A
BEATIFICAÇÃO DE PRINCESA ISABEL E OS PECADOS DA REPÚBLICA.
A
república brasileira, corroída pela corrupção e pelos desmandos, atravessa um
momento de descrédito e de fragilidade moral (não é a primeira vez). Os pecados
contra a coisa pública desacreditam as instituições e nivelam homens públicos e
partidos por baixo. “Ninguém presta”, diz o “povo” nas ruas, nas paradas de
ônibus, nas rodas de conversa. O guarda que cuida do setor onde trabalho
disse-me no fim do ano: “Seu Paulo, ninguém vale nada. Não valem o prato que
comem. São todos iguais. Não voto mais.” Baixei a cabeça e perguntei sobre o
time dele, o Hercílio Luz. O time não vai bem, mas a conversa ficou animada.
Não
é por acaso que justamente neste momento de descrença na “política” toma corpo
uma causa de beatificação de uma figura da família real brasileira que marcou
os últimos anos da monarquia. Está sendo analisado pelo arcebispo do Rio de
Janeiro um pedido de beatificação de princesa Isabel. O atual contexto
marcado por escândalos políticos generalizados é propício para uma um causa como
esta prosperar. A causa em prol da beatificação da princesa cresce nas fissuras
morais da república.
No
final de dezembro de 2011 especialistas do Vaticano participaram de uma
audiência na Cúria Metropolitana da Arquidiocese de São Sebastião do Rio de
Janeiro para formalizar uma comissão especial para dar início aos estudos sobre
o processo de beatificação de princesa Isabel. O pedido formal de abertura do
processo de bem-aventurança e beatificação havia sido entregue em outubro de
2011. Na ocasião, o professor Hermes Rodrigo Nery, acompanhado do príncipe Dom
Antonio João de Órleans e Bragança, da casa Imperial do Brasil, entregou uma
carta ao arcebispo Dom Orani João Tempesta, apresentando as justificativas e os
argumentos para a instauração do processo.
O
tema é indigesto. Uma comissão católica, com apoio da casa Imperial do Brasil,
pretende desenterrar parte do passado monarquista brasileiro, sepultado pela
república, para beatificar uma figura símbolo da monarquia! Todo processo de
beatificação é político, sabemos disso, mas neste caso mexe com o passado, com
as instituições políticas e divide a sociedade brasileira.
A
beatificação é o primeiro passo para a canonização. O caminho é longo, mas já
imaginaram a repercussão e a dimensão simbólica da canonização de dona Isabel,
que foi destituída por um golpe e mandada para o exílio pelos republicanos?
Seria, no mínimo, a santa vingança dos Órleans e Bragança e a reentronização em
grande estilo, e com ares de santidade, da família real. Alguém tem dúvida de
que a beatificação da princesa vai reacender o inexpressivo movimento
monarquista brasileiro?
Dom
Orani tem um abacaxi dos grandes nas mãos para descascar: está pressionado entre
a comunidade católica e a casa imperial, de um lado, e o movimento negro e
parte da “comunidade” dos historiadores, do outro. A candidata à beata não é
uma unanimidade nacional, o que dificulta a tomada de uma decisão.
O
tema divide opiniões. Não podia ser diferente. Vejamos os argumentos de ambos
os lados.
1. De
um lado, estão os defensores da beatificação, capitaneados por Hermes Nery, o
postulador da causa (Nery é pós-graduado em bioética pela Pontifícia
Universidade Católica (PUC-RJ), diretor da Associação Nacional Pró-vida e
Família, do Movimento Brasil Sem Aborto e membro da Comissão em
Defesa da Vida do Regional Sul 1 da CNBB). O Postulador é figura
imprescindível, além de obrigatória, num processo de santificação. Representa
oficialmente a causa e formaliza, ou postula, o pedido. Deve ser alguém versado
em teologia, direito canônico, história, e conhecer o modo de funcionamento da
Congregação da Causa dos Santos. Cabe a ele também nomear o vice-postulador,
para que acompanhe de perto o andamento da causa. Nery aponta o protagonismo de
Isabel na abolição como argumento central da causa. Ela não apenas liquidou com
a escravidão como libertou escravos do palácio e serviçais mais próximos quando
do seu casamento em 1864. Demonstrou humildade incomum para uma pessoa da sua
posição ao limpar a capela de Nossa Senhora Aparecida. Em Petrópolis ela era
vista com frequência limpando igrejas. Por fim, Isabel era fiel ao papa. Nery
cita um episódio ocorrido em 1888 quando a princesa recebeu a Rosa de Ouro
(como reconhecimento da boa conduta na abolição). Na solenidade, Isabel jurou
fidelidade ao papa, mesmo na presença de homens de estado. Tudo isso é coroado
pelo manto de virtudes que os defensores da beatificação lançaram sobre a
princesa.
