PROFESSOR LUDOVICO
ENSINA A TEORIA MARXISTA DO IMPERIALISMO NUM CONTEXTO ANTICOMUNISTA.
A
releitura das histórias em quadrinhos das décadas de 1960 e 1970 nos reserva
grandes surpresas. Estava lendo parte da Enciclopédia Disney, de 1973, volume
8, para incrementar uma aula sobre a guerra fria quando me deparei com um
episódio que não havia me chamado tanto a atenção quando li pela primeira vez.
O
que poderia haver em comum entre Karl Marx, Rosa Luxemburg, Vladimir Ilyich Ulyanov (Lênin) e o
professor Ludovico Von Pato? A resposta parece óbvia: nada. O que poderia unir
o mundo dos quadrinhos de Walt Disney e a teoria marxista? A resposta continua
a mesma. Ludovico é o estranho no ninho.
Mas
por mais estranho que possa parecer, um acontecimento da indústria do
entretenimento os aproximou. Uma palavra vai nos ajudar a descobrir a improvável
relação entre Ludovico e a teoria marxista: IMPERIALISMO.
1.
O
Imperialismo segundo Lênin (ou não).
Alguns
conceitos tornam-se maiores que seus criadores e de tanto circular pelo mundo
distanciam-se de suas origens e passam a ter uma existência autônoma. Tornam-se
entidades abstratas e desgarradas que vagam pelo mundo das ideias a procura de
uma superfície que as acolha. É o caso do conceito de imperialismo desenvolvido
por Lênin. Diversos livros,
textos e revistas (superfícies acolhedoras) que tratam do tema fazem uso da
teoria leninista sem necessariamente reconhecer a paternidade.
Apesar
da noção de imperialismo estar associada ao nome de Lênin, ele pouco contribuiu
para o desenvolvimento da teoria. Autores como John Hobson, Rosa Luxemburg e Rudolph
Hilferding foram bem mais importantes. As teses de Hilferding sobre os bancos,
que de adjuntos do processo produtivo passaram a ocupar o centro do
capitalismo, rapidamente ganharam adeptos marxistas de peso e foram
aperfeiçoadas por autores como Kautsky, Bukharin e Lênin. Qual era a teoria de
Hilferding? Os bancos detinham o controle das fontes de crédito e, por esta
razão, tornaram-se capazes de determinar o desenvolvimento industrial e
promover fusões e monopólios, sobre os quais exerciam forte domínio.
Progressivamente foram ocupando o lugar antes ocupado pelos grandes
capitalistas. O capitalismo, antes definido como monopolista, avança então a um
novo estágio denominado capitalismo financeiro (“capital controlado pelos
bancos e utilizado pelos industriais”). Os bancos buscavam taxas de lucros cada
vez mais elevadas sobre o seu capital. A tendência ao declínio das taxas na
Europa levou o capital financeiro a procurar no exterior melhores oportunidades
para aplicação do capital excedente. Nascia assim o imperialismo.
As
ideias de Hilferding tornaram-se a nova ortodoxia no interior do marxismo.
Lênin, a despeito das ligeiras críticas a obra, baseou-se quase
inteiramente em Hilferding para apresentar a sua análise sobre o fenômeno. Em
1916 publicou “Imperialismo, o estágio mais avançado do capitalismo”. Em poucas
linhas sintetizou sua abordagem, que pode ser resumida nos seguintes pontos:
“1.
A concentração da produção e do capital desenvolveu-se num grau tão elevado que
criou monopólios, os quais desempenham um papel decisivo na vida econômica. 2.
A fusão do capital bancário com o capital industrial e a criação, com base
nesse “capital financeiro”, de uma oligarquia financeira. 3. A exportação de
capital, enquanto distinta da exportação de mercadorias, adquire importância
excepcional. 4. A formação de consórcios capitalistas monopolistas
internacionais que partilham entre si o mundo. 5. A divisão territorial de todo
o mundo entre as maiores potências capitalistas está completada.”
