velho jargão dos historiadores, “sujeitos da história”, nem do ponto de vista historiográfico, nem social. Não é o “nosso” voluntarismo, combinado com uma visão romântica sobre os “índios”, e muito menos frases de efeito (duvidoso), que vão resolver alguma coisa. O que poderíamos fazer? Não tenho a menor ideia. Nós continuamos sem entender os “índios”. Quanto mais leio sobre eles, mais aprendo sobre os historiadores, os antropólogos e os etno-historiadores.


A frase do cartaz é também o nome de um movimento em favor das causas indígenas. Eles têm uma página do facebook.
 


Pronto, reclamei. Estou mais aliviado. Vou fazer um chimarrão e ouvir Raul: “Eu vou lhe desdizer, aquilo tudo que eu lhe disse antes”.

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