Acabei de ler um texto sobre a conquista da América e
fiquei impressionado com a quantidade de jargões condenatórios que o autor
empregou para demonstrar o quão violenta e sangrenta ela foi. Inspirado em Las
Casas, e sem relativizar a obra do dominicano, o texto transformou a conquista
num filme de terror histórico. Os espanhóis, alucinados por ouro, eram os
vilões. Os indígenas, passivos e indefesos, eram as vítimas. Os esquemas
binários sempre facilitam as coisas.
A conquista da América não se resume a um conjunto de
atrocidades cometido pelos espanhóis. As atrocidades fazem parte, não há
duvidas, mas devem ser explicadas não pelos sentidos que atribuímos hoje à
violência. Se assim o fizermos estaremos condenando o passado com base nos
valores do presente (Estou chovendo no molhado?). É claro que não podemos abrir
mãos dos valores que praticamos. Escrever história é combinar os signos do
presente com os signos do passado. Entendo que a história é uma “crítica do
presente”, mas para isso devemos compreender o passado e não transforma-lo num
depositário das nossas expectativas, amarguras e conveniências.
Explico-me.
(Digressão teórica).
Para
entendermos os significados da conquista precisamos estar atentos sobretudo aos
signos vigentes na época. É preciso voltar ao passado. À volta ao passado, neste caso a América dos séculos XV e XVI, não é um
acontecimento místico, nem se realiza por passe de mágica. É uma operação técnica
guiada por escolhas teóricas e metodológicas do presente. A expressão “volta ao
passado” é, na verdade, um exercício de imaginação poética para compensar o
drama epistemológico do historiador: a distância insuperável que nos separa do
nosso objeto de investigação. O passado passou, não tem volta. Escrever sobre o
passado, sobre pessoas que viveram no passado, é um gesto unidimensional em
direção ao que já não existe mais. Mas não é um movimento em direção ao vazio,
ao nada. O passado não está morto. Ele está e não está lá. Mesmo não existindo
mais, pode ser sentido, lembrado, visto e, em alguns casos, tocado. Os
vestígios do passado, de um mundo que não existe mais, invadem o presente e se
projetam num tempo que lhes é estranho. Este passado residual tem uma
existência paradoxal no presente. As ruínas de um antigo templo maia, por
exemplo, observadas à maneira de Heidegger, são um gigante solitário e
melancólico preso a um lugar que não é mais o seu. Silenciosas e majestosas,
elas carregam as marcas de um tempo que já não é. As ruínas, fragmentos do
passado que alcançaram o presente, são relíquias intratemporais que escaparam à
fúria devoradora de Crono. Situam-se numa região intersticial do tempo. São
elos entre o que foi e o que é. Por isso são mediadoras da historicidade,
nossas pontes de acesso a um mundo que não é mais (Martin Heidegger. Ser
e Tempo).
Escrever sobre o que já não existe mais é
recriar o que um dia foi. É trazer de volta o que estava perdido para sempre.
Mas o que o historiador traz de volta não é aquilo que um dia foi. Porque
aquilo que um dia foi não pode mais ser. A “ressurreição” do passado não é um
acontecimento místico. É um truque literário e um gesto científico. Não o
truque do mágico ou do ilusionista, mas o do escritor, que traduz e organiza as
experiências do passado em uma narrativa escrita e é capaz de condensar vários
séculos em um punhado de páginas. Escrever sobre o passado é, pois, um
exercício poético e uma arbitrariedade científica.
