O COMPLEXO DE SKYWALKER: O
OFICIALISMO GROSSEIRO E GALOPANTE ACREDITA ESTAR VIVENDO NO UNIVERSO DE STAR WARS.
- Ler ao som de Star Wars Theme Song (By John Williams).
- O texto foi inspirado em Raoul Girardet e George Lucas.
Em geral, entendem-se e
explicam-se as ideias políticas como expressões do pensamento racionalmente
organizado e logicamente conduzido herdado da primazia que se conferiu a razão
no ocidente há pelo menos três séculos (Raoul Girardet). Resultou desta
primazia conferida ao racional certa desconfiança em relação aos temas
associados ao imaginário. Ainda que a terminologia tenha se imposto e faça
parte do vocabulário acadêmico-científico, a noção de um imaginário político
que se expressa por meio de mitos e alegorias ainda esbarra em vigorosa
resistência. No entanto, como desconsiderar o apelo redentor presente nas
revoluções? Como não levar em conta a simbologia do líder salvador? E o que
dizer do tema da conspiração? Mito mobilizador por excelência, a temática da
conspiração ou do complô é parte constitutiva de diversas experiências políticas
do ocidente (complô jesuítico, complô judaico, complô maçônico). Da fase jacobina
da revolução francesa ao terror stalinista o tema do complô desempenhou função
tática para alimentar acusações e sustentar expurgos, visando livrar-se da
ameaça, real ou não, de opositores. No cerne das grandes construções doutrinais
dos séculos XVIII, XIX e XX, embora envolvidas por um caráter essencialmente
científico, encontramos um forte apelo mítico. E é justamente neste aspecto,
digamos menos científico, que repousa o poder de atração das grandes doutrinas
políticas. O marxismo, expresso exclusivamente pelo seu componente conceitual e
seu método analítico, teria chegado tão longe? Seria possível um marxismo sem o
apelo profético e a visão messiânica? (Girardet) O componente mitológico é
essencial para a compreensão da afirmação e do poder de mobilização de certas
doutrinas políticas.
Um discurso mitológico
recorrentemente adaptado ao universo das lutas políticas é a batalha do bem
contra o mal ou das forças da luz contra as forças das trevas. Diferentes
manifestações políticas, em diferentes épocas, recorreram a este expediente
como forma de desacreditar os oponentes ou apresentar-se como a única alternativa
possível.
No cinema a luta do bem contra o
mal, desde o nascimento da sétima arte, esteve presente nos mais variados
gêneros, do western ao terror. Mas foi talvez a saga Star Wars a expressão
cinematográfica que retratou de maneira mais espetacular o confronto da luz
contra as trevas. George Lucas recolheu componentes arquetípicos e mitológicos
variados para compor a saga. Encontramos ali uma referência ao sábio mago Merlin
(Obi-Wan Kenobi) aos Samurais do Japão feudal (Os Cavaleiros Jedi. Clinton
Felker inspirou-se na cultura samurai para criar e desenhar alguns
personagens), a trajetória do herói (Luke Skywalker) e
uma referência central do Taoísmo (o Yin e Yang, a dualidade binária
que mantém o universo em equilíbrio).