2. Do
outro lado, contrários a causa, estão os historiadores e o movimento negro. Em
primeiro lugar, questionam a importância da princesa na abolição da
escravatura. Embora tenha abraçado a causa alforriando escravos, escondendo
fugitivos no Palácio de Petrópolis e abrindo as portas para amigos negros, não
teve o papel decisivo que lhe foi atribuído. Com ou sem ela a escravidão estava
com os dias contados. Os verdadeiros protagonistas foram os escravos e
abolicionistas como Joaquim Nabuco e Luz Gama. Isabel nunca se interessou por
política, pensava que era coisa de homens. Estudou, mas não soube tirar
proveito do que aprendera. Era apegada a certas futilidades e nunca se envolveu
de fato na causa abolicionista (Vale a pena conferir no blog “Monarquia Já” a
reação dos monarquistas às críticas dos historiadores). A historiadora Wlamyra
Albuquerque afirmou que “canonizar d. Isabel a partir do episódio da assinatura
da Lei do 13 de maio é uma tentativa de reiterar uma memória que silencia sobre
o papel do negro na sua própria história.” Juntam-se a Wlamyra na crítica a
beatificação, embora com outros argumentos, a historiadora Mary Del Priori ,
que esta para lançar ainda este ano um livro sobre a princesa e o historiador
Roderick Barman, autor do livro “Princesa Isabel: gênero e poder no século
XIX”. Hermes Nery rebateu as críticas afirmando que os críticos são
historiadores republicanos, aos quais não interessa o protagonismo de Isabel na
luta contra a escravidão.
Na
resposta de Nery aos historiadores veio à tona o pano de fundo que dá sentido a
causa da beatificação: o embate tardio entre monarquistas e republicanos e a
disputa pela memória histórica sobre a abolição.
O
assunto é polêmico, o terreno é “sagrado”, mas vamos meter a colher neste angu?
Não se trata de ser favorável ou não à beatificação. Essa conversa de santo
realmente não me interessa. O problema é de natureza política. O pedido é, em
certo sentido, uma retomada do debate que polariza os defensores da monarquia e
os republicanos. A república nunca convenceu, vive aos tropeços, assombrada por
golpes e moralmente abalada. A monarquia não foi definitivamente derrotada, é
um fantasma político que sempre volta. Não chega a ameaçar, mas esta sempre a
espreita. A beatificação de Isabel poderia ser vista pelos admiradores da
monarquia como um desagravo histórico à família real e uma crítica contundente
aos desmandos da república. É difícil imaginar que a beatificação de Isabel
tenha apenas motivação de fundo religioso.
Polêmicas à parte, e
adentrando um pouco no campo religioso, Isabel reúne as qualidades necessárias,
apontadas pela tradição da igreja católica, para tornar-se santa? Santo, na
tradição católica, é um modelo exemplar de virtudes e renúncia. É alguém que
cultivou e praticou as virtudes morais – prudência, justiça, coragem e
temperança - em grau heroico e conquistou o reconhecimento de sua santidade na
comunidade católica. A exemplaridade, digna de imitação, passa pela proximidade
com o divino. Mas imitar o exemplo dos santos – a morte heroica, as virtudes ou
as asceses dos anacoretas - não é algo simples para o cristão comum, pois o que
caracteriza a santidade é justamente a sua excepcionalidade e o distanciamento
que mantém das coisas mundanas. Até onde me é dado a ler Isabel não foi
exatamente um modelo de virtudes digno de ser imitado. Sabemos que a historiografia republicana não
foi nada generosa com a princesa, mas nem as biografias menos parciais nos
oferecem uma imagem que possa ser usada para uma causa de beatificação. Exceto
uma biografia, escrita por Hermes Vieira e lançada pela editora GRD em 1990
(Pesquisem a editora, garanto que vale a pena). O autor parece ter escrito a
obra sob encomenda, visando o pedido de beatificação. Para que uma causa
prospere é necessário reunir o maior número possível de provas sobre a vida
cristã do candidato. As biografias documentadas cumprem este papel. O autor
recorreu aos testemunhos de nomes como os de Assis Chateaubriand, Machado de
Assis, Heitor Lyra e o cônego Manfredo
Leite, para dar sustentação a sua narrativa. Hermes Vieira escreveu uma
biografia histórica com indisfarçável apelo hagiográfico. Ora realça-se a mulher,
a personagem histórica, que viveu um momento crucial da história política do
país, e não se intimidou, ora a predestinada que, como que cumprindo um chamado
da providência, intercedeu em favor dos humildes. Mas o que predomina é uma
fusão dos dois gêneros. As narrativas históricas, centradas em documentos, que
mostram as atividades da princesa num contexto imperial e escravocrata, são
revestidas de uma aura de santidade e predestinação. História e hagiografia são
integradas num esforço combinado para revelar a vida e obra da princesa/mulher
que trazia dentro de si a santa. A estrutura narrativa e a intenção são
hagiográficas, mas a legitimidade é dada pela história A história fornece os
recursos de retorno ao passado, de leitura da documentação e a comprovação do
que se diz; a hagiografia, por sua vez, trabalha sobre a matéria fornecida pela
história para erguer um monumento à candidata à beata.