A história, de acordo com a voz corrente,
promove um diálogo entre os tempos. Antes de endossar este ponto de vista, é
necessário precisar os termos deste diálogo. A ideia do diálogo é, por assim
dizer, “imprópria”. O dito diálogo com o passado é uma conversa sem
interlocutor, na qual nós fazemos as perguntas, definimos os temas e oferecemos
as respostas. É aquela situação meditativa e interrogativa em que nos
encontramos quando estamos diante das ruínas de um templo, a conversar com as
pedras. Somos nós que estabelecemos as relações, fazemos as escolhas, os
recortes e as conjecturas sobre vestígios pétreos e silenciosos. É uma prática
unilateral, uma escolha arbitrária, uma decisão de um lado só. E isso porque o
passado não existe mais. E não há diálogo entre termos que não coexistem. Santo
Agostinho meditou sobre o tempo, no famoso capítulo XI de suas Confissões, e
constatou memoravelmente a dificuldade de explicá-lo. Numa bela passagem,
argumentou que “só de maneira imprópria se fala de passado, presente e futuro”:
“Agora está claro e evidente para mim que o futuro e o passado não existem, e
que não é exato falar de três tempos – passado, presente e futuro. Seria talvez
mais justo dizer que os tempos são três, isto é, o presente dos fatos passados,
o presente dos fatos presentes, o presente dos fatos futuros. E estes três
tempos estão na mente e não os vejo em outro lugar. O presente do passado é a
memória. O presente do presente é a visão. O presente do futuro é a espera. Se
me é permitido falar assim, direi que vejo e admito três tempos, e três tempos
existem. Diga-se mesmo que há três tempos: passado, presente e futuro, conforme
a expressão abusiva em
uso. Admito que se diga assim. Não me importo, não me oponho nem critico tal
uso, contanto que se entenda: o futuro não existe agora, nem o passado.
Raramente se fala com exatidão. O mais das vezes falamos impropriamente, mas
entende-se o que queremos dizer.”
A ideia de Agostinho de que passado e futuro
não existem como realidades, senão como memória e expectativa da realidade
presente, revela, sob certo aspecto, uma notável semelhança com a relação que
estabelecemos hoje entre os tempos. O passado não existe mais e o futuro ainda
não existe. Os dois existem como extensões e expressões do tempo presente. A
ideia do diálogo, nestes termos, é “imprópria”, “mas entende-se o que queremos
dizer.”
Do passado, determinadas expressões de poder
definem o que deve ser lembrado no futuro. Os conquistadores escreveram suas
crônicas. Do presente, os historiadores, situados num certo ambiente de poder e
saber, decidem sobre o que vai ser lembrado do passado. É desta tensão
cambiante entre expressões de poder e saber de épocas distintas que se
configura a escrita da história. A relação com o passado, assim me parece, tem
duas pontas. Numa das pontas, está o historiador. Dessa perspectiva, a do
presente, a escrita da história é sempre o exercício de um poder. O poder de dizer o passado diante do outro
que é só silêncio. E dizer o passado é
retirá-lo do esquecimento, é reintegrá-lo à ordem da memória. O que é lembrado
e o que é esquecido, nesta recriação política do passado, é uma escolha do
historiador. Recriamos experiências de vida de pessoas do passado e as
desnudamos aos olhos de escrutínio do presente. Estabelecemos conjecturas sobre
suas vidas, ações e relações que elas nem sonharam. Muitas das ideias que
levantamos soariam, certamente, muito estranhas às personagens do passado. Elas
estavam envolvidas numa teia de acontecimentos que lhes escapava. Séculos
depois, esta teia se torna visível ao historiador em toda sua espessura,
alcance e conexões (O léxico simplificador, como diria Alfredo Bosi, e
os conceitos – conquistador e índio - que empregamos para descrever ou
classificar homens e mulheres do passado, devoram, em parte, as suas
subjetividades e intersubjetividades).
Mas não é exatamente isso o que se espera de um “diálogo” entre mundos
diferentes? É esta troca entre as experiências do passado e sua reconstrução
histórica no presente que nos permite confrontarmos nossas próprias
experiências. Se falássemos a mesma língua e vivêssemos os mesmo valores, qual
a razão de estudá-los? Se trocarmos
signos de vida é pelo desejo de conhecimento do outro, e de nós mesmos.
Aprender com o passado é auscultá-lo em toda a sua estranheza, e não acomodá-lo
às nossas certezas. Confrontá-lo com o presente é ressaltar sua singularidade,
e a nossa. É apreender a mudança, e aprender a conviver com ela.
Presente e passado, então, encontram-se pela
mão do historiador. Do lado de cá, fazemos nossas escolhas, mas o acesso que
temos ao passado só nos é possível por meio daquilo que o lado de lá nos
permitiu ler. O poder de transmitir ao futuro aquilo que será lembrado é o
poder que o passado tem de impor uma imagem de si ao presente. Cortez sabia o
que estava fazendo ao escrever cinco cartas ao rei de Espanha. Esta angulação
nos permite relativizar a ideia de que o passado é simplesmente uma invenção do
presente. Em certo sentido o é, mas esta invenção é limitada por aquilo que
determinadas relações de força e poder de outras épocas autorizaram chegasse
até o presente. O presente inventa o passado até onde o passado o autoriza.
