RAUL, HOJE “EU TAMBÉM VOU
RECLAMAR”.
Sou muito tranquilo, mas acordei
hoje de manhã com uma vontade absurda de reclamar de alguma coisa. Sabe como é?
Levantei cedo e fui até a cozinha, olhei para os lados, voltei de ré, sentei na
sala, levantei, abri a porta que dá para o pátio, voltei para a sala, liguei a TV
(os cachorros só me acompanhavam com os olhos), peguei uma revista. E nada. A
vontade de reclamar não me abandonava. Acho que foi o efeito dos filmes de
terror que encarei na madrugada. Liguei mecanicamente o computador, sem saber o
que queria, e me deparei com uma foto de um rapaz, participando de um protesto,
que segurava um cartaz com uma frase divertida sobre o “descobrimento do Brasil”.
Finquei os olhos na foto e pensei: “Em outra situação eu simpatizaria contigo”.
E assim começou este post...
O que dizer desta foto? À primeira vista, parece questionadora. Mas acho que não resiste a uma segunda
mirada. A frase é criativa, provocadora. O perfil dos manifestantes me agrada.
Mas não sei não. Tem uma coisa estranha nesta frase. Não acham? Aliás, duas
coisas estranhas. Para ir direto ao ponto, temos um anacronismo e um equívoco em
uma frase com oito palavras e um número.
Como forma de protesto, o efeito
da frase funciona. Mas a frase de protesto, que questiona certa visão de
história, pode também ser questionada, não é mesmo? Mas Paulo, o rapaz que
segura o cartaz está usando de licença poética. É a necessária liberdade para transgredir
as normas, de respirar sem aparelhos, e expressar-se livremente sem obedecer a
gramática histórica. Eu sei, eu sei. Faço isso às vezes. É bom para escapar do
redil canônico da área à qual estamos ligados. Mas essa maldita vontade de
reclamar não me deixa em paz. E quando estou assim, fico paralisado. Se não
reclamar de alguma coisa agora vou acabar sentado no sofá com o controle remoto
na mão, feito um zumbi, procurando nada na tv. E o que eu tenho no momento é
este cartaz. É isto ou isto.
Acredito nas boas intenções do
rapaz. Afinal, salvar o mundo é um gesto nobre. Mas, repito, tem alguns
problemas com a frase no cartaz. Parece querer inverter a tese de que Cabral
descobriu o Brasil. Se for uma “brincadeira” com a velha versão oficial do
descobrimento, eu entendo. O humor é desconcertante e derruba velharias e teimosias
históricas. Mas se não for uma brincadeira, se o rapaz está levando a coisa a “sério”,
e a expressão dele parece dizer isto, a situação se complica. Trocar uma versão
histórica, digamos, tradicional, porém satisfatória e documentada, por outra fantasiosa, e imprecisa, não me
parece uma troca inteligente. Além disso, as historiografias brasileira e
portuguesa nos oferecem novas versões, e não inversões duvidosas, sobre o tema do
descobrimento.
Vamos “brincar” de historiador,
entrar na onda, e protestar também? Posso, Raul?
1. “Índios
Brasileiros”, em 1500? É uma impossibilidade histórica. A razão é bastante
simples. Parafraseando Edmundo O´Gorman, em 1500 o Brasil simplesmente não
existia. Então não poderiam existir “índios brasileiros”, certo? O mesmo
argumento me leva a dizer que Cabral nunca descobriu o Brasil, de acordo? Ah,
Paulo, mas isso é rigoroso demais. Não, não é não. Isso se chama pensar
historicamente. E um pouco de rigor, às vezes, ajuda a colocar as coisas no
lugar. Além disso, estou no meu momento reclamão. Vamos em frente?
Vários náufragos
foram encontrados pelos “índios” nas costas da América Portuguesa. Não vou
entrar na discussão sobre o conceito de “índio”, mas neste caso seria
admissível falar de uma descoberta por parte dos índios. Vários grupos
indígenas de fato encontraram espanhóis e portugueses naufragados, perdidos no
mar. Algumas vezes os acolherem bem. Outras não. Vários tripulantes da
expedição francesa que explorava a costa da atual Bahia, por volta de 1510, que
sobreviveram ao naufrágio e conseguiram alcançar a praia foram mortos pelos
tupinambá. Diogo Álvares Correia, o Caramuru, sobreviveu porque impressionou os
índios ao atirar num pássaro com uma arma de fogo (um mosquete). Neste caso, os
índios descobriram o poder da arma de fogo. Diogo Álvares Correia foi apelidado
de “pau que cospe fogo” (Caramuru). São tantas as descobertas. Pequenas e
grandes descobertas. Mas o pessoal parece que implica mesmo é com a descoberta do
Cabral. Por quê? O problema não é Cabral, mas certa visão histórica sobre o
Brasil. O navegador português foi, na verdade, o nome eleito pela
historiografia apologista da colonização portuguesa para fixar uma origem para
o Brasil. Questionar a descoberta de Cabral é questionar uma interpretação do
Brasil que embalou a formação do estado nacional e a construção de uma
identidade nacional europeia. Eu sei disso. Mas não basta inverter as coisas,
seus reclamões.
