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quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

O DIA EM QUE OS ESTADOS UNIDOS, sem querer, SALVARAM UM POVO.



O DIA EM QUE OS ESTADOS UNIDOS, sem querer, SALVARAM UM POVO.


Não desmereçam completamente os filmes ruins. Às vezes eles nos reservam belas surpresas. Quilômetro Zero, uma co-produção França-Iraque, de 2009, do diretor Hiner Saleem, com o apoio do governo regional do Curdistão iraquiano, é seguramente um dos piores filmes que já vi. É uma produção barata, mas não é esse o problema. A câmera é preguiçosa, os enquadramentos são sonolentos, monótonos, as interpretações não são nada convincentes e a narrativa é mal costurada. Para mostrar o absurdo da guerra, o diretor optou por alguns toques surreais. Não funcionou, e acabou destoando do eixo narrativo. Mas apesar dos problemas o filme levanta uma discussão importante. A narrativa gira em torno de um casal curdo que tenta escapar das garras tirânicas de Saddam Hussein. O filme trabalha com duas temporalidades. Começa em 2003, com a invasão do Iraque pelo exército americano. Neste momento, o casal protagonista vive exilado na França e comemora a entrada dos Estados Unidos no Iraque. Na sequência um flashback nos reporta ao ano de 1988, em plena guerra Irã-Iraque. Um jovem curdo, que no começo do filme comemora com sua esposa a queda de Saddam, se vê obriga a entrar para o exército iraquiano e lutar contra o Irã. O jovem se recusa e tenta, com sua mulher, escapar do país e dos horrores da guerra.  Embora o diretor não consiga explorar com habilidade o drama sofrido pelos curdos, a mensagem é clara: a invasão norte americana no Iraque representou para os curdos, atormentados pelo terror do regime de Hussein, uma verdadeira libertação. 



Nossos conceitos, nossa visão sobre a guerra do Iraque, e nossas discussões acadêmicas sobre a legitimidade ou não da entrada dos EUA e a queda do ditador, restam impotentes diante da questão levantada. Enquanto debatemos sobre os interesses do império, sobre o caráter neokeynesiano da guerra, que representaria novas frentes de trabalho e reservas de mercado para empresas americanas (inspirados nas denúncias de Fukuyama sobre a guerra econômica de Bush), o povo curdo lutava desesperadamente pela sobrevivência. 

No começo do filme, numa rádio francesa, um jovem curdo diz numa entrevista: "sabemos que os EUA são imperialistas, mas precisamos ser libertados. Gostaria que fossemos libertados pela França, pela Suíça, pela Noruega, mas ninguém vai aparecer" (não exatamente com estas palavras). No rádio as atrocidades cometidas pelo ditador são lembradas: no final dos anos 80, o governo iraquiano matou 182 mil curdos e destruiu cinco mil vilarejos. A rádio faz referências à conhecida “Operação Anfal”, uma campanha genocida do governo de Saddam contra os curdos que viviam nas áreas rurais no norte do Iraque. A campanha foi realizada entre 1986 e 1989, destacando-se o ano de 1988, quando foi ambientada a narrativa fílmica, como o mais violento.

Para os curdos não interessava se a guerra do Iraque era uma guerra imperialista, econômica. O que importava era que o ditador fosse detido, pagasse pelos seus crimes, e suas vidas voltassem ao normal. O filme é ruim (não totalmente), mas o argumento é inquietante. 

Não que nossas categorias e nossa interpretação da guerra não tenham validade. Não é esta a questão. Uma coisa não invalida a outra. Se, por um lado, denunciamos legitimamente a invasão do Iraque, criticamos os métodos americanos e discutimos os interesses que estão por trás da guerra, por outro, o filme chama a atenção para um lado do conflito que parece que esquecemos. Precisamente, o lado dos curdos. Eles querem lá saber das intenções não reveladas da doutrina Bush? Eles querem é se livrar do ditador. E se este papel coube aos Estados Unidos, eles dão vivas ao exército americano e comemoram a invasão como fosse uma final de copa do mundo. E alguém poderá dizer que isto não é legítimo?

Este argumento serve também para pensar o final do filme “A Vida é Bela”, de Roberto Benigni. O filme foi muito criticado por mostrar a entrada triunfal dos tanques norte americanos no campo de concentração e a libertação dos prisioneiros. Para alguns esta foi a senha para conquistar o Oscar. Não é por ai que eu vou. Minha linha de argumentação é outra. Não estou interpretando a guerra como historiador e examinando os interesses em jogo. Estou me colocando na pele de quem viveu o horror da guerra, não na condição de quem tenta explicá-la. Se olharmos pelo ponto de vista de um pai que lutava com todas as forças pela vida do filho, a entrada o exército dos Estados Unidos no campo de concentração nazista foi a salvação. Para os curdos não foi diferente. Mesmo sem ter a intenção, os Estados Unidos da América salvaram um povo que agonizava sob um regime cruel. Uma guerra cheia de intenções, como foi a guerra contra o Iraque, produziu o seu melhor fruto sem a intenção de fazê-lo. Não existe nobreza na ação militar dos estados. A guerra, já advertia Kant, é a forma extrema que a violência toma na história. As guerras não são inevitáveis. Não podemos encará-las, segundo a poderosa filosofia da história de Hegel, como uma etapa necessária na marcha triunfal da razão. Não só isso. Dizê-las como um desdobramento natural e necessário das Relações Internacionais é um discurso de poder do realismo dominante. Não existe elogio possível às guerras. Não no nosso tempo. Nem mesmo as ditas guerras de libertação. As perdas humanas são irreparáveis e os ideais de libertação facilmente são abandonados em nome da segurança, da unidade ou pelos desvios de caráter do líder redentor do momento. A qualificação da guerra como libertadora só é aceitável quando ditada pela dor dos povos. Neste caso, como ocorreu com os curdos, o efeito libertador foi apenas um efeito colateral da guerra. A razão principal não era tão digna. Mas os curdos não estavam muito preocupados com isso. A brutalidade do inimigo não permitia certos caprichos.

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