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segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

VIRGEM MARIA E A CONQUISTA DA AMÉRICA: um breve aporte teórico.


VIRGEM MARIA E A CONQUISTA DA AMÉRICA: um breve aporte teórico.






Acabei de ler um texto sobre a conquista da América e fiquei impressionado com a quantidade de jargões condenatórios que o autor empregou para demonstrar o quão violenta e sangrenta ela foi. Inspirado em Las Casas, e sem relativizar a obra do dominicano, o texto transformou a conquista num filme de terror histórico. Os espanhóis, alucinados por ouro, eram os vilões. Os indígenas, passivos e indefesos, eram as vítimas. Os esquemas binários sempre facilitam as coisas.



A conquista da América não se resume a um conjunto de atrocidades cometido pelos espanhóis. As atrocidades fazem parte, não há duvidas, mas devem ser explicadas não pelos sentidos que atribuímos hoje à violência. Se assim o fizermos estaremos condenando o passado com base nos valores do presente (Estou chovendo no molhado?). É claro que não podemos abrir mãos dos valores que praticamos. Escrever história é combinar os signos do presente com os signos do passado. Entendo que a história é uma “crítica do presente”, mas para isso devemos compreender o passado e não transforma-lo num depositário das nossas expectativas, amarguras e conveniências.



Explico-me.



(Digressão teórica).



Para entendermos os significados da conquista precisamos estar atentos sobretudo aos signos vigentes na época. É preciso voltar ao passado. À volta ao passado, neste caso a América dos séculos XV e XVI, não é um acontecimento místico, nem se realiza por passe de mágica. É uma operação técnica guiada por escolhas teóricas e metodológicas do presente. A expressão “volta ao passado” é, na verdade, um exercício de imaginação poética para compensar o drama epistemológico do historiador: a distância insuperável que nos separa do nosso objeto de investigação. O passado passou, não tem volta. Escrever sobre o passado, sobre pessoas que viveram no passado, é um gesto unidimensional em direção ao que já não existe mais. Mas não é um movimento em direção ao vazio, ao nada. O passado não está morto. Ele está e não está lá. Mesmo não existindo mais, pode ser sentido, lembrado, visto e, em alguns casos, tocado. Os vestígios do passado, de um mundo que não existe mais, invadem o presente e se projetam num tempo que lhes é estranho. Este passado residual tem uma existência paradoxal no presente. As ruínas de um antigo templo maia, por exemplo, observadas à maneira de Heidegger, são um gigante solitário e melancólico preso a um lugar que não é mais o seu. Silenciosas e majestosas, elas carregam as marcas de um tempo que já não é. As ruínas, fragmentos do passado que alcançaram o presente, são relíquias intratemporais que escaparam à fúria devoradora de Crono. Situam-se numa região intersticial do tempo. São elos entre o que foi e o que é. Por isso são mediadoras da historicidade, nossas pontes de acesso a um mundo que não é mais (Martin Heidegger. Ser e Tempo).



 Escrever sobre o que já não existe mais é recriar o que um dia foi. É trazer de volta o que estava perdido para sempre. Mas o que o historiador traz de volta não é aquilo que um dia foi. Porque aquilo que um dia foi não pode mais ser. A “ressurreição” do passado não é um acontecimento místico. É um truque literário e um gesto científico. Não o truque do mágico ou do ilusionista, mas o do escritor, que traduz e organiza as experiências do passado em uma narrativa escrita e é capaz de condensar vários séculos em um punhado de páginas. Escrever sobre o passado é, pois, um exercício poético e uma arbitrariedade científica.



