DEMONIZADORES QUE ACUSAM DEMONIZADORES: haja América
para tantos demônios.
Algumas
palavras, ou conceitos, que já existiam, (re)aparecem em determinados contextos
e adquirem status de chave mestra. Demonização é o conceito do momento. Demoniza-se
tudo. E todos, vítimas e demonizadores, acusam a demonização. No campo da
política a noção de demonização conquistou carta de cidadania e atende a diferentes
demandas. Direita e esquerda incorporaram o conceito aos seus vocabulários e praticam
a demonização com a destreza dos velhos inquisidores, e a denunciam com a mesma
habilidade. Demonizar, no léxico político contemporâneo, é sempre a atitude do
outro.
Demonização
é uma expressão derivada de um campo do conhecimento conhecido como
demonologia. As origens da demonologia remontam a Santo Agostinho, que deu
forma concreta ao demônio imaterial do velho testamento. Ao longo da idade
média a demonologia foi se desenvolvendo e sistematizando um conjunto de
saberes com a produção de obras importantes como o “Fornicarium”, de Nider, e o
“Malues Maleficarum”, de Sprenger e Kramer. No século XVI o conhecimento sobre
o diabo alcançou o requinte com as obras “Démonomanie”, de Jean Bodin, e “Daemonologie”,
de Jaime VI Stuart (ver o livro Inferno Atlântico, de Laura de Mello e Souza). Todo
este repertório de crenças e tratados demonológicos atravessou o oceano com os conquistadores,
principalmente com as ordens religiosas, e desempenhou um papel central na
conquista do Novo Mundo. A demonologia, portanto, chegou cedo à América, e logo
fez carreira. Encontrou aqui um terreno fértil para se desenvolver e deu frutos
locais bastante interessantes (Vou tratar do tema num outro texto).
O
conceito, nos últimos anos, deixou de transitar no universo restrito dos
especialistas e alcançou novos horizontes semânticos. A demonologia propriamente
dita, como campo de conhecimento, tornou-se assunto de um pequeno grupo de especialistas.
A demonização, filha dileta da demonologia, ao contrário, escapou do círculo
dos iniciados, conquistou corações e mentes, e tornou-se prática corrente.
Poderíamos dizer que demonizar é atribuir a alguém ou a algo qualidades e
intenções perversas, malignas e diabólicas, sem que isso necessariamente diga
respeito ao diabo. É o ato ou o efeito de associar algo ou alguém a um suposto
mal.
Vamos
ao ponto?
A
ocorrência mais recente de demonização, ou a denúncia dela, e logo popularizada nas redes sociais, foi no dia 6 de janeiro de 2013. Em sua coluna no The Clinic
On Line o ensaísta uruguaio Eduardo Galeano publicou um pequeno texto intitulado
“La demonización de Chávez”. Reproduzo abaixo:
“Hugo Chávez es un
demonio. ¿Por qué? Porque alfabetizó a 2 millones de venezolanos que no sabían
leer ni escribir, aunque vivían en un país que tiene la riqueza natural más
importante del mundo, que es el petróleo.
Yo viví en ese
país algunos años y conocí muy bien lo que era. La llaman la “Venezuela
Saudita” por el petróleo. Tenían 2 millones de niños que no podían ir a las
escuelas porque no tenían documentos. Ahí llegó un gobierno, ese gobierno
diabólico, demoníaco, que hace cosas elementales, como decir “Los niños deben
ser aceptados en las escuelas con o sin documentos”. Y ahí se cayó el mundo:
eso es una prueba de que Chávez es un malvado malvadísimo.
Ya que tiene esa
riqueza, y gracias a que por la guerra de Iraq el petróleo se cotiza muy alto,
él quiere aprovechar eso con fines solidarios. Quiere ayudar a los países
suramericanos, principalmente Cuba. Cuba manda médicos, él paga con petróleo.
Pero esos médicos también fueron fuente de escándalos. Están diciendo que los
médicos venezolanos estaban furiosos por la presencia de esos intrusos
trabajando en esos barrios pobres.
En la época en que
yo vivía allá como corresponsal de Prensa Latina, nunca vi un médico. Ahora sí
hay médicos. La presencia de los médicos cubanos es otra evidencia de que
Chávez está en la Tierra de visita, porque pertenece al infierno. Entonces,
cuando se lee las noticias, se debe traducir todo. El demonismo tiene ese
origen, para justificar la máquina diabólica de la muerte.”
Galeano
sabe usar as palavras. É dono de um estilo inconfundível e cativante. Denuncia a satanização de Chávez pela mídia oposicionista e, ao mesmo tempo, proclama
o humanismo e a admirável obra social de Chávez na Venezuela. O escritor persegue
neste pequeno texto o mesmo estilo irônico que o consagrou em “As veias abertas
da América Latina”.
