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terça-feira, 26 de março de 2013

JORGE MAUTNER DERRAMOU "LÁGRIMAS NEGRAS" NO PARQUE DE COQUEIROS.



Jorge Mautner derramou “Lágrimas Negras” no Parque de Coqueiros.




“A arte, para mim, é para transformar o mundo. Sempre!”
(Jorge Mautner).

Jorge Mautner, o maior de todos os Jorges, o poeta do Kaos e do amor que não sente vergonha e não pede desculpas, desabou em Coqueiros, no início da noite de domingo. Chorou no final da musica Lágrimas Negras, enquanto cantava: “Belezas são coisas acesas por dentro. Tristezas são belezas apagadas pelo sofrimento. Lágrimas negras saem, caem, dói.” As poucas pessoas que estavam lá, debaixo de chuva, assistiram a um show inesquecível, com as canções clássicas, as declamações, o “ufanismo” singularmente modernista (se o mundo não se abrasileirar, ele vira nazista), e uma homenagem linda ao excelente e originalíssimo violonista (instrumentista) Nelson Jacobina, falecido ano passado. Nelson, disse Mautner, estava com metástase e sobreviveu por inacreditáveis quatro longos anos. No palco aguentava shows de duas horas e meia, e as dores misteriosamente sumiam. Nelson foi parceiro de Mautner por quarenta anos. As lágrimas foram pelo amigo. Lágrimas nossas. Jorge não chorou sozinho. 



Jorge Mautner é único, e incomparável. Embora não cante bem, e o violino, que o acompanha sempre, seja sofrível, ele é um dos artistas mais originas da música brasileira. Composições geniais como Vampiro, Maracatu Atômico, Orquídea Negra, Árvore da Vida, a Bandeira do Meu Partido, entre tantas outras, correm à margem da MPB desde 1958. Alguns discos, como Bomba de Estrela, Para Iluminar a Cidade, O Filho Predileto de Xangô, Antimaldito, O Ser da Tempestade, Estilhaços de Paixão e Árvore da Vida são seminais e estão, em minha opinião, entre os mais importantes da MPB. No entanto, Mautner é desconhecido do grande público. Tom Zé também.

Mautner é um filósofo interrompido, caótico e iluminado. É de uma pureza tocante e um coração que não cabe dentro do peito. Como não gostar desse cara?!! Deste liquidificador que mistura Jesus de Nazaré com Nietzsche, o candomblé com o ateísmo de Hannah Arendt, o existencialismo com Ismael Silva, Maiakovski com marchinha de carnaval e cita José Bonifácio no meio do show (sem parecer pedante ou inconveniente). Só ele consegue isso. Só ele consegue homenagear, como fez em Coqueiros, Pancho Villa, Benito Juarez, Zapata e Hugo Chávez, e isso não soar estranho, forçado. É um apaixonado pela “cultura brasileira”, pelo “amálgama” singular que criamos historicamente (José Bonifácio, diz Mautner, foi o primeiro a reconhecer a grandeza das nossas misturas). Foi uma espécie de prototropicalista, que misturou samba com rock quando ninguém fazia isso, e depois um tropicalista de viés que nunca frequentou a estrada principal da MPB. Mautner é um modernista incorrigível, um socialista carnavalizado, um cavalheiro do kaos a espalhar “estilhaços de paixão”. No palco fala tanto quanto canta, mas fala do seu jeito. Não esperem dele um discurso organizado, centrado, linear. Despreocupadamente, emenda uma frase na outra, mistura temas, fala por atalhos, não termina uma ideia e já apresenta outra. E assim ele nos leva a um precipício de emoções e nos conduz pelos caminhos ambíguos de sua mente labiríntica, com o seu raciocínio quântico e suas elucubrações improváveis. As frases vão saindo de improviso, meio desconexas, com sacadas geniais, e no fim, para quem se dispôs a ouvi-lo, elas fazem sentido.

Mautner era filho de um judeu austríaco e uma católica. A família fugiu no nazismo e veio parar no Brasil, onde Mautner nasceu em 1941 (Daí o título do documentário "Jorge Mautner, o filho do holocausto", dirigido por Pedro Bial e Heitor D´Alincourt). Sua mãe estava grávida de oito meses quando fugiram para o Brasil. “Quase toda a família de minha mãe (e do pai) foi executada. Tudo o que escrevi, compus e senti, diz Mautner, gira e girará em torno disso.” 