A história, de acordo com a voz corrente, promove um diálogo entre os tempos. Antes de endossar este ponto de vista, é necessário precisar os termos deste diálogo. A ideia do diálogo é, por assim dizer, “imprópria”. O dito diálogo com o passado é uma conversa sem interlocutor, na qual nós fazemos as perguntas, definimos os temas e oferecemos as respostas. É aquela situação meditativa e interrogativa em que nos encontramos quando estamos diante das ruínas de um templo, a conversar com as pedras. Somos nós que estabelecemos as relações, fazemos as escolhas, os recortes e as conjecturas sobre vestígios pétreos e silenciosos. É uma prática unilateral, uma escolha arbitrária, uma decisão de um lado só. E isso porque o passado não existe mais. E não há diálogo entre termos que não coexistem. Santo Agostinho meditou sobre o tempo, no famoso capítulo XI de suas Confissões, e constatou memoravelmente a dificuldade de explicá-lo. Numa bela passagem, argumentou que “só de maneira imprópria se fala de passado, presente e futuro”: “Agora está claro e evidente para mim que o futuro e o passado não existem, e que não é exato falar de três tempos – passado, presente e futuro. Seria talvez mais justo dizer que os tempos são três, isto é, o presente dos fatos passados, o presente dos fatos presentes, o presente dos fatos futuros. E estes três tempos estão na mente e não os vejo em outro lugar. O presente do passado é a memória. O presente do presente é a visão. O presente do futuro é a espera. Se me é permitido falar assim, direi que vejo e admito três tempos, e três tempos existem. Diga-se mesmo que há três tempos: passado, presente e futuro, conforme a expressão abusiva em uso. Admito que se diga assim.  Não me importo, não me oponho nem critico tal uso, contanto que se entenda: o futuro não existe agora, nem o passado. Raramente se fala com exatidão. O mais das vezes falamos impropriamente, mas entende-se o que queremos dizer.”



A ideia de Agostinho de que passado e futuro não existem como realidades, senão como memória e expectativa da realidade presente, revela, sob certo aspecto, uma notável semelhança com a relação que estabelecemos hoje entre os tempos. O passado não existe mais e o futuro ainda não existe. Os dois existem como extensões e expressões do tempo presente. A ideia do diálogo, nestes termos, é “imprópria”, “mas entende-se o que queremos dizer.” 



Do passado, determinadas expressões de poder definem o que deve ser lembrado no futuro. Os conquistadores escreveram suas crônicas. Do presente, os historiadores, situados num certo ambiente de poder e saber, decidem sobre o que vai ser lembrado do passado. É desta tensão cambiante entre expressões de poder e saber de épocas distintas que se configura a escrita da história. A relação com o passado, assim me parece, tem duas pontas. Numa das pontas, está o historiador. Dessa perspectiva, a do presente, a escrita da história é sempre o exercício de um poder.  O poder de dizer o passado diante do outro que é só silêncio.  E dizer o passado é retirá-lo do esquecimento, é reintegrá-lo à ordem da memória. O que é lembrado e o que é esquecido, nesta recriação política do passado, é uma escolha do historiador. Recriamos experiências de vida de pessoas do passado e as desnudamos aos olhos de escrutínio do presente. Estabelecemos conjecturas sobre suas vidas, ações e relações que elas nem sonharam. Muitas das ideias que levantamos soariam, certamente, muito estranhas às personagens do passado. Elas estavam envolvidas numa teia de acontecimentos que lhes escapava. Séculos depois, esta teia se torna visível ao historiador em toda sua espessura, alcance e conexões (O léxico simplificador, como diria Alfredo Bosi, e os conceitos – conquistador e índio - que empregamos para descrever ou classificar homens e mulheres do passado, devoram, em parte, as suas subjetividades e intersubjetividades). Mas não é exatamente isso o que se espera de um “diálogo” entre mundos diferentes? É esta troca entre as experiências do passado e sua reconstrução histórica no presente que nos permite confrontarmos nossas próprias experiências. Se falássemos a mesma língua e vivêssemos os mesmo valores, qual a razão de estudá-los?  Se trocarmos signos de vida é pelo desejo de conhecimento do outro, e de nós mesmos. Aprender com o passado é auscultá-lo em toda a sua estranheza, e não acomodá-lo às nossas certezas. Confrontá-lo com o presente é ressaltar sua singularidade, e a nossa. É apreender a mudança, e aprender a conviver com ela.