(Fim da
digressão teórica).
Para evitarmos
uma invenção unilateral do passado e transformarmos a conquista da América numa
projeção das nossas demandas, situemos o tema no ambiente histórico devido. O
primeiro passo a ser dado é no sentido de desfazer algumas simplificações.
Comecemos pelo
anátema que a palavra conquista carrega. As palavras são signos sociais
sensíveis às transformações do mundo. Pela densidade social que as constituem e por serem mediadoras fundamentais das relações humanas,
são indicadores privilegiados das mudanças. Por acompanharem e expressarem
essas mudanças, que também são mudanças de ordem semântica e da linguagem, não são
signos fixos, não carregam significados eternos. As palavras possuem
historicidades deslizantes, são socialmente e historicamente situadas. Algumas
palavras, presas a determinadas experiências, carregam uma herança histórica e
sociológica tão negativa e definitiva que dificulta o exame dos seus
significados no passado. É como se elas mantivessem desde sempre o mesmo
sentido, certa pureza original, e atravessassem os séculos imunes às
transformações do mundo. E este sentido, muitas vezes, é fixado no presente e
projetado para outras épocas, desconsiderando os significados diferentes que as
palavras poderiam ter assumido no passado. É isso o que acontece frequentemente
com a palavra conquista, quando utilizada para se referir as primeiras décadas
de ocupação europeia da América. A palavra é empregada para descrever os
processos turbulentos de tomada das terras dos indígenas, a ocupação
territorial, os massacres, extermínios, enfim, a ação militar traumática que
antecedeu a colonização das novas terras. Não há dúvidas de que a palavra
conquista traduz com precisão isso tudo. Mas também parece não haver dúvidas de
que ela possuía um significado mais amplo, envolvendo também a ação militar,
mas não se limitando a ela. Paralelo às conquistas militares, e inseparável
delas, desdobrou-se outra conquista, a das almas. Denominada de conquista
espiritual, e empreendida por padres e missionários de diferentes ordens
religiosas, teria sido responsável pela destruição das religiões das populações
indígenas e lhes imposto o catolicismo, com o apoio das armas. O dilema “entre
a cruz e espada” define bem o consórcio das duas conquistas. Ruggiero Romano
expressou de forma contundente este ponto de vista, num livro publicado em 1972
(Mecanismos da conquista colonial),
caracterizando a conquista com as palavras: violência, injustiça e hipocrisia.
Os versos de Neruda – que acusam a cruz e a espada pela destruição da “familla
salvage” - são o ponto de partida para “perceber por que elementos foi possível
a conquista da “mais rica e bela parte do mundo” (Michel de Montaigne). A denúncia implacável da conquista, extraída
dos versos de Pablo Neruda, combinada com a visão humanista e idílica de Michel
de Montaigne sobre a América, constituem a fórmula irresistível de Ruggiero
Romano para caracterizar a conquista. A espada representa o aspecto militar,
sangrento e belicoso da conquista, responsável pelas vitórias materiais e pela
destruição física do Novo Mundo e seus habitantes. Embora contundente, a espada
se mostrou insuficiente para submeter os povos indígenas, e os conquistadores
logo compreenderam que: “a margem de segurança que lhes assegurava a técnica
militar, se tornava muito pequena e que teria sido muito fácil alterar um
equilíbrio que, apesar das aparências, permaneceu frágil durante muito tempo. A
conquista efetuada pelas armas devia, portanto, ser mantida por outros meios”
(Ruggiero Romano).
Por outros meios
leia-se a cruz. O gesto inaugural de Colombo ao tomar posse da terra, destaca
Romano, foi fincar uma cruz. Começava, com este gesto, a conquista espiritual
das Américas. Mas foi com a evangelização que a cruz desempenhou realmente o
seu papel. Contrariando o seu objetivo confesso – converter os índios – a obra
de evangelização transformou-se num complemento perfeitamente simétrico à
espada. “Juntas, elas constituirão as preliminares da conquista e da dominação:
a desestruturação de todos os sistemas – político, moral, cultural, religioso –
que regiam as massas indígenas da América.” Por tudo isso, conclui Romano, a evangelização
foi negativa, foi uma forma complementar de agressão, pois provocou a
desintegração cultural e espiritual das culturas locais.