É
evidente que ninguém demonizaria Chávez por ele ter erradicado o analfabetismo
da Venezuela (e erradicou?). A questão não é essa. Galeano manobra com as
palavras porque na verdade o que ele quer é revelar a maldade que se insinua
nas críticas à Chávez. Demônios são os seus opositores. É isso o que o texto nos
diz nas entrelinhas. Galeano pratica a demonização as avessas. Quem seria tão
malvado ao ponto de criticar um governo que coloca as crianças nas escolas e
traz médicos para o povo?
Galeano
já havia abordado o tema da demonização do líder bolivariano numa entrevista concedida
ao El País em setembro de 2010. Reproduzo abaixo o trecho que interessa.
Pergunta. El presidente venezolano, Hugo Chávez, es uno de los
que andan enzarzados con la prensa ¿Tenemos veredicto con él?
Resposta. Hay una demonización de Chávez. Antes Cuba era la
mala de la película, ahora ya no tanto. Pero siempre hay algún malo. Sin malo,
la película no se puede hacer. Y si no hay gente peligrosa, ¿qué hacemos con
los gastos militares? El mundo tiene que defenderse. El mundo tiene una
economía de guerra funcionando y necesita enemigos. Si no existen los fabrica.
No siempre los diablos son diablos y los ángeles, ángeles. Es un escándalo que
hoy, cada minuto, se dediquen tres millones de dólares en gastos militares,
nombre artístico de los gastos criminales. Y eso necesita enemigos. En el
teatro del bien y del mal, a veces son intercambiables como pasó con Sadam
Husein, un santo de Occidente que se convirtió en Satanás.
Chávez,
na visão de Galeano, é demonizado por poderosos adversários que precisam de inimigos
para sustentar máquinas de guerra. Imagino que esteja se referindo aos Estados
Unidos. A oposição que Chávez enfrenta na América do Sul seria um simples
epifenômeno dos interesses situados em Washington. É a mesma argumentação de “As
veias abertas...”. O inimigo é sempre externo (Já tratei deste tema num texto
aqui no blog intitulado “A revolução jesuítica na ilha socialista”). Eu, por
exemplo, que não partilho dos ideais bolivarianos, sou um pequeno demonizador
guiado, mesmo sem o saber, pela demonologia yanquee.
A
mídia liberal na América do Sul, sem dúvida alguma, demoniza Chávez. Mas a
recíproca não é verdadeira? A demonização e a troca de insultos entre o
chavismo e a mídia são uma via de mão dupla.
E
Chávez? A imagem do líder máximo dos bolivarianos que emerge dos textos de Galeano
é a de um homem, ou de um super-homem, que tomou para si a responsabilidade
de salvar seu povo das garras do imperialismo e conduzi-lo no caminho da redenção
social. Chávez é o herói social, que enfrenta destemido o imperialismo satânico
e suas coortes oligárquicas.
Saindo
um pouco do campo da mitificação e da glorificação, vamos relembrar uma faceta do
presidente venezuelano que Galeano parece ter esquecido. Chávez é um campeão da
demonização. A antiga “arte” de farejar demônios encontrou nele um devotado neófito.
Vou relembrar apenas um exemplo. Em setembro de 2006, na 61ª Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), em Nova York, chamou o presidente
dos Estados Unidos, George W. Bush, de diabo. A frase ficou famosa:
"O
diabo está em casa. O diabo veio aqui ontem. Ainda cheira a enxofre hoje".
Bush havia discursado no mesmo local um dia antes. Chávez fez o discurso segurando na mão o livro
do linguista norte americano Noam Chomsky. Atacar o diabo com arma caseira parece
surtir mais efeito. Além do que, o cinema já ensinou, todo exorcismo deve ser
realizado tendo uma bíblia em mãos.
Bush,
a encarnação do mal para Chávez, é outro campeão da demonização. Será que estas
coisas se atraem? Durante o tempo em que esteve na casa branca usou e abusou do
recurso da demonização. Relembro o exemplo do “eixo do mal”. Bush articulou o
discurso e definiu o “eixo do mal” pela primeira vez em janeiro 2002 no seu discurso
do Estado da União. No discurso, ao se referir aos países adversários dos EUA que
desenvolviam programas nucleares, a definição de “eixo do mal” foi apresentada
da seguinte maneira:
“O
nosso objectivo é prevenir os regimes que apoiam o terror de ameaçarem a
América ou os nossos amigos e aliados com armas e destruição massiva. Alguns
destes regimes têm estado bastante quietos desde o 11 de Setembro. Mas
sabemos a sua verdadeira natureza. A Coreia de Norte é um regime armado com mísseis
e armas de destruição massiva, enquanto
esfomeia os seus cidadãos.
