HAIR,
a ópera psicodélica dirigida por Milos Forman que explodiu no final de década
de 1970 no cinema, não tem mais lugar nos dias de hoje. Parece fazer parte de
um mundo, ou de um tempo quase mítico, que não existe mais. O filme não
envelheceu. Foi o mundo que ficou mais careta, conservador e violento. HAIR é a
versão cinematográfica do musical homônimo escrito por James Rado e Gerome Ragni, que estreou na Broadway em 1968.
Além
da crítica desconcertante e criativa contra a guerra do Vietnã, que
literalmente colocou os militares para dançar, o filme norte americano faz uma sonora
apologia às drogas. A crítica da guerra continua atual. Afinal, o culto as armas,
a mentalidade belicista e os fantasmas das guerras desastrosas em que os EUA se
meteram rondam a casa branca desde o fim da segunda guerra. As guerras do
Iraque e do Afeganistão, e o apego quase religioso que boa parte dos
estadunidenses tem às armas, ainda fazem do musical HAIR um filme atual e
necessário. O elogio às drogas é que parece ter ficado para trás. Não faz mais
sentido. Abordá-las hoje de uma forma poética, como forma de autoconhecimento e
de atitude política, não combina com a brutalidade que cerca este universo. O
barato ficou perigoso. Se, por um lado, o século XX assistiu a expansão do
consumo de drogas e sua distribuição em escala mercantil, por outro, viu surgir
o proibicionismo oficial e internacional. O comércio de drogas virou um negócio
milionário e internacionalmente proibido.
Vamos
relembrar o enredo de HAIR. Claude Bukowski (John Savage), um jovem inocente do
interior dos EUA, no melhor estilo cowboy moderno, deixa sua casa para ir para
Nova York alistar-se no exército. Sonha em servir à Pátria na guerra contra o
Vietnã. De passagem por um Central Park transformado num palco psicodélico,
Bukowski se depara com um grupo de hippies que vive por ali, completamente
desapegado das instituições, do dinheiro e dos valores burgueses. O grupo
composto por quatro figuraças (Berger, Hud, Woof e Jeannie) leva uma vida
completamente diferente do mundo de onde o jovem cowboy veio. Os poucos dias
que passa junto ao grupo faz a vida do rapaz virar de pernas para o ar. As
experiências com maconha e LSD, e a descoberta de uma paixão instantânea por
uma jovem de uma rica família nova-iorquina chamada Sheila (Beverly D´Angelo),
transportam o aspirante a soldado para um universo até então desconhecido.
Depois
de alguns dias loucos, Bukowski parte para o exército. Vai para um campo de
treinamento esperar pelo dia do embarque. Inesperadamente, Sheila e o grupo
hippie aparecem no campo para visitá-lo. Numa sequência antológica Berger
(Treat Williams) raspa a farta cabeleira, entra na fortaleza militar e fica no
lugar de Bukowski, que vai ao encontro dos amigos e de Sheila. Fico por aqui. Não
vou estragar a surpresa para aqueles que ainda não assistiram.
