A
MPB HEROICA E O LINCHAMENTO SELETIVO: querem transformar Roberto Carlos no Elia
Kazan da ditadura brasileira.
A
ascensão política de um partido de esquerda e de governos de esquerda no
Brasil, cujos nomes mais importantes enfrentaram, em diferentes contextos, a ditadura
militar, estimulou o interesse por uma investigação critica do regime militar,
mas também abriu brechas para o oportunismo. As indenizações milionárias pagas
a Ziraldo e Jaguar pela Comissão de Anistia do Ministério
da Justiça como forma de reparar os prejuízos sofridos pela perseguição política
durante a ditadura foram escandalosas. Por outro lado, a divulgação de
documentos do período militar e o desejo de revisar o passado são as boas
novas. Mas é preciso tomar cuidado para não submeter a necessária investigação
do passado aos caprichos daqueles que veem nisso uma oportunidade para tirar
vantagens políticas.
Estão
circulando pelas redes sociais alguns documentos da ditadura militar que
supostamente confirmam a colaboração de artistas como Roberto Carlos com o
regime. Minha primeira reação foi de satisfação em relação à divulgação de nova
documentação. Cada novo documento tornado público expõe uma nova faceta do
período. Aqueles que desejam um país decente, democrático e em dia com sua
memória, imagino, querem ver aqueles anos sombrios passados a limpo. A segunda
reação foi de preocupação. Sabemos que documentos oficiais de um período como
este devem ser examinados com cautela. A cautela deve ser redobrada quando o
que está em jogo é a reputação alheia. A facilidade com que estas notícias se
espalham na internet é impressionante. Os julgamentos vão surgindo na mesma
velocidade. Vários blogs, sites e portais divulgaram os documentos referidos e
imediatamente os tomaram como expressão da verdade. Antes de emitir qualquer
sentença, favorável ou não aos artistas citados, devemos ter em mente que os
documentos em questão não são transparentes. São opacos, lacunares e expressam
os pontos de vista e as táticas dos militares. É preciso suspeitar dos
documentos e cruzá-los com outras fontes. Caetano Veloso, por exemplo, num
depoimento a Geneton Moraes Neto, disse que quando voltou ao Brasil para
visitar a família foi levado para um lugar secreto e pressionado a escrever uma
música ufanista sobre a transamazônica. Para pressioná-lo diziam que outros
artistas como Wilson Simonal já haviam confirmado participação. Não era
verdade. Caetano se recusou a colaborar. O depoimento nos ajuda a entender os
métodos empregados pelos militares para pressionar e induzir o meio artístico.
E se Caetano caísse na armadilha dos militares e saísse dali alardeando o
colaboracionismo de Simonal? Esse papel coube ao Pasquim.
Conhecemos
bem a versão heroica da MPB que resistiu a ditadura militar (A sigla MPB foi
criada em 1965, apostando na tradição que o samba carregava e na modernidade
trazida pela bossa nova). Durante a ditadura, na época da Anistia e no decorrer
da década de 1980, consolidou-se o que poderíamos chamar de “discurso da
resistência”, que construiu uma versão histórica legendária, e muito eficiente,
da oposição ao regime militar. Entre outras manifestações artísticas a música
recebeu destaque especial. Algumas canções se tornaram emblemáticas e passaram
a traduzir o ideal de engajamento político dos artistas. As canções mais lembradas
são: “Carcará” (1965), “Alegria, alegria” (1967), “Roda Viva” e
“Pra não dizer que não falei das flores” (1968). Chico Buarque e Geraldo Vandré foram
transformados em símbolos da resistência. Roberto Carlos, Simonal, Agnaldo
Timóteo, Clara Nunes, Wanderley Cardoso e Rosemary, foram associados à ditadura
e transformados nos Judas da MPB. Vandré nunca lidou bem com isso. Afastou-se
de tudo, esquivou-se do rotulo de compositor de canções de protesto que lhe impuseram
e rejeita categoricamente a condição de símbolo de uma época. A primeira e única
aparição de Vandré, em décadas, foi numa entrevista a Geneton Moraes Neto em
setembro de 2010. Quem esperava o Vandré idealizado pelo discurso da
resistência decepcionou-se. O homem foi absolutamente vago, dosava as palavras
com receio, talvez, de que elas se voltassem contra ele, vestia uma camisa com
o símbolo da aeronáutica, exibia um cartão da instituição e usava um boné verde
oliva. No meio da entrevista recitou versos de uma canção composta para exaltar
a aeronáutica, sugestivamente intitulada FABIANA. Visivelmente, o compositor
que se esforça para desfazer a imagem do passado, estava sob tutela da
instituição. A entrevista foi realizada no Clube da Aeronáutica no Rio de
Janeiro. Vandré era a desconstrução em pessoa do discurso da resistência. O
ideal do compositor engajado se desfez. FABIANA é o contraponto perfeito para
“Para não dizer que não falei das flores”.