Jorge Mautner gosta de contar episódios de sua vida, de sua mitologia particular, e transformá-los em motivos para os seus voos filosóficos. Reza a lenda que entrou de furão no festival de Woodstock, quando a entrada ainda era cobrada. Conta-nos, por exemplo, que teve uma babá negra, chamada Lúcia, filha de santo no candomblé, até os sete anos. Com ela aprendeu as primeiras lições de vida. “Um dia, nos conta Mautner, Lúcia disse para mim: ‘meu filho, seus pais vieram de um país onde tem muita gente má. Mas pode ficar tranquilo que aqui a gente gosta de você e nós vamos lhe tratar bem, viu?’” Um dia, passeando com Lúcia nos jardins do Palácio do Catete, o presidente Getúlio Vargas se aproximou dele e puxou conversa. Perguntou de onde ele era. Jorge Mautner respondeu: “Eu sou brasileiro, mas meus pais, coitadinhos, eles são estrangeiros.” O Brasil, generoso, como ele gosta de dizer, o recebeu e ele passou a fazer parte desse amálgama de culturas e povos. Tornar-se-ia, prematuramente, a expressão artístico-filosófica dessa “mistura”.



Em 1962 entrou para o Partido Comunista, foi preso durante a ditadura e aconselhado a moderar o tom. Foi para os Estados Unidos, depois para Londres onde encontrou Caetano Veloso e iniciaram uma parceria que dura até hoje. Uma das últimas músicas composta pelos dois foi Tarado. Procurem. Vale a pena ouvir. Mautner escreveu vários livros e dirigiu um filme (Demiurgo, de 1970).  Aos quinze anos publicou seu primeiro livro – Deus da Chuva e da Morte – que ainda pode ser encontrado a net para compra. Transcrevo um fragmento:

"Ouvir rock, ver a chuva, beijar uns lábios, deitar com uma ou outra carne na cama e sentir o sexo. Depois de horas e horas de pensamento e desistência e ridículo e paradoxos e uma vontade louca de viver! Mas o sono me puxando poderosamente. Então eu ouço Rock e olho a chuva e penso no sexo. Depois tudo se mistura porque na verdade tudo existe misturado: o sexo, o Rock, a chuva e então eu durmo. Eu durmo e durmo e sonho em ritmo de rock e vejo a chuva no sonho e o sexo se sobressaindo em todos os lugares. Sonhos agitados nos quais existe algo que eu esqueci de citar. Algo que balança que nem uma bandeirinha vermelha em meio à chuva, ao sexo e ao Rock. É a infância. Será que o Rock, a chuva e o sexo não passam de infância e que só a infância presente existia? Só a infância presente existe! Lembre-se disto: só a infância presente existe!"

Está com 72 anos, completados no último 17 de janeiro, e sobe no palco com uma disposição admirável.  Eu acompanho a trajetória de Mautner nos palcos desde os anos 80. No show de domingo ela demonstrou o mesmo vigor, e a mesma paixão, de trinta anos atrás. O público, como sempre, era reduzido, mas, como sempre, cantou do começo ao fim todas as canções: “Atrás do arranha-céu tem o céu, tem o céu. E depois tem outro céu sem estrelas. Em cima do guarda-chuva tem a chuva, tem a chuva. Que tem gotas tão lindas que até dá vontade de comê-las” (Maracatu Atômico).


Se tem alguém que vive verdadeiramente de acordo com a máxima de Paulo Leminski (“distraídos venceremos”), esse alguém é Jorge Mautner. Um artista sem artifícios, sem máscaras. Um vampiro tropical, romântico “tardio” e generoso, que canta o amor com sangue e flor: “Você é uma loucura em minha vida. Você é uma navalha para os meus olhos. Você é o estandarte da agonia. Que tem a lua e o sol do meio-dia” (Vampiro).
Eu adoro esse cara. 

Só mesmo Jorge Mautner, o profeta do absurdo, para me fazer sair de casa num domingo chuvoso, com capa e guarda chuva, atravessar a ponte e ficar a céu aberto assistindo um show!

"Nos demais todo mundo sabe o coração tem moradia certa, fica bem aqui, no meio do peito... mas comigo a anatomia ficou louca. Sou todo coração...” (Poema de Maiakovski citado na música Perspectiva).



“Vejam a chuva e o Sol
Um são raios a outra são águas
Uma é samba o outro é rock n roll
Mas ambos tem as mesmas mágoas”

Jorge Mautner



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