A
dívida com Hilferding é enorme. Mas porque Lênin tornou-se a grande autoridade
quando o assunto é imperialismo, e não Hilferding? Duas linhas argumentativas
ajudam a entender:
1. Se
Lênin não foi muito original na elaboração da teoria, ele foi bastante convincente
na exposição do tema. Teórico hábil e com raro talento para a síntese e para a
polêmica, soube extrair dos outros autores o essencial e formular uma teoria
bastante eficaz. O livro de Lênin não tinha o formato e nem a concepção de um
tratado científico (Está disponível na net para quem quiser dar uma olhada). O
objetivo era prático. Lênin não dissociava a ação da teoria. Visava educar os
marxistas para a compreensão do imperialismo e sobre as atitudes teóricas e táticas
a serem tomadas em relação ao fenômeno.
2. Os
conflitos no interior do movimento socialista internacional apagaram o brilho
de autores como Hilferding e Kautsky, denunciados pela ortodoxia como
“direitistas” e “revisionistas”. Suas obras foram deixadas de lado e foram
afastadas do centro dos debates. A obra de Lênin ganhou espaço e tornou-se a
visão dominante sobre o imperialismo. O sucesso da revolução bolchevique
destacaria ainda mais a obra de Lênin. Nas décadas seguintes o tempo apagou a
memória dos conflitos e a obra de Lênin se impôs como verdadeira doutrina, como
a última palavra a determinar o rumo dos debates mundo a fora.
Com
Lênin a teoria do imperialismo deixou de ser uma teoria e transformou-se numa
doutrina. A sua tese de que o imperialismo era um estágio necessário do
desenvolvimento capitalista transformou-se num oráculo. Hilferding e Kautsky
(ligados a social democracia alemã), por exemplo, não concordavam com esta tese.
Mas não era um bom momento para enfrentar Lênin teoricamente. As discordâncias,
teóricas e políticas, custaram-lhes caro. Atraíram para si os rótulos
desqualificadores de “direitistas” e “revisionistas” (Qualquer semelhança com
as estratégias atuais de desqualificação da companheirada – se não concorda
conosco é direitista - não é mera coincidência, é uma questão de método). Lênin
era a última palavra sobre o tema. Outra interpretação que ousasse desviar da
doutrina era vista como heresia teórica. Dá desqualificação teórica aos
expurgos praticados por Stálin foi um pulo. Bukharin, que teve importante
contribuição para a evolução da teoria, foi expurgado e eliminado dos debates.
Mas
eis que quarenta anos depois, onde menos se esperava, surgiu um novo “teórico”
do imperialismo. Criado em ambiente liberal, imperialista para alguns, o
professor Ludovico, tio do pato Donald, foi beber no marxismo para ensinar aos
seus sobrinhos as lições do imperialismo. Se algumas das teses de Hilferding e
Kautsky foram vistas como heresias, o que dizer da apropriação da teoria
leninista pela Walt Disney?
2.
O
Imperialismo segundo Ludovico.
O
camarada Lênin não podia imaginar que um dia a sua teoria do imperialismo,
inspirada em algumas heresias camaradas, seria utilizada pela corporação de
entretenimento Walt Disney para educar o público infanto-juvenil dentro dos
valores liberais. E mais, não lhe dariam os créditos.
Isso
de fato aconteceu em 1973 na Enciclopédia Disney, voltada para as áreas da
história, geologia, astrônoma, botânica. A edição de luxo foi lançada aqui no
Brasil também (A obra é rara, mas pode ser encontrada na Estante Virtual ou no
Mercado Livre). O lançamento dos produtos Disney no Brasil contava com a
parceria da Editora Abril, que desde 1950 havia comprado os diretos para lançar
por aqui a revista do Pato Donald. O mercado editorial brasileiro estava em
expansão na década de 1970, facilitado pelas políticas públicas e incentivos
governamentais e pela evolução das tecnologias de impressão, como o off-set.
Até aí, tudo bem. As ligações entre a Editora Abril, a Walt Disney e o regime
militar são presumíveis. Mas o uso da teoria marxista do imperialismo numa
Enciclopédia norte americana destinada ao público infanto-juvenil, impressa no
Brasil em plena ditadura?
