“INFÂNCIA
ROUBADA”: SEQUESTRO E TORTURA DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES NA DITADURA CIVIL-MILITAR
BRASILEIRA.
A situação política do
país é delicada. Velhos fantasmas voltam a assombrar nossa jovem democracia.
Como há cinquenta anos, pessoas que se dizem defensoras da família e dos
valores cristãos saem às ruas para pedir abertamente uma intervenção militar. Não
duvido das “boas intenções”, afinal, elas querem o que consideram o melhor para
o país, não é mesmo. Mas sabem elas o que realmente significa uma intervenção
militar? A meu ver, estas pessoas têm uma perspectiva idealizada e estreita do
passado que querem de volta e uma visão delirante do presente.
Precisamos de uma intervenção
urgente, mas não dos militares. A intervenção que o país precisa é a dos
pesquisadores, dos historiadores, dos sociólogos, dos antropólogos, dos
filósofos, dos cientistas sociais. Não do tipo classista, partidária e
autoritária que fez Marilena Chauí, declarando ódio à classe média. Precisamos
de uma intervenção democrática, humanista, inteligível, capaz de estabelecer um
diálogo com a sociedade e esclarecer (não apenas para os seus pares ou para
pontuar no lattes) sobre os perigos que rondam nossa democracia. Esclarecer
sobre o passado recente, tão vivo entre nós, significa confrontar visões
mistificadoras sobre o regime militar presentes no senso comum.
A Comissão da Verdade,
embora desprestigiada e desacreditada por opositores do governo que a
constituiu, vem prestando um importante trabalho investigativo sobre a violação dos direitos humanos no Brasil. Um dos trabalhos mais importantes da Comissão é
tirar o véu do esquecimento sobre o passado recente (décadas de 1960 e 1970) e
dar voz às vítimas da ditadura que nunca foram ouvidas. Trazer a tona os
testemunhos de pessoas que, mesmo não sendo militantes políticos, sofreram sob
a ditadura, é uma das melhores maneiras de esclarecer o passado e exorcizar o
fantasma da intervenção militar. Lembremos aos autoproclamados defensores da
família brasileira, que querem os militares de volta, que muitas das pessoas que
sofreram agressões, físicas e simbólicas, eram crianças e adolescentes que
tinham entre 1 e 16 anos de idade.
O livro lançado em
2014, organizado pela Comissão da Verdade de São Paulo, intitulado “Infância
Roubada”, traz relatos de 40 pessoas, que tem hoje entre 40 e 60 anos, que
foram na década de 1970 presas com os pais. Os relatos são estarrecedores e
revelam a face mais brutal da ditadura. Taxadas de “miniterroristas”, ou
acusadas de serem filhos de terroristas, dezenas de crianças foram presas e
sofreram diversas formas de violência. Muitas delas tornaram-se adultos com
enormes dificuldades de socialização. Nestes casos, a ditadura mutilou
brutalmente laços familiares, interrompeu a infância e produziu traumas
individuais e familiares profundos.
As formas de violência
praticadas contra as crianças, reveladas pelos depoimentos, podem ser agrupadas
da seguinte maneira:
Tortura
no ventre da mãe.
Várias mulheres,
militantes e esposas de militantes, foram torturadas durante a gestação. As
torturas provocaram hemorragias e, na maioria dos casos, abortos forçados. A
estudante Regina Maria Toscano, de 23 anos, foi torturada grávida com choques
elétricos, inclusive na vagina, e perdeu a criança. Em alguns casos, mulheres
como Dinalva Oliveira Teixeira, foram torturadas grávidas e assassinadas.
Tortura
dos pais na presença dos filhos.
Algumas crianças presenciaram
a tortura e a morte dos pais. Antonio Lucena foi assassinado na frente dos
filhos de 3 e 6 anos, enquanto o filho mais velho, de 18 anos, era torturado no
DOI-CODI de São Paulo.
Tortura
física e molestação de crianças.
Várias crianças
foram submetidas a sessões de tortura como estratégia para forçar os pais a
revelar o paradeiro dos seus companheiros. Gino Ghilardini, de 8 anos, foi
torturado junto com a mãe para forçar o pai, Luis Ghilardini, comunista
assassinado sob torturas no DOI-CODI/RJ, a entregar os companheiros. Em
depoimento à Comissão da Verdade, Gino disse que ouvia o “pai ali perto
gemendo, (...) escutava, mas não podia fazer nada”.
O gaúcho Ivan Seixas foi preso aos 16 anos e torturado, enquanto ouvia os gritos do seu pai na sala ao lado.
O gaúcho Ivan Seixas foi preso aos 16 anos e torturado, enquanto ouvia os gritos do seu pai na sala ao lado.
Banimento
de crianças.
Crianças foram
presas com os pais, fichadas como subversivas e consideradas perigosas à
segurança nacional. Foram banidas e cresceram no exterior. Damaris Lucena, esposa
de Antonio Lucena, foi presa, torturada e banida do país juntamente com os
filhos pequenos.