2. Cabral
Perdido no Mar? Com dez naus e três caravelas, além de contar com marinheiros
experientes, a frota de Cabral era a mais bem equipada a zarpar de Portugal. Não.
Cabral tinha endereço certo. Viajava com as instruções de Vasco da Gama, com
informações detalhadas sobre o percurso. Duarte Pacheco, o cosmógrafo que
acompanhou Vasco da Gama às índias dois anos antes, estava na esquadra de
Cabral. Existe uma suspeita bastante razoável de que Duarte Pacheco tenha refeito
a rota da viagem de Vasco da Gama, antes de embarcar com Cabral, com o intuito
de explorar a "quarta parte", o quadrante oeste do Atlântico Sul. Mas
não existe documentação que comprove definitivamente a realização dessa viagem.
A Coroa portuguesa, e a espanhola, mantinham uma política de sigilo nos
empreendimentos marítimos.
A rota era
conhecida. De Lisboa a Calicute, com a “volta do mar” no meio do caminho, não
tinha erro. O desvio para “achar” as terras de cuja existência se suspeitava
desde a viagem de 1488 fazia parte dos planos da expedição. A ausência de
surpresa na carta do contador Pero Vaz, como se eles já esperassem encontrar as
terras, é um dos fortes indícios a favor desta tese.
3. Se
vamos falar de “descobrimento”, vamos ser justos. A iniciativa foi portuguesa,
eles atravessaram o mar e foram ao encontro das terras que Vasco da Gama
suspeitava existir. Não vejo problemas com o termo descobrimento. Descobrir,
para simplificar as coisas, quer dizer “encontrar o que era desconhecido”. Francisco
Adolfo de Varnhagen, em 1850, já dizia que os portugueses, em 1500, estavam
vendo a exuberância da costa do futuro Brasil pela primeira vez. Este era o
sentido de descoberta para Varnhagen. Acho que, neste ponto, ele foi certeiro.
Alguns
questionam afirmando que Cabral e Colombo não foram os primeiros a encontrar ou
topar com estas terras. E não foram mesmo. Mas a questão não é essa. O
importante a considerar foram os efeitos sociológicos das viagens destes dois
navegadores. Os que chegaram aqui antes deles não registraram o feito, não o
tornaram público. As viagens de Cabral e Colombo não apenas foram registradas e
conhecidas em toda a Europa, como resultaram em outras viagens que deram início
a ocupação e colonização das terras descobertas. Ouve, portanto, um descobrimento
que resultou num movimento em larga escala de ocupação das terras até então
desconhecidas.
Alguém poderia
objetar dizendo que lá no século XV para o XVI não se usava a palavra
descobrimento. Não creio que isso seja um problema. Se usarmos a palavra para
dizer que os portugueses encontraram o que até então desconheciam, mesmo que
suspeitassem, não tem problema. Nós usamos signos e conceitos do presente para
pensar o passado.
Entendo a causa que está por trás
do cartaz. Mas não é desta maneira que os ditos “índios” vão tornar-se, de
acordo com o velho jargão dos historiadores, “sujeitos da história”, nem do ponto de
vista historiográfico, nem social. Não é o “nosso” voluntarismo, combinado com
uma visão romântica sobre os “índios”, e muito menos frases de efeito
(duvidoso), que vão resolver alguma coisa. O que poderíamos fazer? Não tenho a
menor ideia. Nós continuamos sem entender os “índios”. Quanto mais leio sobre
eles, mais aprendo sobre os historiadores, os antropólogos e os
etno-historiadores.
A frase do cartaz é também o nome
de um movimento em favor das causas indígenas. Eles têm uma página do facebook.
Pronto, reclamei. Estou mais
aliviado. Vou fazer um chimarrão e ouvir Raul: “Eu vou lhe desdizer, aquilo
tudo que eu lhe disse antes”.
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