Vamos
tentar entender. Na edição do Almanaque de 1973, pato Donald, tio Patinhas,
Margarida e os sobrinhos Luizinho, Huguinho e Zezinho, viajaram a França em
busca de um misterioso frasco, esquecido num antigo campo de batalha da
primeira guerra mundial, que conteria um valioso segredo: a fórmula secreta de
um inseticida. Tio Patinhas queria a fórmula para desbancar seus concorrentes.
Em meio às buscas surge o tema da guerra. O professor Ludovico aproveita o
ensejo para compartilhar seus vastos conhecimentos. Diante de um público atento
o professor se esforça para explicar as causas da primeira guerra:
“-
Por volta de 1870, no Ocidente, com a utilização do petróleo e da energia
elétrica, a indústria desenvolveu-se como nunca até então. Foi a chamada
Segunda Revolução Industrial. Os países adiantados passaram a produzir muito
mais mercadorias do que podiam consumir.
–
E aí, então... – ajudou Margarida.
–
Aí, os industriais pensaram em vender seus produtos excedentes para outros
países civilizados, como vinham fazendo desde o começo da Revolução Industrial.
Só que agora a situação era outra. As indústrias haviam se expandido muito em
toda Europa e nos Estados Unidos. Cada um daqueles países tinha suas próprias
fábricas, e seus estoquezinhos encalhados. Nações como a Alemanha e os Estados
Unidos lançavam impostos pesados sobre a importação de produtos estrangeiros,
para vender melhor os seus próprios. E havia ainda outro excedente, outra coisa
sobrando. Imaginem só o que era?
–
O... o... – gaguejou Margarida apanhada de surpresa...
–
Capital! Dinheiro! – exclamou Ludovico entusiasmado. – Havia dinheiro sobrando
na Europa, graças ao aumento da produção das empresas Os lucros eram enormes. E
este capital precisava ser aplicado, senão iria perdendo o valor.”
Professor
Ludovico transforma-se num verdadeiro marxista para explicar as causas da
guerra. Explora as relações entre a revolução industrial e os excedentes, e
arremata com a vital necessidade dos capitalistas de reinvestir o capital em
outras áreas do planeta para não perder o valor. Qualquer manual do pensamento
marxista estabeleceria estas relações, mas a Enciclopédia Disney? Mas a aula de
história fica ainda mais curiosa quando Ludovico aborda os interesses
capitalistas - as contradições do capitalismo diria um bom marxista – e o
surgimento do imperialismo:
“–
Então era isso? – admirou-se Zezinho. – Mas não havia escolas a construir,
hospitais, estradas? Não podiam aumentar os salários?
–
É claro que havia muita coisa a fazer pelo bem de todos. Mas não eram
investimentos rentáveis. Que empresário ia querer se arruinar. Por mais bem
intencionado que fosse?
–
E que fizeram, então?
–
Tanto para vender excedentes, como para investir os capitais a solução foi
obter mais territórios na África e na Ásia. Conquistar colônias trazia duas
vantagens: elas possuíam ferro, cobre, petróleo, manganês, borracha, açúcar,
algodão, tudo que a indústria precisava, nos países adiantados, para manter a
produção em larga escala. Por outro lado, aquelas regiões atrasadas poderiam
ser obrigadas a comprar todos os excedentes da produção européia; era só
forçá-las um pouquinho, submetendo-as à administração européia. Ai elas teriam
que comprar, por bem ou por mal. Quem é que resistia ao poder dos europeus,
naquela época?
–
Interessantíssimo! – exclamou Margarida...
–
E o capital a investir? – perguntou Luisinho. – Como é que as colônias entravam
nisto?
–
Pois esta era a peça mais importante deste novo sistema colonial, que passou a
ser conhecido como "imperialismo”. Em primeiro lugar, a própria exploração
de minas e plantações nas colônias exigia que fossem construídas estradas de
ferro para transportar as mercadorias, e eletricidade, gás, rodovias. etc. E
depois, à medida que iam comprando produtos da indústria européia os países
coloniais precisavam criar serviços básicos para poder usar esses artigos.
