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segunda-feira, 7 de março de 2022

 

TransUcrânia: a guerra contra a transfobia no interior da guerra imperial do Putin.

 

Prédio no centro de Kiev

O guerra do Putin contra a Ucrânia é destacadamente o assunto mais comentado na mídia internacional e nos principais veículos de comunicação no Brasil. Diferentes aspectos da guerra são exploradas à exaustão, com destaque para as estratégias de ataque e defesa, os horrores enfrentados pela população, a ameaça de uma guerra nuclear e as tentativas de negociação. (Quase) nada escapa à hiper-cobertura da imprensa mundial. A guerra é transmitida ao vivo, 24 horas, e mobiliza, sem reservas, recursos humanos e novas tecnologias de captação e transmissão de imagens via satélite, que transformam o horror da guerra num espetáculo televisivo depurado e estranhamente convidativo. Um lado menos atraente da guerra, no entanto, vem sendo esquecido e/ou ignorado: a luta da comunidade trans para sobreviver à guerra e à transfobia. É uma guerra invisível contra o preconceito e a violência de gênero, travada no interior e à margem da guerra-espetáculo.

Fugindo da guerra, parte da população ucraniana que vive nas áreas e cidades mais atingidas pelos conflitos, está atravessando as fronteiras para os países vizinhos, que se mostram solidários e receptivos. Mas a saída pela fronteira não é para todo mundo. Pessoas trans, que já fizeram a transição de gênero, e estão tentando buscar um lugar mais seguro para viver, não estão conseguindo deixar o país porque os militares ucranianos não aceitam os documentos, que ainda trazem a identificação do gênero masculino e os nomes de batismo. Para estas pessoas a fronteira não é trans (do prefixo grego que significa “através”, “além de”, e sugere a possibilidade da travessia, de “atravessar para o outro lado”). A fronteira ucraniana é uma barreira física transfóbica, não um lugar de passagem para longe da guerra.

Segundo diversos grupos de direitos humanos, o reconhecimento legal da identidade de gênero é demorada, humilhante e abusiva na Ucrânia. Por isso, a maioria trans ainda usa os documentos antigos. Ao longo do processo de redesignação de sexo, um conjunto extenso de exames psiquiátricos, que violam a privacidade e a integridade física das pessoas, são exigidos pelo governo para a realização da cirurgia e a obtenção dos documentos. Em alguns casos, elas ficam confinadas por meses em instituições psiquiátricas, submetidas a testes psicológicos e físicos para comprovar o seu gênero. Uma nova legislação foi proposta em 2017, para facilitar o processo, mas as novas regras, de acordo com Human Rights Watch, não saíram do papel. Um importante Relatório elaborado em 2021 pela Nash Mir aponta a pressão dos conservadores e da extrema direita sobre o hesitante presidente Zelensky. Aponta também a omissão e o incômodo silêncio da imprensa sobre casos de violência contra a comunidade LGBTQIA+. O Relatório chama a atenção ainda para o silêncio em torno das manifestações abertas e agressivamente homofóbicas de políticos ligados ao Servo do Povo, partido governista, e ao partido Plataforma da Oposição.

Em 2021 a Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexuais, também apresentou um Relatório informando a descontinuidade da elaboração do novo protocolo de saúde para pessoas trans e denunciando uma ofensiva intimidatória de grupos de extrema direita.

A guerra contra a transfobia é anterior a invasão russa e certamente vai continuar depois dos acordos de cessar fogo. O inimigo doméstico encara o combate à transexualidade como uma cruzada moral, tem força parlamentar, poder de intimidação e conta com o silêncio cúmplice da imprensa. A deflagração de guerra pelo também homofóbico Vladimir Putin colocou a população trans ucraniana numa condição de abandono e vulnerabilidade ainda maior, lutando em duas guerras, em duas frentes. Na guerra doméstica o adversário é conhecido, e controla as fronteiras, impedindo a passagem. Mas a violência não ocorre apenas nas fronteiras. A discriminação também vem sendo denunciada ao longo da jornada migratória. A violência é continuada[1], permanente e acompanha a população trans do lugar onde mora às fronteiras e vai além. Buscar refúgio em países como a Polônia, Hungria, Romênia e Eslováquia, onde a identidade trans é “ridicularizada”, segundo uma ucraniana não-binária, pode envolve-las em outras guerras em território estrangeiro. A perseguição à comunidade LGBTQIA+ cresceu muito nos últimos anos nestes países, incentivada pelas ações e declarações de líderes políticos como Viktor Orbán (Hungria) e Andrzej Duda (Polônia).

Os depoimentos que a cantora ucraniana Zi Faámelu deu à Vice World News, no dia 2 de março, tem corrido o mundo por caminhos alternativos e chamado a atenção para esta dimensão invisível da guerra.  Ela está presa em sua casa, quase sem comida e com medo de sair. No depoimento, denunciou o abandono de pessoas como ela e fez um apelo: “Pessoas trans agora se sentem esquecidas, negligenciadas, abandonadas. Nós realmente somos invisíveis no momento. Nós precisamos das Nações Unidas, nós precisamos de organizações dos direitos humanos. Precisamos de pessoas para nos ajudar a sermos percebidos. Há centenas de nós presos assim, vivendo vidas miseráveis. Precisamos de alguma influência do exterior. Precisamos que as pessoas escrevam para seus políticos e instituições de caridade para nos ajudar.”

A situação é tão desesperadora e perigosa para estas pessoas que grupos de direitos humanos estão aconselhando a abandonar suas identidades para poder sair da Ucrânia. Ficar pode ser uma “escolha” ainda mais aterrorizante, disse uma mulher trans. As autoridades estão impedindo os homens de 18 a 60 anos de deixar o país. Não reconhecidas como mulheres, elas podem ser forçadas a se juntar ao exército, “como homens”, para enfrentar os russos, numa guerra que não é delas, ao lado dos seus piores inimigos.

Passaporte de Zi Faámelu.



[1] Conceito tomado de empréstimo de Cynthia Cockburn. The Continuum of Violence: A gender perspective on war and Peace. In: GILES, Wenona; HYNDMAN, Jennifer. (Eds.). Sites of Violence: Gender and Conflict Zones. Berkeley, Los Angeles and London: University of California Press, 2004. p. 24-44.

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