O Irão
persegue agressivamente estes armados e exporta terror, enquanto uns poucos
não eleitos reprimem a vontade dos iranianos pela liberdade.
O
Iraque continua a mostrar a sua hostilidade por toda a América e a apoiar o
terror. O regime iraquiano planeou fabricar anthrax,
gás de nervos e bombas
nucleares para matar milhares dos seus próprios cidadãos -
deixando os corpos de mães amontados por cima dos seus filhos mortos. Este é
um regime que acordou na existência de inspectores internacionais [no seu
país] - e depois deportou-os. Este é um regime que tem algo a esconder do
mundo civilizado.
Estados
como estes, e os seus aliados terroristas, constituem um eixo do mal, armados para ameaçarem
a paz no mundo. Por procurarem armas de destruição massiva, estes regimes são
um perigo grave e crescente. Eles podem dar estas armas a terroristas,
dando-lhes os meios para combinarem os seus planos. Eles podem atacar os
nossos aliados ou tentar chantagear os Estados Unidos. Em qualquer um destes
casos, o preço da indiferença seria catastrófico.”
|
O
discurso de Bush, embora claramente demonizador, vinha envolvido pela defesa de
um ideal de civilização e de luta contra o terror, no imediato pós 11 de
setembro. Chávez não foi nada sutil, partiu logo para a demonização pessoal. O
curioso é que enquanto Chávez demonizava Bush, os Estados Unidos eram os
grandes parceiros comerciais da Venezuela. Se por um lado, o líder bolivariano construiu
sua imagem internacional atacando os Estados Unidos e o imperialismo (em 2005,
fechou oitenta lanchonetes da rede McDonald's e quatro fábricas da Coca-Cola
que operavam em território venezuelano), por outro, os Estados unidos são os
maiores compradores do petróleo venezuelano. O chavismo parece conviver bem com
o fato de ter um superávit comercial de quase 30 bilhões de dólares com o país
cujo governo ele condena e demoniza. Neste caso, a demonização de Bush seria
apenas um jogo de cena para projetar uma imagem internacional e despistar os
graves problemas internos da Venezuela?
Depois
de discursar na ONU e exercitar a demonização, Chávez foi se encontrar com
aquele que para os Estados Unidos, e para Bush em particular, é o demônio em
pessoa, Mahmoud Ahmadinejad. Chávez, Bush e Ahmadinejad, reunidos
na mesma frase, e unidos pelo mesmo discurso. Juro que foi coincidência. Ou terá
sido obra do capeta? O diabo também tem as suas afinidades eletivas? hehehe
Eduardo
Galeano, que hoje denuncia a demonização, também a praticou sem papas na língua.
“As veias abertas da América Latina” é, em certo sentido, a mais completa
demonização dos conquistadores e colonizadores da América que já se fez. É uma
espécie de manual de demonologia para exorcizar as forças malignas que se
apossaram do continente há quinhentos anos. Não me entendam mal. O livro é extraordinário
e tremendamente sedutor. Foi uma das leituras que me aproximou definitivamente do
campo da história. Mas é preciso fazer a crítica. É o dever do ofício e o
prazer do novíssimo blogueiro. Numa linguagem cáustica Galeano denunciou a
rapinagem e a exploração praticada na América Latina pelos conquistadores, desde
a descoberta do continente. O livro foi escrito no início da década de 1970,
período marcado por turbulências políticas, ditaduras militares e lutas contra
a ação imperialista dos Estados Unidos na América Latina. Nos dois continentes
– Europa e América – desdobrou-se uma profunda revisão historiográfica da
descoberta e conquista da América. A historiografia e os ensaios históricos
deste período foram marcados pelas lutas sociais, políticas, e por uma forte
carga de denúncia das violências e explorações que assolaram a América ao longo
dos seus 500 anos. Era como se fazer a denúncia das atrocidades praticadas
pelas potências coloniais contra os povos americanos no passado surtisse um
efeito de denúncia contra o imperialismo e as ditaduras do presente. E de certa
maneira isto funcionou. Toda uma geração, inclusive eu, foi mobilizada e educada
pela história-denúncia das décadas de 1960 e 1970. A história era
acionada como instrumento de luta pela democratização e como tribunal em favor
dos povos oprimidos. O desvelamento das ligações da igreja com o colonialismo
ibérico desmascarava também a cumplicidade da igreja conservadora do século XX
com os poderes militares e imperialistas.
Não
é minha intenção diminuir a importância da obra e muito menos negar as teses de
Eduardo Galeano, mesmo porque elas se verificam em diversas situações. Pretendo
apenas nuançar e relativizar alguns pontos, e ressaltar o traço demonológico.
