HANNAH ARENDT EM CUBA.
“Na parede do fundo fora pregado um cartaz colorido,
grande demais para exibição interna. Representava apenas uma cara enorme de
mais de um metro de largura: o rosto de um homem de uns quarenta e cinco anos, com
espesso bigode preto e traços rústicos mas atraentes”.
Esta é a imagem com a qual Winston Smith se deparou
quando adentrou o saguão da Mansão Vitória para fugir do vento que castigava a
tarde de abril. Estamos apenas no segundo parágrafo de 1984. Os cartazes
espalhados pela cidade, como que a vigiar a vida e o vai e vem dos cidadãos,
acompanharão Winston ao longo de toda a narrativa de Orwell. Winston era
funcionário do Ministério da Verdade e sua função era falsificar documentos
públicos para facilitar a propaganda do governo.
“(...) salvo nos cartazes pregados em toda parte. O
bigodudo olhava de cada canto. Havia um cartaz na casa defronte. O GRANDE IRMÃO
ZELA POR TI, dizia o letreiro, e os olhos escuros procuram os de Winston. Ao
nível da rua outro cartaz rasgado num canto, drapejava ao vento, ora cobrindo
ora descobrindo a palavra INGSOC (socialismo inglês).”
Não havia como fugir dos cartazes e do olhar
paternal e autoritário do BIG BROTHER. Eles estavam por toda parte, nos
prédios, nas ruas, como que a dizer o caminho a ser seguido.
Cuba
é o país dos cartazes e dos outdoors. A presença das placas modulares nos
espaços públicos é onipresente e massacrante. Elas estão por toda parte a
exibir a propaganda oficial do governo e a martelar na cabeça dos cubanos o blá
blá blá ideológico da revolução. Os outdoors contam a história da revolução e
relembram, a cada esquina, os feitos heroicos dos salvadores da pátria. Imagino
o efeito disso sobre quem nasce, cresce e envelhece sob esta forma de
doutrinação política. Pode levar ao fanatismo (os autômatos), a indignação (os
dissidentes) ou a total indiferença (Creio que muita gente já nem vê mais os
outdoors. De tão presentes tornaram-se invisíveis).
Não
vamos, por favor, comparar a propaganda cubana com a publicidade, igualmente
massacrante, com a qual convivemos. São coisas diferentes, embora a propaganda
dos regimes totalitários tenha se inspirado, nas suas origens, na publicidade
norte americana. Adolf Hitler reconheceu isso no seu livro famoso. Hannah
Arendt confirmou. Mas não vamos justificar uma coisa com outra. A publicidade
é, em certo sentido, exagerada, mas nós temos escolhas, opções. Podemos
inclusive denunciar (No Brasil é só entrar em contato com o CONAR). A
propaganda totalitária não admite alternativas, muito menos críticas. Ela
martela uma verdade única. É a pedagogia “revolucionária”, no caso dos cartazes
e outdoors, entrando pelos olhos.
Mas
qual a razão de uma propaganda insistente e onipresente, que lembra
diuturnamente aos cubanos a importância da revolução, as artimanhas e a maldade
do inimigo e a necessidade de manter a coesão social? Hannah Arendt nos ajuda a
entender: “Por existirem em um mundo que não é totalitário, os movimentos
totalitários são forçados a recorrer a propaganda. Mas essa propaganda é sempre
dirigida a um público de fora, sejam as camadas não-totalitárias da população
do próprio país, sejam os países não-totalitários do exterior. (...) Em outras
palavras a propaganda é um instrumento do totalitarismo, possivelmente o mais
importante, para enfrentar o mundo não-totalitário.”
Cuba
não é um regime totalitário como foram o stalinismo e o nazismo. O terror,
elemento central na definição do totalitarismo, não está presente em Cuba. É
certo que ele foi empregado nos primeiros anos da revolução, com o paredón. Hoje não poderíamos falar em
terror, mas numa guerra psicológica, numa pressão sobre os indivíduos por meio
de um estado provedor, policial e vigilante. Entretanto, alguns elementos do
totalitarismo são visíveis. Cuba é uma sociedade relativamente fechada,
governada pelo mesmo grupo há cinquenta anos, que controla o fluxo e o contato
com o exterior, que exerce controle sobre os meios de comunicação e a
informação, que não admite oposição política e mantém o “povo” sob um regime
intensivo de educação política por meio da propaganda oficial. Embora existam
eleições e a divisão dos poderes, as instituições são decorativas e ficam à margem do poder de fato. Uma sociedade com estas características (é assim que
vejo Cuba) é uma sociedade que, com o devido cuidado, pode ser descrita como
totalitária. Os traços mais evidentes do totalitarismo, insisto, estão
relacionados justamente a forma e aos temas da propaganda oficial, cuja
finalidade é exaltar a figura do líder e engrandecer a obra da revolução.