Evidentemente
não se trata de negar nem minimizar a violência e os efeitos devastadores da
conquista sobre as populações americanas. O esforço aqui é no sentido de tentar
restituir à palavra os significados que o século XV, XVI e XVII, ou os sujeitos
envolvidos na conquista da América, atribuíam a ela. Isto não tem absolutamente
nada a ver com justificar a conquista a partir da moral vigente naqueles
tempos. Sabemos que certas palavras, tão poderosas num determinado contexto,
perdem a força e o significado quando isoladas e extraídas da rede social que a
constituía. E perder de vista a significação de uma palavra é perder a própria
palavra, pois “o que faz da palavra uma palavra é sua significação” (Mikhail Bakhtin. Marxismo e filosofia da linguagem).
A palavra conquista evoca hoje, não sem razão, todas as
atrocidades, injustiças e desmandos cometidos pelos espanhóis na América. Essa
talvez tenha sido a mais profunda herança lascasiana (Las Casas) da conquista,
a de um paraíso destruído pela ganância desmedida e brutal dos espanhóis. A
posteridade reteve, em linhas gerais, essa imagem daqueles tempos. Mas como todo
tema polêmico implica luzes e sombras, a conquista da América polarizou o
debate desde o século XVI até os nossos dias. De um lado, a exaltação heroica
da conquista, de outro, o anátema aos criminosos.
Uma espessa crosta ideológica envolveu a palavra conquista
nestes últimos cinco séculos. Chegar aos sentidos da palavra, encobertos por
camadas e camadas de discursos, apologéticos ou condenatórios, e que pressupõem
uma continuidade, requer uma cuidadosa remoção destes discursos sobrepostos.
Uma leitura atenta dos textos deixados pelos diferentes sujeitos envolvidos
pode ser um bom caminho para esboçar uma arqueologia dos significados da
conquista.
Tentar compreender historicamente os
gestos e as ações dos conquistadores não pode ser confundido com aceitação,
conivência ou benevolência em relação às atrocidades, injustiças e toda sorte
de crueldades praticadas. Compreender – apreender com – é demarcar um espaço de
reflexão sobre as ações e as motivações dos conquistadores com vistas a
situá-las nos limites de sua própria historicidade. É desta maneira, examinando
cada época pelas suas próprias referências, que vamos entender o que torna
aquela experiência inédita, singular, nunca justificável. É, pois, este
procedimento que torna possível aprender o sentido das mudanças. Compreender as
ações do “outro” do passado não é buscar a absolvição ou a condenação, é
diferenciá-las das “nossas”. Julgar o
“outro” do passado com os valores
praticados no presente é criar um horizonte comum de expectativas que não
distingue, que uniformiza e, portanto, mata a singularidade das experiências
históricas no tempo. Se retornarmos ao passado, conforme já explicitado, não é
para encontrarmos o mesmo. Não retornamos ao passado para dele nos aproximarmos
em busca de semelhanças e lugares de conforto, mas para nos afastarmos e
delimitarmos a nossa diferença. Compreender os modos de atuação dos
conquistadores com as populações indígenas da América, pelo seu próprio
conjunto de valores e códigos morais é, ao mesmo tempo, criar novos modos de
problematização e julgamento dos nossos modos de percepção da diferença. O
julgamento, neste caso, entendido como um olhar crítico sobre nossas condutas e
valores praticados, é visto como uma reflexão crítica sincrônica, e não como um
deslocamento anacrônico. Cada época julga a si própria pelo que lhe cabe. A
história fornece os parâmetros.
A devoção dos conquistadores e o
“excessivo” apego aos santos e a Virgem Maria é uma boa maneira de compreender
os significados da conquista nos séculos XV e XVI. Uma das imagens mais
celebradas e evocadas ao longo da conquista da América foi a de Nossa Senhora.