No cinema o enfrentamento entre
as duas forças oponentes e universais sempre rendeu grandes filmes. A epopeia O
Senhor dos Anéis é a mais recente confirmação do poder de atração desse tipo de
conflito. No campo da política é que a coisa fica complicada. No reino da
ficção é perfeitamente admissível, quando não desejável. Ficar do lado do bem e
torcer por Skywalker e Frodo é divertido, envolve certo conceito de justiça e, de
quebra, garante a existência do universo. Tudo não passa de uma representação
fílmica, ainda que possam, eventualmente, reportar-se a alguma realidade
histórica. Mas na política? Como identificar o lado bom e o lado mau, a luz e
as trevas, em termos de condução dos rumos do país, entre pessoas que vivem no mesmo
plano existencial? Bem, isso é mais comum do que parece. Collor, em 1988,
comportando-se como verdadeiro cavaleiro da luz, convocou as forças do bem para
derrotar o mal que a esquerda representava naquele momento. Na visão da elite
collorida, era o perfeito embate entre o ogro esquerdista, mutilado e
supostamente ateu, e o elegante cavaleiro moralizante que prometia varrer do
Brasil a corrupção e o fantasma do comunismo. Foi épico. E eu estava do lado do
mal. O bem venceu, mas o país não foi salvo. O herói caiu em tentação e
sucumbiu. As forças golpistas que destituíram o governo de João Goulart também
julgavam representar o bem. O golpe de 1964 foi, na ótica dos seus
idealizadores e simpatizantes, uma intervenção salvacionista. O lado do bem
venceu, mas o país mergulhou nas trevas por vinte anos. Os exemplos poderiam
facilmente ser multiplicados.
Em momentos de crise de
legitimidade, de mudanças significativas ou de ruptura com a ordem antes
existente, este tipo apelo mítico é bastante recorrente. A crise atual que
abalou moralmente a esquerda brasileira, particularmente o partido que comanda
o governo, criou um ambiente propício para este tipo de manifestação.
Configurou-se um tipo particular
de oficialismo midiático de esquerda no Brasil, que atua principalmente na
blogosfera, para contrapor à retórica dos grandes meios de comunicação. Um
parêntese. Alguns amigos acham que eu bato demais na esquerda e muito pouco na
direita. É verdade. O problema é que não tenho vontade nem saco para escrever
sobre a direita. Eventualmente rabisco alguma coisa. Não tenho vontade porque
acho a direita chata, enfadonha, e não creio que valha a pena. Além disso, quem
esta governando o país é a esquerda com quem sempre mantive uma relação de
proximidade e de desconfiança, de atração e de repulsa, de afinidade e de
divergência. Nunca fomos grandes amigos, embora sempre tenhamos andado juntos. Será
porque descobri Bakunin antes de Marx? Artaud antes de Lênin? Pasolini antes de
Gramsci? Quem sabe. E se não valesse a pena, eu não escreveria sobre a esquerda.
E ainda vale a pena? Acho que no fundo escrevo e escrevo para descobrir isso. Fim
do parêntese.
O novo oficialismo, como que
dotado de uma missão heróica, ataca a tudo e a todos que de alguma forma
contestem os governos petistas de Lula e Dilma. A ortodoxia, ontem e hoje, não
admite críticas. Autores como Marco Antônio Villa e Demétrio Magnoli, e mais
recentemente Ferreira Gullar e João Ubaldo Ribeiro, são acusados de conspirar
com a mídia conservadora contra os autoproclamados governos progressistas.
Identificados como expressões intelectuais da direita são abusivamente xingados
de ingênuos, conservadores, reacionários e portadores de um “ódio” de classe
contra os governos ditos populares. No auge do delírio populista são acusados
de serem contra o povo. Na visão simplista, maniqueísta e manipuladora da
ortodoxia reinante, existem apenas dois lados: ou você esta com o governo
petista ou esta do lado forças identificadas
como conservadoras (Ou você esta do lado da luz ou do lado das trevas. Mas é
bom lembrar à oficialidade de plantão que não estamos no mundo de Star Wars).
Parece não haver outras possibilidades. Logo, ou Ferreira Gullar é ingênuo ou
esta do lado da “mídia golpista”. Diversos blogs e portais, muitos dos quais
financiados pelo governo ou por estatais, existem apenas para promover e
defender o governo e contra-atacar a ofensiva da mídia liberal. São sucursais
do governo financiados com o dinheiro público. Nestes ambientes governistas,
Ferreira Gullar e João Ubaldo são os vilões da vez.