Presente e passado, então, encontram-se pela mão do historiador. Do lado de cá, fazemos nossas escolhas, mas o acesso que temos ao passado só nos é possível por meio daquilo que o lado de lá nos permitiu ler. O poder de transmitir ao futuro aquilo que será lembrado é o poder que o passado tem de impor uma imagem de si ao presente. Cortez sabia o que estava fazendo ao escrever cinco cartas ao rei de Espanha. Esta angulação nos permite relativizar a ideia de que o passado é simplesmente uma invenção do presente. Em certo sentido o é, mas esta invenção é limitada por aquilo que determinadas relações de força e poder de outras épocas autorizaram chegasse até o presente. O presente inventa o passado até onde o passado o autoriza.



(Fim da digressão teórica).



Para evitarmos uma invenção unilateral do passado e transformarmos a conquista da América numa projeção das nossas demandas, situemos o tema no ambiente histórico devido. O primeiro passo a ser dado é no sentido de desfazer algumas simplificações.



Comecemos pelo anátema que a palavra conquista carrega. As palavras são signos sociais sensíveis às transformações do mundo. Pela densidade social que as constituem e por serem mediadoras fundamentais das relações humanas, são indicadores privilegiados das mudanças. Por acompanharem e expressarem essas mudanças, que também são mudanças de ordem semântica e da linguagem, não são signos fixos, não carregam significados eternos. As palavras possuem historicidades deslizantes, são socialmente e historicamente situadas. Algumas palavras, presas a determinadas experiências, carregam uma herança histórica e sociológica tão negativa e definitiva que dificulta o exame dos seus significados no passado. É como se elas mantivessem desde sempre o mesmo sentido, certa pureza original, e atravessassem os séculos imunes às transformações do mundo. E este sentido, muitas vezes, é fixado no presente e projetado para outras épocas, desconsiderando os significados diferentes que as palavras poderiam ter assumido no passado. É isso o que acontece frequentemente com a palavra conquista, quando utilizada para se referir as primeiras décadas de ocupação europeia da América. A palavra é empregada para descrever os processos turbulentos de tomada das terras dos indígenas, a ocupação territorial, os massacres, extermínios, enfim, a ação militar traumática que antecedeu a colonização das novas terras. Não há dúvidas de que a palavra conquista traduz com precisão isso tudo. Mas também parece não haver dúvidas de que ela possuía um significado mais amplo, envolvendo também a ação militar, mas não se limitando a ela. Paralelo às conquistas militares, e inseparável delas, desdobrou-se outra conquista, a das almas. Denominada de conquista espiritual, e empreendida por padres e missionários de diferentes ordens religiosas, teria sido responsável pela destruição das religiões das populações indígenas e lhes imposto o catolicismo, com o apoio das armas. O dilema “entre a cruz e espada” define bem o consórcio das duas conquistas. Ruggiero Romano expressou de forma contundente este ponto de vista, num livro publicado em 1972 (Mecanismos da conquista colonial), caracterizando a conquista com as palavras: violência, injustiça e hipocrisia. Os versos de Neruda – que acusam a cruz e a espada pela destruição da “familla salvage” - são o ponto de partida para “perceber por que elementos foi possível a conquista da “mais rica e bela parte do mundo” (Michel de Montaigne).  A denúncia implacável da conquista, extraída dos versos de Pablo Neruda, combinada com a visão humanista e idílica de Michel de Montaigne sobre a América, constituem a fórmula irresistível de Ruggiero Romano para caracterizar a conquista. A espada representa o aspecto militar, sangrento e belicoso da conquista, responsável pelas vitórias materiais e pela destruição física do Novo Mundo e seus habitantes. Embora contundente, a espada se mostrou insuficiente para submeter os povos indígenas, e os conquistadores logo compreenderam que: “a margem de segurança que lhes assegurava a técnica militar, se tornava muito pequena e que teria sido muito fácil alterar um equilíbrio que, apesar das aparências, permaneceu frágil durante muito tempo. A conquista efetuada pelas armas devia, portanto, ser mantida por outros meios” (Ruggiero Romano).


           

Por outros meios leia-se a cruz. O gesto inaugural de Colombo ao tomar posse da terra, destaca Romano, foi fincar uma cruz. Começava, com este gesto, a conquista espiritual das Américas. Mas foi com a evangelização que a cruz desempenhou realmente o seu papel. Contrariando o seu objetivo confesso – converter os índios – a obra de evangelização transformou-se num complemento perfeitamente simétrico à espada. “Juntas, elas constituirão as preliminares da conquista e da dominação: a desestruturação de todos os sistemas – político, moral, cultural, religioso – que regiam as massas indígenas da América.” Por tudo isso, conclui Romano, a evangelização foi negativa, foi uma forma complementar de agressão, pois provocou a desintegração cultural e espiritual das culturas locais.