Do México ao Paraguai, a imagem da Virgem, sob as mais diversas invocações, deu
suporte espiritual tanto à conquista militar quanto à religiosa. Desde o descobrimento
uma profusão de imagens desembarcou e percorreu as Américas ao lado de
missionários e conquistadores. Se esses a empunhavam como escudo de proteção e
bandeira da fé que os impelia, àqueles solicitavam sua graça para amolecer os
corações gentios e convertê-los à fé cristã. O culto à Virgem no Novo Mundo, no
entanto, não se limitou aos conquistadores que chegavam do além-mar. Na medida
em que a conversão avançava, Nossa Senhora era recebida com entusiasmo e
devoção entre os indígenas. Não demorou muito para ela se tornar uma santa
milagrosa entre esses povos e protegê-los contra as investidas dos
conquistadores. Essa
duplicidade da Virgem na América, ora correndo em socorro dos conquistadores
ora se derramando em auxílio aos indígenas, nos possibilita compreender os
diferentes significados da conquista. Nos séculos XV, XVI e XVII, com ligeiras
variações, a ideia de uma conquista imposta pelas armas, em busca de riquezas,
era inseparável de um significado religioso característico daquele momento. Considerar
a conquista como uma variante puramente econômica, a insaciável busca pelo
ouro, e esquecer a devoção religiosa dos conquistadores, é cair num
reducionismo caricatural. Rubén Vargas Ugarte, num estudo sobre o culto à
Virgem na Ibero - América, já havia sublinhado, não sem algum desconforto, que:
“aunque es forzoso reconocer que muchos de los conquistadores españoles
no estuvieron exentos de graves defectos, es incontestable que casi todos eran
hombres de arraigada fe y además fervientes devotos de la Virgen María.”
A ambígua e
explosiva combinação da devoção religiosa com a devoção pelo ouro e a
truculência militar, foi a marca registrada dos conquistadores e o fomento
indispensável às suas vitórias. A religião fornecia o álibi perfeito e a justificativa
moral para a conquista territorial, o saque dos tesouros e a guerra contra as
populações indígenas. Era como se pudessem cometer o pecado e não alimentar o
sentimento de culpa e remorso. É nesta trama de interesses e devoções que se
foi moldando uma semântica da conquista. O que o nosso tempo definiu como
condenável e moralmente inaceitável, parecia ser desejável e moralmente
justificável naqueles tempos. No ambiente ambíguo da conquista foi possível,
por exemplo, associar as vitórias militares e religiosas à imagem da Virgem
Maria. Na tradição cristã católica, e especialmente na espanhola, a imagem da
Virgem foi presença constante ao lado dos missionários e conquistadores como
escudo protetor e estandarte da fé. Foi assim na reconquista com a Virgem de
Covadonga, na conquista do México com Nossa Senhora dos Remédios e Nossa
Senhora de Loreto na conquista jesuítica do noroeste da nova Espanha. Uma
leitura atenta da documentação, voltada para o apelo religioso que envolveu a
conquista da América, mostra a indissolubilidade entre o empreendimento
colonial e os símbolos religiosos. A conquista revestiu-se de uma simbologia
composta de cruzes, pinturas, relíquias, orações, rosários, evocações, missas,
celebrações das datas santas, reveladora da fé e devoção daqueles homens. A
cada passo, a cada gesto, seguia-se um jogo ritual de invocações a Deus, a
Cristo, a Virgem ou o santo de devoção, rogando proteção ou agradecendo a graça
da vitória.
A presença da Virgem Maria, no entanto, causa certa
estranheza à sensibilidade contemporânea, para a qual a conquista, em geral, é
associada à destruição das culturas indígenas. Esta aparente desconexão entre a
violência da conquista e a imagem de proteção e conforto trazidos por Nossa
Senhora, me leva a formular alguns questionamentos: por quais razões o símbolo
máximo da piedade católica foi associado à conquista das populações indígenas?
Que relações havia entre o sentido corrente de conquista e a presença da Virgem
na América? Se Nossa Senhora, que na tradição cristã ocidental representa a
figura materna bondosa e humilde, foi identificada com as conquistas militares
e religiosas, é porque a concepção de conquista tinha naquele momento um
sentido distinto daquele retido e consagrado pela posteridade. Creio que este é
um bom caminho.
O diálogo com o passado pressupõe estar aberto as
suas estranhezas. Acomodá-lo as nossas certezas e submetê-lo ao “tribunal da
história” não é compreendê-lo, mas domesticá-lo.
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