De acordo com a voz oficial, o
objetivo precípuo das forças conservadoras é “inviabilizar o governo da
presidenta Dilma Rousseff e destruir a imagem pública do ex-presidente Lula da
Silva.” (A fonte é conhecida, não precisa citar). Estaríamos diante de um
complô midiático? Neste caso, a função do complô seria explicativa e essencialmente
mobilizadora. A ideia de um complô permite articular fatos e acontecimentos
aparentemente dispersos e apresentá-los como se fizessem parte de uma lógica
inflexível e presos a uma mesma causalidade. Como diria Girardet, o complô
configura uma “chave interpretativa” que reúne o conjunto dos acontecimentos de
modo a tornar perfeitamente visível e inteligível aquilo que se forma na sombra
e ronda ameaçadoramente a ordem estabelecida. Identificado e desmascarado o
complô, o passo seguinte é mobilizar forças para defender a ordem, o regime, o
governo. Esta é a diferença entre (1) entender que os meios de comunicação liberais
fazem dura oposição ao governo e não medem esforços para atacá-lo e desmoralizá-lo e (2) acusar
a existência de um complô orquestrado e uníssono para destruir o governo, e acusar quem critica o governo de fazer parte do complô.
Se a finalidade da grande mídia é
mesmo inviabilizar o governo Dilma (o que eu acho um tanto exagerado), o PT
deveria estar acostumado. Fez isso a vida toda com seus adversários, sobretudo
com Fernando Henrique Cardoso. Agora que esta no poder esperava o que?
Complacência? O consenso em torno do messias do ABC? (Admiro, em parte, a
figura do Lula. Votei nela minha vida toda. Reconheço o bom governo que fez.
Mas às vezes a repulsa vem e toma conta. Só não me digam que essa repulsa tem a
ver com preconceitos de classe, certo).
Mas o problema não é esse. O
problema é a retórica e a narrativa épica de que se reveste a oficialidade
governista. Reduz-se tudo a uma luta titânica do bem contra o mal como se
estivéssemos vivendo uma epopeia cinematográfica de George Lucas. O lado
sombrio da força, comandado por poderosos IMPÉRIOS de comunicação e por vilões
terríveis como Azevedo, Noblat, entre outros, contra ataca para deter o avanço
da luz e restituir os privilégios de outrora. A “elite” (que neste caso se
resume aos donos dos meios de comunicação) não se conforma com os rumos (da
luz) que o país esta tomando. Não admitem que a vez dos pobres tenha chegado e
que um ex-operário tenha alcançado a presidência da república e governe para o
povo. Onde já se viu isso! A versão tropical e direitista de Darth Vader (o
império midiático) trouxe para as suas hostes nomes como Ferreira Gullar e João
Ubaldo, que antes andavam no caminho da luz. Estão ouvindo a música tema de
Star Wars? Ela é edificante, grandiosa. Ajuda a entender o espírito mitológico
e messiânico que envolve a saga da esquerda no poder no Brasil. Mas é bom
lembrar que o outro lado também faz uso do mesmo recurso. A revista Veja,
Azevedo, Augusto Nunes e Noblat estão numa verdadeira cruzada ética e moral
contra o que acreditam ser o perigo que o PT representa para a democracia
brasileira. Não se trata de um complô ardilosa e organizadamente orquestrado para
inviabilizar o governo Dilma. Trata-se de oposição sistemática e implacável. E quer
saber, Dilma sabe muito lidar com isso. Lula não. Dilma parece entender os
embates numa democracia, Lula prefere denunciar o complô.
É claro que nesta luta do lado da
luz (jedi) contra o lado sombrio (sith), os deslizes dos cavaleiros jedis -
educados pelo mago e mestre Lênin, que travam batalhas épicas no parlamento
burguês e contra o terrível poder do dispositivo midiático - devem ser
perdoados. Afinal, o que esta em jogo é o domínio do universo pelas trevas do
capital. A mitologia jedi-leninista identifica a lógica do capital como a
filosofia que orienta o lado sombrio da força. A derrota do governo da luz (que
emana da estrela) pode representar o retorno do lado sombrio e a vitória
definitiva do monstro que a tudo escraviza: o CAPITALISMO.