(Para uma visão mais
detalhada dos diversos casos investigados, ver: INFÂNCIA ROUBADA: crianças atingidas
pela ditadura militar no Brasil).
Na Argentina o tratamento dado às crianças,
embora igualmente inaceitável, foi outro. Diferentemente dos militares
brasileiros, os argentinos viam as crianças como inocentes, que podiam ser
moldadas e educadas de acordo com as expectativas oficiais. Por isso, os
filhos(as) dos presos políticos eram entregues para militares ou simpatizantes
do regime para adoção (aproximadamente 500 crianças foram separadas dos pais
entre 1976 e 1983 na Argentina). Os militares brasileiros, pelo que se
depreende dos seus atos, entendiam que o comunismo estava no sangue das
crianças. Era uma doença transmitida por herança genética. Se na argentina as
mães grávidas eram tratadas com algum cuidado até o nascimento da criança, aqui
as mães eram torturadas com os filhos no ventre. Foi o que aconteceu com
Hecilda, uma das depoentes do livro, torturada grávida na presença do marido. Antes
do filho nascer, um militar teria dito a ela que “filho dessa raça não deve
nascer”. O sujeito, e o regime que o investia de tal poder, julgavam ter o direito
sobre a vida e a morte. Imbuídos de um peculiar messianismo de caserna, atávico
em alguns seguimentos das forças armadas desde a proclamação da república, os
heroicos militares praticavam uma intervenção saneadora no presente para salvar
o futuro do suposto perigo comunista.
A forma como as
crianças foram tratadas, sugere que os militares as viam como perigosas, potencialmente
criminosas, e pretendiam realmente cortar o mal pela raiz. Ou era isso, ou eles
eram assustadoramente sádicos e perversos! Não descartaria, em alguns casos, um
misto das duas coisas. Apostando na hipótese do perigo infantil, somos levados
a crer que os militares supunham ser o comunismo um problema congênito, e que a
intervenção na infância interromperia a cadeia da transmissão da genética
comunista. Lombrosianos tardios, os militares criminalizaram a infância,
mutilaram a inocência, e produziram um monumento, feito de violência e
covardia, em memória da ditadura.
É lamentável assistir,
com incômoda sensação de impotência, a ressureição de um passado obscuro e
violento, requintado de maneira charlatanesca e (re)apresentado como solução
messiânica para os problemas do país. Problemas, diga-se de passagem, em grande
parte fruto da desinformação e da imaginação conspiratória. Igualmente
lamentável é constatar que as chances de sensibilização dos sujeitos que querem
os militares de volta são quase nulas. São forças cegas e surdas, como
abstrações erráticas, que marcham pelas ruas do Brasil, tão seguras de si
próprias que não se abrem sequer ao diálogo. É impossível dialogar com
abstrações (Camus). Li na net alguns comentários referentes às matérias sobre o
livro “Infância Roubada” que são representativos e parecem traduzir
perfeitamente bem o universo mental desta parcela da população brasileira.
Alguns afirmam que tudo não passa de invenção da esquerda, e que a Comissão da
Verdade é revanchista e só investiga os militares. Outros dizem ter pena das
crianças que vivem nas ditaduras Cubana e Venezuelana, das quais o governo do
PT é cúmplice. Outros insinuam que estão
usando as crianças para atacar os militares e defender o governo Dilma. Os mais
exaltados dizem que os depoentes estão mentindo e pousando de vítimas para
conseguir uma aposentadoria do governo. Para a maioria é tudo mentira. De um
jeito ou de outro, os comentários tentam desqualificar e invalidar os
testemunhos e os trabalhos da Comissão da Verdade, vista por eles como um antro
de comunistas. Os argumentos são simplórios, as comparações são débeis, mas
eles estão aí, opinando, e expondo, em português sofrível, suas certezas
inabaláveis! Mas não é este o principal problema. Devemos estar atentos para o
uso político que certos grupos bastante articulados fazem destas manifestações fanáticas,
como se fez em 64, para avançar com teses antidemocráticas e justificar manobras
políticas oportunistas.
Mas o que mais preocupa,
como lamentou Albert Camus em 1946, é “a boa vontade de toda a gente. Todos
pensam que a verdade que possuem é a que convém à felicidade dos homens”. A
conjunção das boas vontades levou, no tempo de Camus, ao terror da segunda
guerra. A boa vontade dos militares e dos cidadãos de bem, que se diziam
defensores da família, da moral e dos bons costumes, e que queriam ver o Brasil
livre da ameaça comunista, a qualquer preço, arrastou o nosso país para uma
ditadura covarde que não poupou nem as crianças. Mas todos eram movidos pela boa
vontade. Todos queriam um Brasil melhor.
Para onde a soma das
boas vontades que explode hoje em verde e amarelo pelas ruas, com apelos
sinceros pelo retorno dos militares, vai nos conduzir? Escutem as crianças de
ontem. Elas carregam os segredos do futuro.
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