Hannah
Arendt nos ensina que a finalidade da propaganda política é conquistar, dominar
e conduzir as “massas”. Claro que precisamos sempre tomar cuidado com estes
conceitos, sobretudo se levarmos em consideração o momento em que foram
criados. Os conceitos devem ser relativizados, sobretudo a noção de “massa”,
usada aqui não para definir uma coletividade, mas para pensar a perspectiva do
estado e suas ambições totalitárias. Não vamos jogar as categorias usadas por
Hannah sobre Cuba e achar que está tudo resolvido. Não. Hannah é uma
companheira de viagem. Observar Cuba com as intuições da filósofa é um livre
exercício interpretativo.
Por
meio da propaganda cria-se um mundo a parte, ideal, com sua própria lógica e
coerência, que se confronta com o mundo externo. Em comparação com o resto do
mundo a propaganda cubana destaca as vantagens de se viver neste paraíso social
criado pela revolução.
Os
temas recorrentes que destacaria na propaganda cubana são:
Culto à personalidade:
Fidel é a alma da propaganda cubana. As referências diretas e indiretas ao
chefe dominam a paisagem oficial. Fidel é o líder, o caminho, a verdade, é o
espírito invencível da revolução. Sua figura nos cartazes e outdoors impõe-se
aos cubanos como o guia infalível que conduz seu povo no caminho da vitória.
O exemplo do Che:
Che é o garoto propaganda de Cuba. Ele encarna o exemplo de coragem e lealdade
aos princípios, que se espera dos cubanos. Afinal, Che morreu pela causa. É o
ideal do revolucionário que deve ser cultivado e imitado. É uma espécie de santo
protetor do regime.
O Bloqueio americano:
As menções ao bloqueio estão por toda parte. Cuba só não é melhor do que está
devido ao famigerado bloqueio. As carências e as deficiências do país são
atribuídas a ele. É o perfeito bode expiatório do regime. A insistência da
propaganda anti-bloqueio lembra o tempo todo aos cubanos do inimigo cruel que
ronda a ilha a espera de uma brecha para destruir a obra da revolução.
Os feitos da revolução:
Graças à revolução os cubanos vivem num país sem injustiças sociais, sem
miséria e sem analfabetismo (mazelas do mundo capitalista).
Winston
sentiria certa familiaridade se percorresse as ruas de Havana.
De
acordo com os estudiosos da propaganda em Cuba, a técnica de comunicação com as
“massas” é controlada pelo partido, e visa a edificação do socialismo e a
educação do novo homem. Além disso, procura despertar nos cubanos o orgulho
pela singularidade do país e das derrotas que impôs ao imperialismo.
O
pensamento cubano sobre publicidade e propaganda, embora busque um espaço de
reflexão, segue a linha ditada pelo regime. Mirta Muñiz, o grande nome da área
em Cuba, escreveu em seu livro “La Publicidad en Cuba: mito y realidad” que a
propaganda em seu país deve ser analisada a luz do marxismo-leninismo e
observando as condições concretas do sistema social cubano. Esta é a armadura
teórica inexpugnável que envolve e dita o conteúdo da propaganda. Mirta já era
da área da publicidade antes de 1959. Depois da revolução aderiu ao novo
regime. Nos anos 50 trabalhava para a agência internacional McCann-Erickson e
fez cursos em Nova York. Como ela mesma diz: “aprendimos de la técnica de los
Estados Unidos, pero producíamos cosas muy particulares cubanas”.
O
caso de Mirta espelha, de alguma maneira, a trajetória da publicidade e da
propaganda em Cuba antes e depois da revolução. Deixemos que ela nos conte:
“En
lo que se refiere a la publicidad, su desenvolvimiento en Cuba no ha sido fácil
tras el triunfo revolucionario de enero de 1959. Cuando en los años sesenta
hubo necesidad de intervenir las agencias de publicidad (yo trabajaba en la
transnacional publicitaria McCann-Erickson, relacionada con anuncios como los
de la Coca Cola), los escasos renglones de productos y servicios con que
contábamos no permitían satisfacer las crecientes demandas de la población.