Um trecho de um texto que tem
circulado pelo ambiente virtual é suficiente para ilustrar minha argumentação:
“Agora, a nova cruzada moral
recebe, além dos já conhecidos defensores dos “valores civilizatórios”, nomes como Ferreira Gullar e João Ubaldo Ribeiro.
A raiva com que escrevem poderia ser canalizada para causas bem mais nobres se
ambos não se deixassem cativar pelo canto da sereia. Eles assumiram a
construção midiática do escândalo, e do que chamam de degenerescência moral,
com o fato. E, porque estão convencidos de que o país está em perigo, de que o
ex-presidente Lula é a encarnação do mal, e de que o PT deve ser extinguido
para que o país sobreviva, reproduzem a retórica dos conglomerados de mídia com
uma ingenuidade inconcebível para quem tanto nos inspirou com sua imaginação
literária.”
Tive que ler e reler várias vezes
para me convencer de que o sujeito estava de fato sustentando isso. Além da
usual vitimização do PT, o texto expõe um conjunto de sofismas, claro,
pretensamente esclarecedor sobre as intenções dos autores atacados. Para
arrematar, o sujeito apela para a velha e conhecida tática de desqualificação: a
ingenuidade. Ferreira e Ubaldo não têm autonomia intelectual. Eles simplesmente
reproduzem, com espantosa ingenuidade, “a retórica dos conglomerados de mídia”.
Com duas ou três frases – ou seriam palavras de ordem - o sujeito destroça a
trajetória e a biografia de dois dos maiores intelectuais brasileiros. Enquanto
Ferreira e Ubaldo limitavam-se a “imaginação literária”, estava tudo certo, mas
quando se meteram a escrever sobre política e questionar sobre – imaginem! – as
condutas morais de personalidades da esquerda e do PT, tornaram-se reprováveis.
Luis Nassif referiu-se a Ferreira Gullar como um “melancólico comunista
arrependido, a serviço das forças e interesses que sempre combateu em seus
melhores anos.” O poeta, porque escreve crônicas para a Folha de São Paulo e
crítica Lula e Chávez, está a serviço “das forças e interesses” conservadores. Nassif,
Nassif. Antes de desqualificar o poeta desta maneira responda as acusações de que
o seu site é financiado pela Caixa Econômica Federal, pela Petrobras e pelo
Ministério da Saúde.
O que deveria se esperar de
intelectuais como eles, que sempre condenaram a corrupção e os desmandos da
direita, diante da indigência moral que se abate sobre a esquerda? O silêncio
cúmplice e pragmático? Atacar com mais força ainda a direita para tirar o foco
e dirimir os estragos políticos dos escândalos da esquerda? As reações de
Ferreira Gullar e de João Ubaldo Ribeiro foram condizentes com suas
trajetórias. O texto “A hora da saideira”, do João Ubaldo, publicado no jornal
O Globo, é de uma lucidez admirável. Destaco um fragmento do texto:
“O PT que nós
conhecíamos, de princípios bem definidos e inabaláveis e de uma postura ética
quase santimonial, constituindo uma identidade clara, acabou de desaparecer
depois da primeira posse do ex-presidente. Hoje sua identidade é a mesma de
qualquer dos outros partidos brasileiros, todos peças da mesma máquina
pervertida, sem perfil ideológico ou programático, declamando objetivos vagos e
fáceis, tais como “vamos cuidar da população carente”, “investiremos em
saneamento básico e saúde”, “levaremos educação a todos os brasileiros” e
outras banalidades genéricas, com as quais todo mundo concorda sem nem pensar.