Apesar
de certos exageros e idealizações, personalidades da MPB encontraram nas
canções um meio de protestar e fazer corajosa oposição ao regime. A história
destes artistas é bem conhecida e celebrada pelo discurso da resistência (A
imprensa liberal brasileira, por outros caminhos, também contribuiu para a
fixação do nome de alguns artistas como símbolos da luta contra a ditadura. A
revista Veja é o caso mais conhecido. Ver a matéria “Eles dizem ‘não’ mas todo mundo aplaude”, publicada na revista
em novembro de 1968. O texto começa assim: “Toda música é de protesto. Esta é a
tese de Geraldo Vandré, autor de "Caminhando". A matéria esta
disponível em versão digitalizada. Vale apena conferir). Havia, no entanto,
artistas que ou preferiram silenciar e não tomar partido, e artistas como
Wilson Simonal e Carlos Imperial, que desdenhavam dos engajados e adotavam
certo cinismo. A história destes artistas não é tão bem conhecida. Foi escrita,
em parte, por quem desprezava suas posturas. O caso de Simonal foi extremo. O
cantor trilhava um caminho que não agradava parte do meio artístico. Criticava
o intelectualismo e o elitismo crescentes da MPB (que agradava apenas aos
intelectuais a aos universitários, não ao “povo”), e apostava no lado mais
comercial da música. Junto com Carlos Imperial esteve à frente do movimento
conhecido como “pilantragem”, que ironizava o lado “intelectualóide” da MPB e investia
no lado mercadológico da música. A “pilantragem” era uma grande jogada de
marketing, mas a crítica não entendeu assim e repudiou ruidosamente o movimento.
Antes de virar o “dedo-duro da ditadura”, Simonal conquistou no meio artístico a
fama de arrogante e antipático. A fama de dedo-duro surgiu em 1971 por conta de
um episódio nebuloso de desvio de dinheiro pelo contador de sua empresa, a “Simonal
Comunicações”, que supostamente foi sequestrado por dois policiais amigos do
cantor e ligados ao DOPS. O caso, envolvendo depoimentos contraditórios e suspeitas
de falsificações, nunca foi suficientemente explicado, mas a fama de dedo-duro
e de homem ligado ao regime se espalhou. O pasquim comprou a briga e desferiu
pesados e insistentes golpes contra Simonal.
Era o começo do fim da carreira do cantor. (Recomendo a leitura do texto: “Simonal,
ditadura e memória: do cara que todo mundo queria ser ao bode expiatório”,
de Gustavo Alves Alonso Ferreira).
A
matriz discursiva da resistência tomou para a si a tarefa de celebrar os ícones
da MPB que ergueram seu canto contra a ditadura e de “entregar” aqueles
artistas que no seu entendimento colaboraram com os militares. Roberto Carlos e
Wilson Simonal têm sido os alvos preferências desta turma.
Os
profissionais da difamação de hoje querem fazer com Roberto Carlos o mesmo que
os seus ancestrais fizeram com Wilson Simonal? Estão fazendo um linchamento
moral do cantor baseado em informações bastante vagas extraídas de documentos
oficiais do Centro de Informações do Exército. Porque tanta pressa para julgar?
Seria Roberto um atalho para atingir a Rede Globo? Antes de lincharem Roberto
Carlos, lembrem-se da música que fez em homenagem ao Caetano Veloso, que estava
exilado em Londres (“Debaixo dos caracóis dos teus cabelos...”). A canção é bem
mais concreta do que as informações disponíveis nos documentos que circulam na
internet. Antes de julgar o sujeito, procurem saber mais sobre o seu suposto
envolvimento com a ditadura. Uma coisa é um documento oficial que aponta nomes
de artistas que na visão dos militares eram próximos do regime, coisa bem
diferente é uma efetiva colaboração destes artistas com a ditadura. Se estes
artistas eram ou não colaboradores, não saberia dizer ao certo. Li os
documentos e não consigo, com base no que está escrito, ligar categoricamente os
artistas ao regime. As informações são vagas e os documentos escorregadios.