A
narrativa foi construída em torno dos temas centrais da contracultura: o
pacifismo, o sexo descompromissado, o amor livre, as experiências religiosas e
místicas, o uso de alucinógenos, além da curtição. Tudo isso embalado ao som de
um rock de primeira linha (Tudo bem, eu sei que essa coisa que chamam de “rock”
define tudo e não define nada. Parafraseando Paul Veyne, se tudo é rock, logo o
rock não existe. O rock é um rótulo genérico e impreciso que abriga uma diversidade
musical tão grande que o melhor mesmo seria abrir mão do conceito e partir para
as especialidades e os subgêneros: rock and roll, progressivo,
hard rock, rockabilly, indie rock, heavy metal, glam rock, punk rock, etc ). Generalizações
à parte, a trilha sonora de HAIR é uma das melhores da história do cinema. As
belas canções e as letras apimentadas, que expressam as ideias e valores da
contracultura, conduzem a narrativa e confrontam a sociedade tecnocrática, conservadora
e castradora que apoiava a intervenção no Vietnã. Os hippies são o oposto do
mundo que os cerca. Vivem coletivamente, são solidários, vestem-se de maneira
alternativa às exigências da moda e inspiram-se na filosofia, na estética e nos
valores zen budistas, como contraponto às filosofias individualistas e
materialistas dominantes no ocidente. Contrariando o racismo e a violência
racial da época, HAIR celebra a comunhão étnica e proclama a delícia e a beleza
de ser negro e de ser branco (Jeannie esta grávida, mas não sabe se de Hud, o negro, ou de Woof, o branco. Mas para ela
tanto faz, os dois são lindos). O grupo dança o tempo todo. São lindas
coreografias, inspiradas no tai-chi-chuan, que jogam o corpo no ar com absoluta
liberdade, e contrastam com a rigidez da marcha militar e a sobriedade marcial
dos corpos alinhados e enfileirados no culto à ordem. Em HAIR o corpo fala, grita,
pira, goza, gargalha anarquicamente, se expressa sem censuras, debocha e testa
os seus limites. É uma ode ao corpo. Ao corpo livre das amarras da moda, das
fardas, das instituições e de outros corpos. Longe da ideia platônica do corpo
como prisão para a alma, em HAIR o corpo é o templo do prazer, da urgência do
aqui e do agora. Corpo e alma, como que num transe e numa transa mística,
apresentam-se em deliciosa harmonia e unidade. As sensações corpóreas, aguçadas
pelos psicotrópicos, são o modo de exprimir a alma e expandi-la. A expressão
corporal dionisíaca de HAIR é desafiadora. Contesta a ordem e choca o
conservadorismo. Os cabelos longos, despenteados e desarrumados, reverenciados
como símbolo da liberdade, da independência e do desprezo pelas convenções,
contrastavam com os cabelos curtos, em estilo militar, usados na época. James
Rado, um dos escritores do musical levado a Broadway em 1968, relembrou que
usar cabelos compridos era “uma forma
visível de consciência na expansão de seu consciente. Quanto maior era o
cabelo, mais expansiva era a mente. Cabelos longos eram algo chocante e era um
ato revolucionário deixá-los crescer. Era, realmente, como se fosse uma
bandeira.”
No
contexto em que HAIR estreava nos cinemas, 1979 para ser mais preciso,
articulava-se nos EUA, sobretudo na administração Nixon, uma política de
combate às drogas. Não foi uma coincidência. O uso de drogas combinado à
crítica dos valores e dos costumes presentes na cultura hippie criava uma
atmosfera política perigosamente contestatória. Numa das primeiras sequências
do filme Berger lê em voz alta a convocação para o alistamento militar: Quem alterar, fraudar, destruir
propositadamente, danificar propositadamente ou modificar de algum modo essa
convocação, pode ser multado em até 10.000 dólares ou ser preso por até 5 anos.
Após a leitura o grupo queima o documento e foge da polícia. A cena é emblemática.
Enquanto
HAIR fazia grande sucesso nos cinemas, o estado contra-atacava. No decorrer da
década de 1970, em resposta ao aumento do uso de drogas, tomou forma uma
política norte americana de repressão aos psicotrópicos. Em 1971 foi dado um
passo definitivo nesta direção com a ratificação do Convênio sobre substâncias
psicotrópicas, marcada, segundo especialistas, por uma série de confusões
semânticas, científicas, farmacêuticas e jurídicas a respeito de drogas
naturais e drogas sintéticas. Dois anos depois o aparato interno de repressão
às drogas foi fortalecido com a criação da Drug
Enforcement Agency Administration, que passou a acumular as funções de repressão
antidrogas dentro das suas fronteiras e no exterior. Internamente o combate às
drogas seguiu a risca a crença liberal nas leis da oferta e da procura.
Acreditava-se que a redução da circulação do produto por meio de intensa
repressão faria baixar a oferta global e elevaria os custos para o consumidor. Os
preços impraticáveis estimulariam os usuários a reduzir ou abandonar o consumo.
Mas a “realidade” é escorregadia, e sempre dribla a teoria. A camisa de força
liberal não contava com uma variável. Esqueciam os estrategistas que o custo de
produção de um produto incide significativamente no seu preço final.