Evidentemente não se trata de negar nem minimizar a violência e os efeitos devastadores da conquista sobre as populações americanas. O esforço aqui é no sentido de tentar restituir à palavra os significados que o século XV, XVI e XVII, ou os sujeitos envolvidos na conquista da América, atribuíam a ela. Isto não tem absolutamente nada a ver com justificar a conquista a partir da moral vigente naqueles tempos. Sabemos que certas palavras, tão poderosas num determinado contexto, perdem a força e o significado quando isoladas e extraídas da rede social que a constituía. E perder de vista a significação de uma palavra é perder a própria palavra, pois “o que faz da palavra uma palavra é sua significação” (Mikhail Bakhtin. Marxismo e filosofia da linguagem).



           

A palavra conquista evoca hoje, não sem razão, todas as atrocidades, injustiças e desmandos cometidos pelos espanhóis na América. Essa talvez tenha sido a mais profunda herança lascasiana (Las Casas) da conquista, a de um paraíso destruído pela ganância desmedida e brutal dos espanhóis. A posteridade reteve, em linhas gerais, essa imagem daqueles tempos. Mas como todo tema polêmico implica luzes e sombras, a conquista da América polarizou o debate desde o século XVI até os nossos dias. De um lado, a exaltação heroica da conquista, de outro, o anátema aos criminosos.

           

Uma espessa crosta ideológica envolveu a palavra conquista nestes últimos cinco séculos. Chegar aos sentidos da palavra, encobertos por camadas e camadas de discursos, apologéticos ou condenatórios, e que pressupõem uma continuidade, requer uma cuidadosa remoção destes discursos sobrepostos. Uma leitura atenta dos textos deixados pelos diferentes sujeitos envolvidos pode ser um bom caminho para esboçar uma arqueologia dos significados da conquista.



Tentar compreender historicamente os gestos e as ações dos conquistadores não pode ser confundido com aceitação, conivência ou benevolência em relação às atrocidades, injustiças e toda sorte de crueldades praticadas. Compreender – apreender com – é demarcar um espaço de reflexão sobre as ações e as motivações dos conquistadores com vistas a situá-las nos limites de sua própria historicidade. É desta maneira, examinando cada época pelas suas próprias referências, que vamos entender o que torna aquela experiência inédita, singular, nunca justificável. É, pois, este procedimento que torna possível aprender o sentido das mudanças. Compreender as ações do “outro” do passado não é buscar a absolvição ou a condenação, é diferenciá-las das “nossas”. Julgar o “outro” do passado com os valores praticados no presente é criar um horizonte comum de expectativas que não distingue, que uniformiza e, portanto, mata a singularidade das experiências históricas no tempo. Se retornarmos ao passado, conforme já explicitado, não é para encontrarmos o mesmo. Não retornamos ao passado para dele nos aproximarmos em busca de semelhanças e lugares de conforto, mas para nos afastarmos e delimitarmos a nossa diferença. Compreender os modos de atuação dos conquistadores com as populações indígenas da América, pelo seu próprio conjunto de valores e códigos morais é, ao mesmo tempo, criar novos modos de problematização e julgamento dos nossos modos de percepção da diferença. O julgamento, neste caso, entendido como um olhar crítico sobre nossas condutas e valores praticados, é visto como uma reflexão crítica sincrônica, e não como um deslocamento anacrônico. Cada época julga a si própria pelo que lhe cabe. A história fornece os parâmetros.