Não
se deixem instrumentalizar, especialmente em tempos de “Comissões da Verdade”
(Não lembra 1984?). Viva a “Comissão da Verdade” – apesar do nome -, mas temos
que tomar cuidado com a euforia ideológica e a ânsia de julgar que a acompanha.
Pode-se por tudo a perder e, ao invés de investigar seria e sobriamente o
passado e esclarecer os crimes cometidos pela ditadura, corre-se o risco de
embaralhá-lo ainda mais.
Investiguem
uma notícia antes de replicá-la. Estamos lidando com a reputação alheia.
Dois
pontos chamam a minha atenção:
1. As
denúncias de colaboracionismo não vêm de hoje. Há três décadas que tentam
comprometer, sem sucesso, Roberto Carlos com a ditadura. O ar de novidade que a
notícia assume agora, já vem com cheiro de coisa velha. Nos anos 80 discuti
muito este assunto com meus amigos e colegas mais de esquerda. Eu gostava, e
gosto do Roberto, e alguns deles, baseados em boatos, o associavam a ditadura.
Lembro até de um programa de TV que simulava um julgamento. Era o programa
“Quem tem medo da verdade”, apresentado pelo Carlos Manga, exibido em 1968 na
TV Record. A ideia do programa era convidar celebridades para participar de um
julgamento simulado conduzido por personalidades do meio artístico (que tema
para uma pesquisa, meus colegas historiadores!). Num dos programas Roberto era
o réu e Sílvio Santos o seu defensor. Sílvio era hábil na defesa e insistia na
tecla de que o cantor não havia contaminado a juventude com músicas
subversivas. O vídeo é raro, mas pode ser visto no youtube. Roberto parecia
estar ali sem saber muito bem por que. Parecia anestesiado. Sílvio Santos não.
O apresentador era um ventríloquo do regime militar e desfiava arrogantemente o
rosário de jargões do vocabulário ultra direitista da época. Sem dúvida o
prestígio de Roberto Carlos estava sendo usado pelos militares. Mas nunca me
pareceu que ele se prestava consciente e decididamente para este fim. Pode até
ter sido um inocente útil, mas não um colaborador que sabia o que estava
fazendo e colocava sua arte a serviço da ditadura.
2. O
caráter seletivo das denúncias. Porque os críticos de plantão não postaram
comentários e fotinhos malandras com “dizeres espertos” quando surgiram as
denúncias de que Mino Carta e Paulo Henrique Amorin escreviam textos
apologéticos ao regime quando trabalhavam para a revista Veja? Porque hoje eles
são governistas? Novidade. Parece que as celebridades escolhidas para o
linchamento público são aquelas que de alguma maneira estão ligadas as ditas
forças conservadoras. Roberto Carlos é a atração de fim de ano da Globo. É isso
então? A ideia é atirar no padre para acertar a igreja? Eu até entendo as
razões para perseguirem o Simonal. Afinal ele debochava e desdenhava da MPB e
da esquerda. Roberto, ao contrário de Simonal, era na dele, não se metia nestes
assuntos.
Será
que querem transformar Roberto Carlos no Elia Kazan do Brasil? Mesmo no caso do
diretor de “A Streetcar Named Desire”, que entregou
alguns colegas “comunistas” para a Comissão de Assuntos Anti-americanos do
Congresso, as controvérsias são acaloradas. Em 1999, quando recebeu um oscar
pelo conjunto da obra, atores como Ed Harris, Holly Hunter e Nick Nolte recusaram-se
a se levantar e aplaudi-lo, e Sean Penn e Richard Dreyfuss declararam publicamente
que não concordavam com a homenagem. Martin Scorsese ficou do lado do velho
cineasta, o levou ao palco amparando-o com o braço e em 2010 dedicou-lhe um
documentário intitulado “A Letter to Elia”. Não pretendo ser o Scorsese de
Roberto Carlos. Apenas incomodo-me com o fato de que muita gente parece querer
ser, apressadamente, o Sean Penn do “rei”. É um macarthismo às avessas.