Todo lo que se producía, se consumía. No existía excedente alguno. Por tanto,
la publicidad realmente no tenía razón de ser; al igual que tampoco existía
mucho espacio para ella.”
Com
o “triunfo” da revolução a publicidade foi desaparecendo e, na razão inversa, a
propaganda ideológica foi assumindo um papel cada vez mais importante. Mirta
justifica isto e aponta qual é, na sua percepção, a finalidade da propaganda:
“A
mi entender la propaganda tiene dos grandes objetivos: uno, doctrinario; y
otro, político. Para cumplirlos, habría que agruparlos en tres grandes
direcciones. Una, la estabilidad política, o lo que es igual: la comunicación
en función de la estabilidad política para cumplir un amplio espectro en la
vida del país. La otra dirección es el desarrollo económico y social. En una
sociedad como la nuestra, cuyo objetivo fundamental es el desarrollo en
general, hemos utilizado la comunicación de modo que ella pueda contribuir a
que los avances en todos los órdenes sean más rápidos y abarcadores en
cualquier rama o sector. Y como último aspecto está la solidaridad. En Cuba
constituye una vertiente de la propaganda, que antes del triunfo de la
Revolución, era inexistente. Nació durante la década del sesenta del siglo
pasado; y a ella se sumaron no sólo políticos, sino también historiadores,
periodistas, diseñadores, fotógrafos.”
A
publicitária e propagandista é cuidadosa com as palavras. Será que leu Hannah
Arendt? Lendo ou não, ela embarcou na revolução, vestiu a camisa do regime, mas
busca uma margem de autonomia para pensar a publicidade para além das
exigências do socialismo e diferenciar a publicidade da propaganda
revolucionária (Tema do livro que está escrevendo: “Acciones y contradicciones de un proceso. Propaganda y
publicidad en Cuba”. Não sei se já publicou). Tarefa difícil.
De
um modo geral, a reflexão sobre a propaganda em Cuba é doutrinária e procura
diferenciar a “propaganda revolucionária” – que tem a verdade como princípio
fundamental em função de um homem harmônico e integral - da “propaganda
imperialista” – que é sinônimo de mentira e manipulação - conforme podemos ler
em diversos textos de autores cubanos. A propaganda cubana é revolucionária
porque tem como objetivo levar às “massas” as novas ideias e uma nova maneira
de pensar, com vistas à construção do socialismo. E também porque combate a
ideologia do inimigo em todas as suas manifestações. (Ver “La propaganda
política. Surgimiento y desarollo em Cuba”, de Miguel Guzmán Rojas). Bem,
Stalin, que tinha seu retrato pregado em toda parte, inclusive em livros de
receita de bolo, também considerava a propaganda soviética revolucionária. Eu
fico com Hannah Arendt. Sempre que leio suas considerações sobre a propaganda
totalitária imediatamente penso em Cuba.
Se
um dia for a Cuba, convide Hannah para ir junto. Andar pelas ruas e pelas
estradas é uma aula de propaganda ideológica. Na companhia de Hannah, então,
torna-se um fascinante exercício de interpretação da relação do regime com o
“povo”. Da relação do líder que acredita interpretar os desejos e as
necessidades de seu “povo” com o “povo” que vê a imagem do seu líder obsessivamente
pregada diante de seus olhos. Fidel acredita que é um país. A propaganda torna
isso verdade.
A relação com o livro 1985 encaixou bem. Arendt é um bom farol. Lembro do nosso grupo de estudo, quando analisamos o capítulo do livro de Hitler, "A propaganda de Guerra".
ResponderExcluirBons tempos, Isa.
ResponderExcluirAlou Paulo, há um ano estive em Cuba e sou testemunho dessa propaganda, que se repete nas livrarias e, ainda que sutilmente, no cinema. Mas, quem puder, não deixe de visitar esse país maravilhoso. Abraço!
ResponderExcluirFala, Ricardo.
ExcluirÉ isso mesmo. Uma coisa é o regime e a propaganda. Outra coisa é o país, a cultura e o povo cubano.
Abraço.