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segunda-feira, 13 de julho de 2015

“INFÂNCIA ROUBADA”: SEQUESTRO E TORTURA DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES NA DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA.

“INFÂNCIA ROUBADA”: SEQUESTRO E TORTURA DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES NA DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA.



A situação política do país é delicada. Velhos fantasmas voltam a assombrar nossa jovem democracia. Como há cinquenta anos, pessoas que se dizem defensoras da família e dos valores cristãos saem às ruas para pedir abertamente uma intervenção militar. Não duvido das “boas intenções”, afinal, elas querem o que consideram o melhor para o país, não é mesmo. Mas sabem elas o que realmente significa uma intervenção militar? A meu ver, estas pessoas têm uma perspectiva idealizada e estreita do passado que querem de volta e uma visão delirante do presente.

Precisamos de uma intervenção urgente, mas não dos militares. A intervenção que o país precisa é a dos pesquisadores, dos historiadores, dos sociólogos, dos antropólogos, dos filósofos, dos cientistas sociais. Não do tipo classista, partidária e autoritária que fez Marilena Chauí, declarando ódio à classe média. Precisamos de uma intervenção democrática, humanista, inteligível, capaz de estabelecer um diálogo com a sociedade e esclarecer (não apenas para os seus pares ou para pontuar no lattes) sobre os perigos que rondam nossa democracia. Esclarecer sobre o passado recente, tão vivo entre nós, significa confrontar visões mistificadoras sobre o regime militar presentes no senso comum.



A Comissão da Verdade, embora desprestigiada e desacreditada por opositores do governo que a constituiu, vem prestando um importante trabalho investigativo sobre a violação dos direitos humanos no Brasil. Um dos trabalhos mais importantes da Comissão é tirar o véu do esquecimento sobre o passado recente (décadas de 1960 e 1970) e dar voz às vítimas da ditadura que nunca foram ouvidas. Trazer a tona os testemunhos de pessoas que, mesmo não sendo militantes políticos, sofreram sob a ditadura, é uma das melhores maneiras de esclarecer o passado e exorcizar o fantasma da intervenção militar. Lembremos aos autoproclamados defensores da família brasileira, que querem os militares de volta, que muitas das pessoas que sofreram agressões, físicas e simbólicas, eram crianças e adolescentes que tinham entre 1 e 16 anos de idade.

O livro lançado em 2014, organizado pela Comissão da Verdade de São Paulo, intitulado “Infância Roubada”, traz relatos de 40 pessoas, que tem hoje entre 40 e 60 anos, que foram na década de 1970 presas com os pais. Os relatos são estarrecedores e revelam a face mais brutal da ditadura. Taxadas de “miniterroristas”, ou acusadas de serem filhos de terroristas, dezenas de crianças foram presas e sofreram diversas formas de violência. Muitas delas tornaram-se adultos com enormes dificuldades de socialização. Nestes casos, a ditadura mutilou brutalmente laços familiares, interrompeu a infância e produziu traumas individuais e familiares profundos.

As formas de violência praticadas contra as crianças, reveladas pelos depoimentos, podem ser agrupadas da seguinte maneira:

Tortura no ventre da mãe.

Várias mulheres, militantes e esposas de militantes, foram torturadas durante a gestação. As torturas provocaram hemorragias e, na maioria dos casos, abortos forçados. A estudante Regina Maria Toscano, de 23 anos, foi torturada grávida com choques elétricos, inclusive na vagina, e perdeu a criança. Em alguns casos, mulheres como Dinalva Oliveira Teixeira, foram torturadas grávidas e assassinadas.

Tortura dos pais na presença dos filhos.

Algumas crianças presenciaram a tortura e a morte dos pais. Antonio Lucena foi assassinado na frente dos filhos de 3 e 6 anos, enquanto o filho mais velho, de 18 anos, era torturado no DOI-CODI de São Paulo.

Tortura física e molestação de crianças.

Várias crianças foram submetidas a sessões de tortura como estratégia para forçar os pais a revelar o paradeiro dos seus companheiros. Gino Ghilardini, de 8 anos, foi torturado junto com a mãe para forçar o pai, Luis Ghilardini, comunista assassinado sob torturas no DOI-CODI/RJ, a entregar os companheiros. Em depoimento à Comissão da Verdade, Gino disse que ouvia o “pai ali perto gemendo, (...) escutava, mas não podia fazer nada”. 

O gaúcho Ivan Seixas foi preso aos 16 anos e torturado, enquanto ouvia os gritos do seu pai na sala ao lado.

Banimento de crianças.

Crianças foram presas com os pais, fichadas como subversivas e consideradas perigosas à segurança nacional. Foram banidas e cresceram no exterior. Damaris Lucena, esposa de Antonio Lucena, foi presa, torturada e banida do país juntamente com os filhos pequenos.