No terreno prático, a
luta não é pelo bem público, nem para efetivamente mudar coisa alguma, mas para
chegar ao poder pelo poder, não importando se com isso se incorre em traição a
ideais antes apregoados com fervor e se celebram acordos interesseiros e
indecentes.”
Poderíamos classifica-lo como um
traidor, ou um conservador alinhado com a grande mídia, por um texto como este?
O que esperavam do Ubaldo? Uma apologia rasgada e pegajosa da figura do Lula?
Esqueçam.
Claro que não vai faltar quem
diga: “o Ubaldo escreveu para O Globo e o Ferreira deu entrevista para a Veja.
Viu, eles estão juntos.” Nem deveria perder tempo com isso, mas não custa
lembrar que Millôr Fernandes escreveu durante anos para a Veja. Começou na
revista em 1968 e manteve intensa colaboração profissional com a Editora Abril.
Paulo Henrique Amorin e Mino Carta também trabalharam na Veja. Mas na cabeça
dos vigilantes do pensamento se você lê a veja ou escreveu alguma coisa lá,
você é automaticamente associado com a linha de pensamento e com a postura
política da revista.
E o Ferreira Gullar? O que ele
teria dito ou escrito de tão abominável para atrair atenção da patrulha?
Vejamos a entrevista que deu a revista Veja:
“O
Senhor se considera um direitista?
Eu, de direita? Era só
o que faltava. A questão é muito clara. Quando ser de esquerda dava cadeia,
ninguém era. Agora que dá prêmio, todo mundo é. Pensar isso a meu respeito não
é honesto. Porque o que estou dizendo é que o socialismo acabou, estabeleceu
ditaduras, não criou democracia em lugar algum e matou gente em quantidade.
Isso tudo é verdade. Não estou inventando.
E Cuba?
Não posso defender um
regime sob o qual eu não gostaria de viver. Não posso admirar um país do qual
eu não possa sair na hora que quiser. Não dá para defender um regime em que não
se possa publicar um livro sem pedir permissão ao governo. Apesar disso, há uma
porção de intelectuais brasileiros que defendem Cuba, mas, obviamente, não
querem viver lá de jeito nenhum. É difícil para as pessoas reconhecer que
estavam erradas, que passaram a vida toda pregando uma coisa que nunca deu
certo.
Como o
senhor define sua visão política?
Não acho que o
capitalismo seja justo.
O capitalismo é uma
fatalidade, não tem saída. Ele produz desigualdade e exploração. A natureza é
injusta. A justiça é uma invenção humana. Um nasce inteligente e o outro burro.
Um nasce inteligente, o outro aleijado. Quem quer corrigir essa injustiça somos
nós. A capacidade criativa do capitalismo é fundamental para a sociedade se
desenvolver, para a solução da desigualdade, porque é só a produção da riqueza
que resolve isso. A função do estado é impedir que o capitalismo leve a
exploração ao nível que ele quer levar.
Como o senhor avalia a
perspectiva de condenação dos réus do mensalão?
O julgamento não vai
alterar o curso da história brasileira de uma hora para a outra. Mas o que o
Supremo está fazendo é muito importante. É uma coisa altamente positiva para a
sociedade. Punir corruptos, pessoas que se aproveitaram de posições dentro do
governo, é uma chama de esperança.”
Retomo.
Perceberam o ódio e a raiva na
fala do poeta? Não? Nem eu. Podemos dizer que o poeta foi seduzido pelo “canto
da sereia” midiática e reproduz ingenuamente sua retórica? Procurem a
entrevista e leiam na íntegra. Vale a pena.
Já tinham lido a entrevista? Ah,
você não lê a Veja. Sei. Tá bom. Mas critica, não é? Entendi.
Vamos adiante...