-
Quem comprou uma lâmpada elétrica precisa de eletricidade para acendê-la não é
isso? - sugeriu Zezinho.
-
Exatamente. Aí vinha o industrial europeu, oferecia-se para construir a usina
de eletricidade, construía, cobrava a eletricidade e levava o lucro para casa.”
Ludovico
parece versado e interado das teorias marxistas sobre o imperialismo. Aparece
na sua fala a teoria de Rosa Luxemburg sobre o papel das colônias na absorção
dos excedentes europeus combinada as teses de Lênin e de Marx, respectivamente
sobre a concorrência e a necessidade de reinvestimento dos lucros para garantir
a acumulação de capitais.
Lênin
escreveu para educar os marxistas, no contexto da primeira guerra e da
revolução bolchevique. Ludovico, com o mesmo espírito prático de Lênin, ensinava
para educar seus sobrinhos, no contexto da guerra fria e da luta anticomunista.
Mas porque educar os sobrinhos com teses marxistas? Não poderia usar um bom
liberal, como Raymond Aron, que tem uma abordagem do imperialismo mais voltada
para a política e mais próxima do realismo político norte-americano? E como
explicar a Editora Abril bancando uma publicação como esta voltada para um amplo
público infantil num contexto político marcado, no Brasil, por um anticomunismo
feroz?
Para
quem esta levando este texto na esportiva, vamos às especulações?
1. Quem
escreveu o episódio para a Enciclopédia não tinha noção dos autores nem da
trajetória das teorias. Usou um Manuel qualquer sobre a primeira guerra,
daqueles que não identificam autores, e adaptou à sua história. Tudo não
passou de um tremendo descuido editorial da Disney, fruto da
total ignorância sobre as teorias do imperialismo.
2. O
autor da história tinha conhecimento da origem marxista das teorias. Neste
caso, como a teoria era de domínio público, usou sem precisar apresentar as
referências. Afinal, apesar da origem, a teoria é convincente. De qualquer
maneira, uma coisa é certa, a teoria do imperialismo, sobretudo a de Lênin,
tornou-se tão popular que se descolou da figura do seu criador. Uma teoria
convincente sobre as origens da guerra, de uma guerra distante, cuja filiação
marxista não estava clara, que não tem maiores implicações nas relações internacionais
da guerra fria, pôde ser usada num veículo de orientação liberal sem aparentar
contradição.
Poderia
arriscar uma ligação entre a Disney e o engajamento norte americano da luta
pela descolonização de Angola, entre 1974 e 76. Mas não seria defensável. Não
creio que houvesse, neste momento, um entrelaçamento tão forte e criativo entre
a política externa americana e a Disney. E também porque não pretendo
transformar Ludovico num agente americano.
E a Editora Abril? Essa eu deixo para a imaginação
de vocês...
3.
A
Lição de Ludovico.
Se
me permitem, diria a que lição mais valiosa de Ludovico não foi para os sobrinhos.
Sem ter a intenção o professor nos deu uma grande lição. Por vezes, a teoria se
sobrepõe aos fenômenos que procura compreender e se confunde com eles. A teoria
leninista deixou de ser uma interpretação possível do fenômeno, entre tantas
outras, para se transformar no próprio fenômeno. Este é o momento em que a
teoria converte-se em teologia. É mais ou menos o que acontece com um determinado
produto e uma marca, quando a marca se confunde com o produto na cabeça dos
consumidores. O caso da esponja de aço e a marca Bombril é o melhor exemplo que
conheço. Bombril deixou de ser uma marca, Bombril é a própria esponja de aço. O
uso da teoria de Lênin na Enciclopédia Disney é revelador. A teoria é de tal
forma identificada com o fenômeno que deixou de ser uma teoria. Ludovico pôde
dispor dela como quem vai ao supermercado comprar Bombril. A teoria virou
mercadoria (no sentido ordinário da expressão).
Surpreendente. Acho que a partir destes teus textos do blog tens que pensar na produção de um livro.
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