Fortalecidos após a segunda guerra
mundial os EUA passaram a ter um papel decisivo e expansionista no sistema
internacional, aumentando o seu ativismo no mundo. A conjuntura favorável
permitiu que o modelo norte americano de combate às drogas assumisse contornos
universais e se transformasse em verdadeira legislação internacional. Por meio dos organismos internacionais este
modelo e seus procedimentos impuseram-se no ocidente. No início da década de
1980, quando HAIR explodia nos cinemas na América Latina, a plataforma
conservadora do governo Reagan, conduzida por um unilateralismo de viés messiânico,
retomava o puritanismo moralista e lançava os EUA numa cruzada implacável
contra as drogas. A política antidrogas subordinava-se então às diretrizes da
política externa americana e o “problema das drogas”, criado por eles mesmos,
passava a ser visto não como uma questão de saúde pública, mas como desajuste
social. O que estava em jogo agora, segundo o discurso oficial, era a segurança
nacional. Os estrategistas na área relacionaram o problema a fatores externos,
e apontaram para a América Latina, que abrigava plantações de coca e maconha.
Países como a Colômbia e a Bolívia tornaram-se alvo da política antidrogas da
casa branca. A declaração do general norte americano Paul Gorman é a melhor
expressão do perigo que as drogas oriundas do sul do continente representavam,
segundo o discurso dominante, para os EUA:
O povo norte-americano deve
compreender muito bem, como o fez no passado, que nossa segurança e a de nossos
filhos está ameaçada pelos complôs latinos da droga que, tragicamente, tem mais
êxito subversivo nos EUA do que tudo o que vem de Moscou.
A
América Latina e a figura do narcotraficante convertem-se no X da questão do
“problema das drogas”. Não custa lembrar que na era Reagan a pressão sobre os
países latino americanos, com o aumento dos juros das dividas externas, foi
massacrante. Reagan, explorando e reavivando a ideologia
anticomunista, procurava associar o tráfico de drogas proveniente da América
Latina a grupos comunistas e terroristas que atuavam na região e que conspiravam
contra a saúde, a higiene, a moral, os valores, a segurança e o poderio
norte-americano (Recomendo a leitura do artigo de Marcelo Santos intitulado “A
política dos Estados Unidos de combate ao narcotráfico e o Plano Colômbia”).
Por meio de eficiente propaganda, voltada para a população americana, e de insistentes
discursos diplomáticos, que justificavam uma ação mais efetiva na América
Latina, os Estados Unidos entraram de sola na luta contra o que então se
denominava “narcoterrorismo” (Neologismo que denuncia uma cooperação e uma
aliança estratégica entre o narcotráfico e os grupos armados de esquerda,
identificados por Washington como terroristas). “Em 1982, foi aprovada a Defense
Autorization Act, que permitiu o exército norte-americano participar da
luta contra as drogas. Em abril de 1986, o governo Reagan incorporou à doutrina
de segurança nacional a National Security Decision Directive (NSDD), que
estabelecia a aliança entre terrorismo de esquerda e narcotráfico como uma
ameaça letal para a segurança nacional dos EUA.” (Marcelo Santos). Neste
contexto discursivo os plantadores de coca, os grupos e governos de esquerda sul
americanos passavam a fazer parte de uma complexa e perigosa conspiração
narcomarxista que pretendia atacar a integridade moral e atingir o poder dos
Estados Unidos. “Com a reformulação da doutrina de segurança nacional, a
administração Reagan aumentou a pressão sobre determinados governos
latino-americanos no sentido de erradicar os plantios e reprimir o tráfico de
drogas. Além de ameaças do uso da força, pressões políticas, econômicas e
diplomáticas e o treinamento e apoio logístico de forças policiais e militares
latino-americanas antidrogas, o governo dos EUA estabeleceu a Certificação.
Através desse mecanismo, o Congresso norte americano passou a monitorar e
avaliar os esforços antinarcóticos de cada um dos países latino-americanos,
suspendendo a assistência econômica, impondo sanções comerciais e vetando
empréstimos de organismos internacionais de crédito aos países que não estivessem
de acordo com as suas diretrizes.” (Marcelo Santos).