Roberto
e Simonal colaboraram com a ditadura? Não sei. E se colaboraram, colaboraram
como? Entregando colegas do meio artístico? Não acredito. O que eu sei é que os
documentos existentes não confirmam nada. Se um dia aparecer um documento
contundente e inquestionável, eu baixo a guarda. Enquanto isso não acontecer,
eu fico com a sensibilidade e demonstração de carinho da canção dedicada ao
irmão da Betânia. O depoimento de Caetano no DVD “Circuladô ao Vivo” sobre a
visita que recebeu de Roberto Carlos em Londres é um exemplo da solidariedade
de Roberto com colegas do meio artístico perseguidos pelo regime. Talvez
Roberto não fosse um cara politizado, talvez fosse um tanto inocente, mas daí a
colaborador da ditadura vai uma boa diferença. Sei que a noção de colaboração é
ampla e implica numa série de posturas, mas ainda assim é preciso ter cuidado.
Alguns
autores afirmam que a música de Roberto foi a trilha perfeita para a ditadura. O
moço bem comportado teria composto a música permitida daqueles anos. Isso já
implicaria numa modalidade de colaboração. Não vejo assim. Este tipo de
argumento amarra arbitrária e definitivamente um estilo musical a um contexto,
como se houvesse uma homologra direta entre a música e a sociedade. As relações
entre ambas são íntimas, mas ver a música como um retrato da realidade é
empobrecedor. Não se leva em conta a complexidade dos circuitos que ligam a
música ao mundo social, não se considera a linguagem musical nem os encontros
de estilos e tradições musicais que perpassam uma canção ou um movimento
musical. Decreta-se uma homologia simplista e mecânica entre a canção e o
contexto histórico (como se este existisse de maneira independente) e
constrói-se a imagem reducionista da jovem guarda como a trilha musical da
ditadura. Como este tipo de abordagem opera no registro simples do preto e
branco, ou do contra ou a favor, as canções que de alguma forma levantaram algum
tipo de questionamento à ditadura são classificadas como canções de protesto. É
igualmente simplista. Ver as canções de Chico Buarque por este prisma redutor é
deixar de fora os elementos – poéticos, musicais e estéticos – mais importantes
para articular historicamente sua arte. Chico estava interessado em política e
assinou várias canções que poderíamos, sem erro, definir como “de protesto”.
Mas isso não é tudo, e talvez não seja o dado mais importante.
Roberto
Carlos e o movimento jovem guarda, diferente de alguns nomes da MPB, não
estavam interessados em política. Era um direito deles. Mas uma parcela da
intelectualidade não pensa assim. O silêncio de Roberto Carlos expressaria bem
mais do que o simples desinteresse pala política. O raciocínio é o seguinte: o
Brasil sofria debaixo das botas dos militares e jovens eram caçados e torturados.
E Roberto, o que fazia? Gravava músicas ufanistas, canções de amor e hinos
religiosos como Jesus Cristo. Imperdoável. Um crítico da conduta do cantor
escreveu no portal Carta Maior em 2005 que a canção gospel “Jesus Cristo” era
para “corações ocos”, pois não tinha a “fúria dos negros norte-americanos”.
Deixa ver se eu entendi. Música gospel tem que ter fúria, tem que envolver
alguma forma de protesto, por que nos EUA era assim? É isso? Roberto deveria
ter composto um hino gospel de protesto? Entendi.
A
convergência da música de Roberto Carlos com as exigências e expectativas dos
governos militares só existe na hiper-hermenêutica de alguns iluminados que
consegue decifrar nas canções de amor e nas manifestações de fé do cantor um
código secreto que as vincula à ideologia do regime militar. Os acusadores
devem ter a disposição super lentes de aumento que permitem ver além do que
está escrito nos documentos. O uso de lentes hermenêuticas potentes como estas,
apontadas seletivamente para o passado, resultam em hiper-interpretações que
recriam uma realidade, ou uma hiper realidade, feita sob encomenda para sustentar
as batalhas do e pelo presente. O prefixo hiper aqui empregado, livremente
inspirado em Lipovetsky, aponta para a cultura do excesso, do que vai além. Neste
caso, além da realidade. Refiro-me a construção de uma realidade passada sob
medida para atender as demandas políticas do presente.