Se,
ao expor as veias abertas da América, Galeano fez um julgamento moral dos
espanhóis, o quadro que ele desenha da violência praticada pelos conquistadores
talvez tenha mais a ver com o momento político em que ele escrevia do que com a
América de 500 anos atrás. Na sua narrativa os conquistadores de ontem - os
espanhóis sedentos de ouro - convertem-se nos exploradores de hoje – os
inescrupulosos imperialistas yankees. De Cortez a Nixon, numa vasta
continuidade, a exploração da América apenas trocou de mãos e de geografia.
Vítima eterna dos saqueadores atemporais, o destino da América está selado:
perder e fracassar.
“Nossa comarca do mundo, que hoje
chamamos de América Latina, foi precoce: especializou-se em perder desde os
remotos tempos em que os europeus do Renascimento se abalançaram pelo mar e
fincaram os dentes em sua garganta. Passaram os séculos, e a América Latina aperfeiçoou
suas funções.
Para os que concebem a história
como uma disputa, o atraso e a miséria da América latina são o resultado de seu
fracasso. Perdemos; outros ganharam. Mas acontece que aqueles que ganharam,
ganharam graças ao que nós perdemos.”
A
América que emerge dos textos condenatórios da conquista assemelha-se uma
entidade homogênea e a-histórica, dilacerada por séculos de espoliação.
Forja-se uma identidade continental sob o signo da derrota e da famigerada
conquista e exploração europeia. Denunciar as arbitrariedades, a exploração e a
brutalidade dos conquistadores, evidentemente, é de suma importância, e Galeano
foi muito bem sucedido no seu empreendimento. Mas não é suficiente. A prática
da violência, física ou cultural, se dá dentro de um quadro de referências
históricas, religiosas e morais, característico de cada época, sem o qual a
violência torna-se gratuita e igual em toda parte. Sem a devida contextualização,
saímos do campo da construção histórica para adentramos no terreno da
demonologia.
O
uso político da história para efeito de denúncia, objetivo do livro de Galeano,
pode funcionar para mobilizar e legitimar as lutas contra a violência e
opressão na América Latina, no entanto, esclarece muito pouco sobre as
conquistas materiais e espirituais dos séculos XVI e XVII. Este tipo de uso da
história acaba gerando esquemas interpretativos binários e maniqueístas que,
geralmente, vitimizam as populações indígenas e as estigmatizam como oprimidas
– assim como os trabalhadores modernos, herdeiros sociais do infortúnio
histórico - e tiranizam os conquistadores - e os agentes imperialistas,
herdeiros dos meios de produção e dos mecanismos de opressão.
A
demonização dos conquistadores, dos colonizadores e, posteriormente, dos
agentes imperialistas era uma forma de julgamento histórico e de condenação dos
supostos responsáveis pelo atraso do continente. Naquele contexto, o que
chamamos hoje de demonização cumpria uma função específica, embora a palavra
não estivesse na moda.
Não
poderia deixar de mencionar o ato simbólico de Hugo Chávez ao entregar o livro
de Galeano ao presidente Barack Obama na primeira sessão plenária da Cúpula das
Américas, em Trinidad e Tobago. O gesto de Chávez, provocativo e carregado de
simbolismo, renovou subitamente o interesse pelo livro, que é cultuado pelas
esquerdas latino-americanas como uma obra fundamental para entender o
subdesenvolvimento da América latina. As vendas do livro, segundo a Folha de
São Paulo, dispararam. Em poucas horas o livro saltou da posição 60.280 para um
dos mais vendidos no site de vendas da Amazon.com. Escrito no calor das lutas
políticas da década de 1970, mais precisamente em 1971, as Veias Abertas,
sugiro, é uma obra fundamental para entender o pensamento de setores da esquerda
latino-americana dos anos 70 e dos dias de hoje, e não o passado colonial
americano. O livro de Galeano e o gesto de Chávez, em que pesem as diferença
entre eles, fazem uso do passado e da história para afiançar seus gestos e
escolhas políticas.
O
presente de Chávez a Obama foi algum tipo de exorcismo bibliográfico? E se o Obama
fosse dar um livro de presente a Chávez? Que livro seria? Arriscaria “O mundo pós
americano”, de Fareed Zakaria. Não porque Obama estava lendo o livro quando foi
eleito presidente dos EUA, mas porque o livro parece ser uma metanarrativa da
era Obama. Chávez é mencionado duas ou três vezes no livro. E quando é mencionado,
é para mostrar sua insignificância e anacronismo. Elegantemente, e sem exceder
nos adjetivos, Zakaria associa Chávez às forças “insanas” – a palavra é dele –
que andam na contra mão da história. Parece-me que esta é também a visão de
Obama sobre Chávez.
A
demonização serve a todos os gostos e atende a múltiplos propósitos. O demônio
que se previna, pois se os insultos demonizantes forem tomados como critério
para carimbar o passaporte para os seus domínios, o inferno vai transbordar.
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