Desnecessário
dizer que a política continental de combate às drogas transformou-se num
poderoso instrumento de pressão dos EUA sobre os países sul americanos. Em
relação à figura do narcotraficante, que desponta no cenário das Américas da
década de 1980, parece razoável supor que tenha sido, em parte, uma invenção
direta da política de repressão às drogas do governo norte americano. O
impressionante aumento do preço da cocaína nas ruas das cidades americanas, que
multiplicou por mil, parece ter chamado a atenção dos traficantes. O tiro saiu
pela culatra. A proibição estimulou o tráfico em grande escala. O mercado
consumidor interno americano aguçou a ambição dos traficantes da América do Sul.
O estatuto do proibicionismo, ao mesmo tempo em que separou as drogas lícitas e
legais das ilícitas, criou um mecanismo de hipertrofia dos lucros (ver “As necessidades humanas e o proibicionismo
das drogas no século XX”, de Henrique Carneiro). Fenômeno semelhante já
havia acontecido nos EUA nas décadas de 1920 e 1930 com a Lei Seca. O comércio
proibido de bebidas esta na origem de muitas das grandes fortunas norte
americanas. No final do século XX o fenômeno volta a se repetir, desta vez com
as drogas ilícitas, e em escala global. Existe, portanto, um nexo causal entre
proibição e aumento dos lucros. A violência vem junta, como fenômeno associado.
A tensão e o jogo de interesses entre as diretrizes de Washington e o narcotráfico foram expostos em 1983 quando a Suprema Corte dos EUA, afinada com a política antidrogas, aprovou o pedido de extradição de Carlos Lehder, um dos primeiros narcotraficantes colombianos. Lehder foi um dos fundadores do cartel de Medelín e transportava cocaína legalmente para os Estados Unidos das Bahamas. Estava refugiado nos Llanos Orientales, de onde fez uma declaração de guerra aos EUA. Afirmou que a cocaína era a bomba atômica da América Latina e exortou os rebeldes colombianos a formarem um exército, patrocinado pelo dinheiro do tráfico, para lutar contra os americanos. E disse mais:
A tensão e o jogo de interesses entre as diretrizes de Washington e o narcotráfico foram expostos em 1983 quando a Suprema Corte dos EUA, afinada com a política antidrogas, aprovou o pedido de extradição de Carlos Lehder, um dos primeiros narcotraficantes colombianos. Lehder foi um dos fundadores do cartel de Medelín e transportava cocaína legalmente para os Estados Unidos das Bahamas. Estava refugiado nos Llanos Orientales, de onde fez uma declaração de guerra aos EUA. Afirmou que a cocaína era a bomba atômica da América Latina e exortou os rebeldes colombianos a formarem um exército, patrocinado pelo dinheiro do tráfico, para lutar contra os americanos. E disse mais:
Em nossa luta contra o imperialismo norte-americano e a oligarquia
colombiana, o fim justifica os meios. Se a coca se encontra na América Latina
para ajudar-nos a acelerar nossa revolução, bem-vinda seja. Se os Ianques levam
nossos melhores produtos e também querem coca, que paguem o preço que a América
Latina exige. Nós necessitamos de dólares para nos modernizarmos. E agora que
somos quinze milhões de latino-americanos nos EUA, o poder latino do
imperialismo é insuplantável..... E vamos reforça-lo.
Nosso objetivo é anti-imperialista e
anti-oligárquico. A revolução da América Latina poderia fazer-se graças a
cocaína, porque acredito que a cocaína é a bomba atômica da América Latina.
Lehder
era um traficante politizado e bem informado. Fazia da coca um instrumento da
revolução social e identificava o imperialismo e as oligarquias conservadoras
sul americanas como os inimigos do desenvolvimento na região. Soube perceber
que se articulasse um discurso anti-imperialista poderia conquistar as
simpatias dos grupos de guerrilha de esquerda que pipocavam na América do Sul.
Vem daí as ligações, ainda nebulosas, entre guerrilha e narcotráfico na
Colômbia e no Perú. As FARCS e o grupo maoísta Sendero Luminoso, ao que tudo
indica, foram sensíveis a apelos como o de Carlos Lehder. Precisamos de boas
pesquisas sobre as relações entre o narcotráfico e os grupos guerrilheiros sul
americanos. Existe alguma coisa disponível, mas estamos longe de um bom
entendimento sobre este assunto.