Este é o Ferreira Gullar que eu
conheço. Rápido, ágil com as palavras, inteligente e honesto (Não posso defender um regime sob o qual eu
não gostaria de viver). O Ferreira Gullar inventado pelo discurso oficial e
instrumentalizado para servir de judas na blogosfera e nas redes sociais eu não
reconheço. Pois é. Um homem como este, com uma trajetória identificada com a
construção de um país mais justo e mais honesto, é tratado como um vendido,
enquanto aqueles se envolveram em esquemas criminosos são tratados como heróis.
Isto diz muito sobre os valores praticados pelos desqualificadores
profissionais do poeta. É isso mesmo. Uma pá de cronistas e blogueiros
tornaram-se profissionais a serviço do governo, a soldo ou não, cuja missão
oficial é farejar e desacreditar os críticos e associá-los ao que chamam de “dispositivo
midiático conservador”. Não foi apenas a prática política de parcela da
esquerda que se corrompeu. A capacidade de destruir levianamente reputações e
de atribuir sentimentos e ideais aos seus adversários, que não correspondem à
realidade, tornou-se uma especialidade da oficialidade. É a difamação como
missão.
Vou denominar a autoimagem desta
esquerda, que acredita representar o bem e a verdade, e de que vive numa eterna
batalha épica contra as forças do mal, de Complexo de Skywalker. O “andarilho
dos céus” da saga de George Lucas é a representação futurista, arquetípica e
intergaláctica do herói clássico que realiza uma missão cujos propósitos
elevados estão além do entendimento das pessoas comuns. A patologia é grave,
sobretudo nos danos morais que provoca nas vítimas daqueles que sofrem do
Complexo. Os cavaleiros do bem não medem esforços para revelar aos leitores
comuns as terríveis tramas e conspirações que as forças do mal articulam para desestabilizar
o lado luminoso.
Estou exagerando? Estou. O
exagero, e as analogias com a ficção, são formas de chamar a atenção para as
arbitrariedades, as grosseiras simplificações e a má fé dos discursos que
poluem a blogosfera e as redes sociais. Às vezes é preciso carregar nas tintas.
Antes de aderir ao jogo rasteiro
da política partidária e de transformar Ferreira Gullar num vilão direitista
que se deixou “cativar pelo canto da sereia” conservadora, recomendo ler os
seus poemas e conhecer sua inconfundível biografia.
Termino com um poema do Ferreira
que traduz a complexidade do ser e do pensar, que não pode ser reduzida pela
luta político-partidária infame num jogo indecente entre o Lulo-petismo e o
resto.
TRADUZIR-SE
Uma parte de mim é todo mundo:
outra parte é ninguém: fundo sem
fundo.
uma parte de mim é multidão:
outra parte estranheza e solidão.
Uma parte de mim pesa, pondera:
outra parte delira
Uma parte de mim é permanente:
outra parte se sabe de repente
Uma parte de mim é só vertigem:
outra parte, linguagem
Traduzir-se uma parte na outra
parte – que é uma questão de vida ou morte – será arte?
(Ferreira Gullar).
Para encerrar.
Ferreira
Gullar era comunista, foi crítico do stalinismo, mas abandonou o antigo credo.
Mudou. E é cobrado por isso. A expressão pejorativa “ex-comunista arrependido” já
diz tudo. Parece que virou um traidor da “causa”. O poeta virou um apóstata. Niemeyer,
que sempre foi stalinista, é louvado e celebrado por ter se mantido a vida toda
fiel ao comunismo e ao stalinismo. O poeta é detonado porque mudou, o arquiteto
é glorificado porque não mudou. Ajudem-me a entender. Quem aqui é o
conservador? O que deixou o que não deu certo para trás e mudou ou o que se
apegou cegamente ao que não deu certo e nunca mudou? Minha intenção não é sacrificar
o arquiteto para reabilitar o poeta. Gosto dos dois. Niemeyer não mudou? Para mim
tudo bem. Mas declaro minhas simpatias ao poeta que se livrou de um peso morto
do passado e se abriu para a vertigem do presente.
Paulo.
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