(Para uma visão mais detalhada dos diversos casos investigados, ver: INFÂNCIA ROUBADA: crianças atingidas pela ditadura militar no Brasil).



 Na Argentina o tratamento dado às crianças, embora igualmente inaceitável, foi outro. Diferentemente dos militares brasileiros, os argentinos viam as crianças como inocentes, que podiam ser moldadas e educadas de acordo com as expectativas oficiais. Por isso, os filhos(as) dos presos políticos eram entregues para militares ou simpatizantes do regime para adoção (aproximadamente 500 crianças foram separadas dos pais entre 1976 e 1983 na Argentina). Os militares brasileiros, pelo que se depreende dos seus atos, entendiam que o comunismo estava no sangue das crianças. Era uma doença transmitida por herança genética. Se na argentina as mães grávidas eram tratadas com algum cuidado até o nascimento da criança, aqui as mães eram torturadas com os filhos no ventre. Foi o que aconteceu com Hecilda, uma das depoentes do livro, torturada grávida na presença do marido. Antes do filho nascer, um militar teria dito a ela que “filho dessa raça não deve nascer”. O sujeito, e o regime que o investia de tal poder, julgavam ter o direito sobre a vida e a morte. Imbuídos de um peculiar messianismo de caserna, atávico em alguns seguimentos das forças armadas desde a proclamação da república, os heroicos militares praticavam uma intervenção saneadora no presente para salvar o futuro do suposto perigo comunista.

A forma como as crianças foram tratadas, sugere que os militares as viam como perigosas, potencialmente criminosas, e pretendiam realmente cortar o mal pela raiz. Ou era isso, ou eles eram assustadoramente sádicos e perversos! Não descartaria, em alguns casos, um misto das duas coisas. Apostando na hipótese do perigo infantil, somos levados a crer que os militares supunham ser o comunismo um problema congênito, e que a intervenção na infância interromperia a cadeia da transmissão da genética comunista. Lombrosianos tardios, os militares criminalizaram a infância, mutilaram a inocência, e produziram um monumento, feito de violência e covardia, em memória da ditadura. 

É lamentável assistir, com incômoda sensação de impotência, a ressureição de um passado obscuro e violento, requintado de maneira charlatanesca e (re)apresentado como solução messiânica para os problemas do país. Problemas, diga-se de passagem, em grande parte fruto da desinformação e da imaginação conspiratória. Igualmente lamentável é constatar que as chances de sensibilização dos sujeitos que querem os militares de volta são quase nulas. São forças cegas e surdas, como abstrações erráticas, que marcham pelas ruas do Brasil, tão seguras de si próprias que não se abrem sequer ao diálogo. É impossível dialogar com abstrações (Camus). Li na net alguns comentários referentes às matérias sobre o livro “Infância Roubada” que são representativos e parecem traduzir perfeitamente bem o universo mental desta parcela da população brasileira. Alguns afirmam que tudo não passa de invenção da esquerda, e que a Comissão da Verdade é revanchista e só investiga os militares. Outros dizem ter pena das crianças que vivem nas ditaduras Cubana e Venezuelana, das quais o governo do PT é cúmplice.  Outros insinuam que estão usando as crianças para atacar os militares e defender o governo Dilma. Os mais exaltados dizem que os depoentes estão mentindo e pousando de vítimas para conseguir uma aposentadoria do governo. Para a maioria é tudo mentira. De um jeito ou de outro, os comentários tentam desqualificar e invalidar os testemunhos e os trabalhos da Comissão da Verdade, vista por eles como um antro de comunistas. Os argumentos são simplórios, as comparações são débeis, mas eles estão aí, opinando, e expondo, em português sofrível, suas certezas inabaláveis! Mas não é este o principal problema. Devemos estar atentos para o uso político que certos grupos bastante articulados fazem destas manifestações fanáticas, como se fez em 64, para avançar com teses antidemocráticas e justificar manobras políticas oportunistas.


Mas o que mais preocupa, como lamentou Albert Camus em 1946, é “a boa vontade de toda a gente. Todos pensam que a verdade que possuem é a que convém à felicidade dos homens”. A conjunção das boas vontades levou, no tempo de Camus, ao terror da segunda guerra. A boa vontade dos militares e dos cidadãos de bem, que se diziam defensores da família, da moral e dos bons costumes, e que queriam ver o Brasil livre da ameaça comunista, a qualquer preço, arrastou o nosso país para uma ditadura covarde que não poupou nem as crianças. Mas todos eram movidos pela boa vontade. Todos queriam um Brasil melhor.

Para onde a soma das boas vontades que explode hoje em verde e amarelo pelas ruas, com apelos sinceros pelo retorno dos militares, vai nos conduzir? Escutem as crianças de ontem. Elas carregam os segredos do futuro.




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