De
lá para cá muita coisa mudou, e mudou muito, no mundo das drogas. O surgimento
da figura do traficante, que pouco a pouco foi se transformando num bandido
temido, armado até os dentes, e disposto a tudo para manter seu império, mudou completamente
o panorama. Mudança que foi da ligeira politização dos traficantes à bandidagem
inescrupulosa. A repressão ao tráfico e o fortalecimento dos traficantes que
passaram a construir impérios criminosos, protegidos com fuzis automáticos, afastou
toda poesia, romantismo e o conteúdo político-contestatório que envolvia o uso
de drogas. Havia um sentido maior por trás de toda aquela “loucura” e do uso
abusivo dos psicotrópicos. HAIR representou nas telas a poética das drogas.
Hoje o filme soa anacrônico. Imaginem um
homem distribuindo LSD como se fosse hóstia? No filme, a cena remete as
relações entre alucinógenos e espiritualidade. Hoje não faria mais sentido. A
simples referência ao imaginário religioso soaria ofensiva e sem propósito. As
guerras entre traficantes e entre traficantes e polícia sepultou o lúdico e o
poético. No Brasil, por exemplo, elevou a violência a um nível antes
inimaginável. Nas três últimas décadas a violência associada ao tráfico das
drogas tomou conta de cidades e de comunidades inteiras no Brasil e na América
Latina. O mundo das drogas carrega a
marca da brutalidade, da selvageria, que em nada lembra a psicodelia libertária
das décadas de 1960 e 1970. Isso nada tem a ver com os consumidores que, em
geral, são contra a violência. O tráfico de drogas articulou uma indústria do
crime que corre na direção oposta ao barato dos usuários. Mas infelizmente os
dois caminhos se cruzam. O que um garoto que fuma o seu baseado no quarto para
ouvir sua banda predileta tem a ver com a violência associada às drogas?
Aparentemente nada. Mas se pensarmos no caminho que a droga faz para chegar até
ele, descortinaremos o triste e amargo vínculo entre o traficante barra pesada
e o consumidor pacífico. No percurso que possibilita a chegada das drogas aos
usuários, as tragédias vão se sucedendo em escala crescente e assustadora. É
forçoso reconhecer que o que coloca uma arma na mão do traficante é o dinheiro
que o usuário paga para ter o seu barato garantido. Lamento. O barato ficou
perigoso. Perdeu todo apelo libertário. Era uma vez um grupo de hippies que vagava
livremente pelo Central Park cantando e celebrando as drogas e o amor... A
realidade atual nos mostra um garoto portando um fuzil e protegendo com a
fidelidade de um cão a boca de fumo do seu patrão. E ele vai atirar sem
pestanejar e não vai sentir remoro se a bala sem direção atingir uma garota no
pátio de uma escola.
Não
estou desenvolvendo um argumento moralista, acusatório ou condenatório, em
relação ao uso de drogas. Não mesmo. Cada um com o seu prazer. Mas, lamentavelmente,
não podemos mais dissociar o prazer do usuário da violência que a repressão ao
tráfico provoca. Não foi o usuário o causador da violência. Foi a repressão ao
tráfico e a resposta dos traficantes que a deflagrou. O usuário ficou numa
condição delicada em meio a uma guerra entre traficantes e polícia. O modelo
norte americano de combate às drogas faliu. A violência aumentou. Insistir no
que deu errado não perece o melhor caminho. Será que a descriminalização do
usuário, por mais paradoxal que seja, proposta, por exemplo, por Fernando
Henrique Cardoso, aponta para alguma alternativa? Creio que sim. Distingue
juridicamente usuário de traficante e dá um passo importante na direção de um
debate mais amplo e necessário sobre o tema.
A
alegoria zen e libertária da era de aquário embalada pelos psicotrópicos morreu.
HAIR é um documento formidável sobre uma época, de paz e amor, ainda não
patrolada pelo crime organizado e pela repressão estatal-policial às drogas
ilícitas. O que temos agora é a escalada assustadora e intimidadora da
violência. Mais do que simplesmente garantir a defesa do território, o fuzil é
hoje o símbolo que melhor define o pesado mundo das drogas.
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