A devoção dos conquistadores e o “excessivo” apego aos santos e a Virgem Maria é uma boa maneira de compreender os significados da conquista nos séculos XV e XVI. Uma das imagens mais celebradas e evocadas ao longo da conquista da América foi a de Nossa Senhora. Do México ao Paraguai, a imagem da Virgem, sob as mais diversas invocações, deu suporte espiritual tanto à conquista militar quanto à religiosa. Desde o descobrimento uma profusão de imagens desembarcou e percorreu as Américas ao lado de missionários e conquistadores. Se esses a empunhavam como escudo de proteção e bandeira da fé que os impelia, àqueles solicitavam sua graça para amolecer os corações gentios e convertê-los à fé cristã. O culto à Virgem no Novo Mundo, no entanto, não se limitou aos conquistadores que chegavam do além-mar. Na medida em que a conversão avançava, Nossa Senhora era recebida com entusiasmo e devoção entre os indígenas. Não demorou muito para ela se tornar uma santa milagrosa entre esses povos e protegê-los contra as investidas dos conquistadores.            Essa duplicidade da Virgem na América, ora correndo em socorro dos conquistadores ora se derramando em auxílio aos indígenas, nos possibilita compreender os diferentes significados da conquista. Nos séculos XV, XVI e XVII, com ligeiras variações, a ideia de uma conquista imposta pelas armas, em busca de riquezas, era inseparável de um significado religioso característico daquele momento. Considerar a conquista como uma variante puramente econômica, a insaciável busca pelo ouro, e esquecer a devoção religiosa dos conquistadores, é cair num reducionismo caricatural. Rubén Vargas Ugarte, num estudo sobre o culto à Virgem na Ibero - América, já havia sublinhado, não sem algum desconforto, que: “aunque es forzoso reconocer que muchos de los conquistadores españoles no estuvieron exentos de graves defectos, es incontestable que casi todos eran hombres de arraigada fe y además fervientes devotos de la Virgen María.”



A ambígua e explosiva combinação da devoção religiosa com a devoção pelo ouro e a truculência militar, foi a marca registrada dos conquistadores e o fomento indispensável às suas vitórias. A religião fornecia o álibi perfeito e a justificativa moral para a conquista territorial, o saque dos tesouros e a guerra contra as populações indígenas. Era como se pudessem cometer o pecado e não alimentar o sentimento de culpa e remorso. É nesta trama de interesses e devoções que se foi moldando uma semântica da conquista. O que o nosso tempo definiu como condenável e moralmente inaceitável, parecia ser desejável e moralmente justificável naqueles tempos. No ambiente ambíguo da conquista foi possível, por exemplo, associar as vitórias militares e religiosas à imagem da Virgem Maria. Na tradição cristã católica, e especialmente na espanhola, a imagem da Virgem foi presença constante ao lado dos missionários e conquistadores como escudo protetor e estandarte da fé. Foi assim na reconquista com a Virgem de Covadonga, na conquista do México com Nossa Senhora dos Remédios e Nossa Senhora de Loreto na conquista jesuítica do noroeste da nova Espanha. Uma leitura atenta da documentação, voltada para o apelo religioso que envolveu a conquista da América, mostra a indissolubilidade entre o empreendimento colonial e os símbolos religiosos. A conquista revestiu-se de uma simbologia composta de cruzes, pinturas, relíquias, orações, rosários, evocações, missas, celebrações das datas santas, reveladora da fé e devoção daqueles homens. A cada passo, a cada gesto, seguia-se um jogo ritual de invocações a Deus, a Cristo, a Virgem ou o santo de devoção, rogando proteção ou agradecendo a graça da vitória.



A presença da Virgem Maria, no entanto, causa certa estranheza à sensibilidade contemporânea, para a qual a conquista, em geral, é associada à destruição das culturas indígenas. Esta aparente desconexão entre a violência da conquista e a imagem de proteção e conforto trazidos por Nossa Senhora, me leva a formular alguns questionamentos: por quais razões o símbolo máximo da piedade católica foi associado à conquista das populações indígenas? Que relações havia entre o sentido corrente de conquista e a presença da Virgem na América? Se Nossa Senhora, que na tradição cristã ocidental representa a figura materna bondosa e humilde, foi identificada com as conquistas militares e religiosas, é porque a concepção de conquista tinha naquele momento um sentido distinto daquele retido e consagrado pela posteridade. Creio que este é um bom caminho.



O diálogo com o passado pressupõe estar aberto as suas estranhezas. Acomodá-lo as nossas certezas e submetê-lo ao “tribunal da história” não é compreendê-lo, mas domesticá-lo.







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