Hermes
Vieira não economiza nos elogios à bondade e à honestidade da princesa. Relata
em tom de veneração a vida de Isabel desde a infância, passando pela fase
adulta, e o empenho pelo fim da escravidão para, finalmente, alcançar a
apoteose do exílio, quando suportou com dignidade os dissabores e os
sofrimentos da humilhante condição. Menina ainda já demonstrava traços de
caráter e virtuosismo cristão. Cresceu desapegada das coisas materiais, do
dinheiro, e sempre esteve voltada para a caridade e o desejo de ajudar ao
próximo. As qualidades vinham de berço. A formação e a firmeza das convicções
temperaram o caráter da princesa para o protagonismo que assumiu na abolição da
escravatura. A princesa Isabel de Hermes Vieira é um modelo de virtudes e
bondade.
O
outro Hermes, o postulador da causa, foi o autor da carta entregue ao arcebispo
(a carta está disponível na net). A carta baseia-se integralmente nesta
biografia. No que diz respeito à participação da princesa na luta pela abolição
da escravatura, o texto que serve de apoio, além da biografia, é “As Camélias do Leblon e a Abolição da escravatura”, de Eduardo
Silva. Mas é a biografia de Hermes Vieira que serve de base e sustenta a
argumentação de que Isabel viveu cristamente e praticou a virtude de modo
heroico. É esta a função de uma biografia histórica para fins de beatificação. Transcrevo
um trecho da carta:
“Testemunharam
os que conviveram com ela, o vigor límpido de seu caráter, seu autêntico
patriotismo, a sensibilidade na busca de soluções efetivas que dessem ao Brasil
condições a um desenvolvimento social pautado nos princípios e valores do
humanismo integral, para corrigir distorções e abusos que atentassem contra a
dignidade da pessoa humana, refletindo em ações concretas o que Leão XIII
imprimiria em sua memorável Rerum Novarum. Quando as circunstâncias
exigiram dela uma tomada de posição, ousou correr riscos em defesa dos
fragilizados, decidindo em favor daqueles que mais necessitavam um olhar
compassivo, tomando decisões que refletiram um desejo sincero e profundo de
melhoria conjuntural para viabilizar um panorama social brasileiro menos
perverso. ´Carinhosa ao extremo, devotada à família, ela queria que todas as
mães sentissem a ventura de se verem livres para melhor se dedicarem aos seus
entes queridos. Vibrava nela, de modo intenso, o sentimento da solidariedade
cristã´ ”(A frase final é uma citação do livro de Hermes Vieira).
Na
outra margem, os historiadores destacam outros traços da personalidade da
princesa. Os novos estudos indiferentes, à causa da beatificação, revelam uma
princesa bem mais interessante do que até então se supunha. Uma carta de sua
autoria descoberta recentemente e endereçada ao Visconde de Santa Vitória
revela uma faceta desconhecida da princesa. São quatro páginas manuscritas,
datadas de 1889. Na carta Isabel defende a indenização para ex-escravos, a reforma
agrária e o voto feminino. Num fragmento, a princesa assim se expressa em
relação ao voto feminino: "Quero agora dedicar-me a libertar as mulheres
dos grilhões do captiveiro domestico, e isto será possível atravez do Sufragio
Feminino! Si a mulher pode reinar também pode votar!" Mary Del Priori
sugeriu que Isabel tenha aderido à agenda proposta por vários jornais e
revistas escritas por mulheres no final do século XIX. Discutia-se nestas
revistas temas como educação feminina e o acesso das mulheres às áreas de
conhecimentos destinadas apenas aos homens. Além disso, Isabel aderiu
entusiasticamente à causa abolicionista. Após a assinatura da Lei Áurea Isabel
tornou-se abjeto de adoração popular e passou a ser identificada como a
“redentora da escravidão”. Ainda segundo Del Priori, Isabel era querida pelos
negros livres. A “guarda negra”, por exemplo, formada por ex-escravos,
bagunçava com os comícios republicanos sob o pretexto de proteger a princesa.
A
nova imagem de princesa Isabel revelada pelos historiadores esta longe de ser
aquela figura morna e apagada fixada pela memória republicana, e longe também
da figura idealizada da santa, como pretendem seus fervorosos admiradores.
O
pedido de abertura do processo foi feito. Os argumentos contrários e a favor
foram dispostos. Aguardemos os próximos capítulos. Enquanto isso, procurem
informações a respeito dos novos estudos sobre princesa Isabel. De santa ela
não tinha nada. De insossa e fútil também não. Descubram então quem era Dona
Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bragança
e Bourbon.
Se
Isabel for beatificada, será necessário comprovar um milagre para avançar rumo
à canonização. E o que não falta entre nós é gente a procura de um milagre. Se
procurarem bem, encontrarão. Os defensores da causa são especialistas na “arte”
de fabricar milagres.
Se
dom Orani decidir pela beatificação de Isabel, provavelmente teremos outro
candidato a beato como contraponto: Zumbi dos Palmares. Duvidam?
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