Na
versão heroica da história que a MPB construiu para si mesma, Roberto Carlos e
Simonal cumpriram e cumprem o papel de bodes expiatórios perfeitos. Simonal,
que zombava dos engajados, morreu, e tentaram destruir sua alma (Nada contra os
engajados, pelo contrário. Mas engajados que transformam suas lutas e crenças
numa forma de julgamento da conduta alheia, não). Roberto esta vivo, e sua
imagem está associada à Rede Globo. Conveniente, não? Os vestígios documentais
nos quais se baseiam os acusadores são frágeis e insubstanciais. Neste caso,
mesmo que eu desconfiasse do cantor, não o acusaria de colaboracionismo. Seria
leviano de minha parte. Entendam-me bem. Não estou me portando como advogado do
“rei”. “Esse cara não sou Eu”. Estou apenas manifestando indignação em relação
à facilidade com que se julga e condena alguém política e moralmente.
Por trás
das acusações do suposto colaboracionismo de Roberto Carlos está a interminável
luta pela memória do passado. Sabemos que a memória sobre a ditadura foi
construída por aqueles que foram derrotados em 1964 e em 1968. Supõe-se
então que Roberto Carlos estivesse do lado dos vencedores? Os
próprios militares dizem que mesmo sendo vitoriosos em 1964, foram derrotados
em relação à construção da memória histórica. Foram derrotados nas batalhas do
presente pela imposição de uma imagem a cerca do passado. A “Comissão da
Verdade” é mais um capítulo desta batalha. Daniel Aarão Reis, num estudo
importante sobre o tema, sugeriu que as esquerdas derrotadas politicamente
conseguiram impor uma memória vitimizadora da sociedade perante a ditadura
militar. Ao mesmo tempo impuseram uma memória heroica e redentora de si mesma.
Contudo,
essa versão vitimizadora e redentora não consegue explicar, por exemplo, o porquê
de a ditadura ter se sustentado por tanto tempo. No imediato pós 1964 as
esquerdas, empenhadas em registrar a memória daqueles tempos, construíram para
si, segundo Aarão, a ideia de que foram surpreendidas pelo golpe. Esqueceram,
no entanto, que o golpe também era uma possibilidade para as esquerdas, que não
tinham nenhum compromisso com a democracia. Direita e esquerda tinham a
expectativa do golpe no seu horizonte político. Ao mesmo tempo em que as
esquerdas consolidavam a ideia da resistência à ditadura, especialmente com a
emergência da luta armada, passavam a defender o retorno da democracia. Não que
tivessem convicções democráticas.
A memória
da resistência elegeu seus artistas e suas canções favoritas. Ao mesmo tempo que se consolidava uma narrativa heroica da MPB, espécie de trilha sonora da
resistência, construía-se uma versão em negativo dos artistas que não
comungavam dos mesmos valores ou que não estavam do mesmo lado (Não que
estivessem necessariamente do outro). Chamar Roberto Carlos de “o cantor da
ditadura” porque nadava a favor da corrente ou não remava contra a maré é
arbitrário. Fosse assim deveria ser chamado também de o cantor da era Sarney,
da era Collor, da era FHC e da era Lula. Em 1985 compôs “Verde e amarelo” em
homenagem a Nova República. Deveria por isso ser chamado de “o cantor da
redemocratização”? Para além dos apelidos desqualificadores, Roberto Carlos é
um cantor popular, escolhido pelo gosto popular. Sant'Anna foi
quem melhor o definiu: "Ele é o lado kitsch dos ouvintes mais
sofisticados e é o lado mais sofisticado dos ouvintes mais kitsch. É uma
espécie de herói popular".
Isso
talvez incomode muita gente que preferiria que o “povo” cultuasse figuras como
Lamarca e Marighella. Ademais, artistas populares nunca foram bem vistos pelos
guardiões do “bom gosto”.
Eu
fico do lado do Caetano, que chama Roberto Carlos de “rei”, sem se incomodar com
a patrulha estética e ideológica da MPB, e escreveu uma canção em homenagem a Marighella,
indiferente a recente onda de incriminação de figuras da esquerda que pegaram
em armas para enfrentar a ditadura.
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