PORQUE AMAMOS DEXTER?
Este
texto não tem a pretensão de explicar a “perguntatítulo”. Rabisquei algumas
ideias que rondam minha cabeça para tentar explicar o fascínio que o seriado
exerce sobre mim. De um modo geral, assassinos em série despertam minha
curiosidade. Existiria um serial killer adormecido dentro de mim, para eu ter tanto
interesse pelo assunto? Nenhuma chance. Diria que tenho quase a mesma perícia
que o Dexter (Michael C. Hall) para matar moscas e pernilongos, mas fico por
aí. Se atropelar um rato, paro para socorrer.
Quem
ler este texto é porque foi de alguma forma atraído para o estranho universo de
Dexter Morgan. Ajudem-me então a entender a atração que esse psicopata
apaixonante exerce sobre nós. A cena do crime esta armada. Escolham os
instrumentos/argumentos, juntem as partes e vamos embarcar. Slice of Life está
a nossa espera. Nada de plásticos, certo. A ideia aqui é deixar pistas.
O Mostro.
Dexter
Morgan é Dr. Jekyll and Mr. Hyde ao mesmo tempo, com uma diferença apenas: ele
não precisa de uma dose da misteriosa fórmula para libertar o monstro que vive
dentro dele. A linha que separa o monstro do homem é quase imperceptível. Os
dois convivem em harmonia e um protege o outro. O mostro mata, o cientista
encobre. O cientista pesquisa, investiga, o monstro caça e mata. O monstro não
deixa pistas para não incriminar o cientista. Um prepara o campo para a ação do
outro. São, portanto, indistinguíveis. Habitam a mesma pele e compartilham o
mesmo código. Quando vai caçar, o monstro veste roupas mais discretas, usa
luvas e assume um ar ligeiramente mais selvagem. O cientista, por sua vez,
consegue demonstrar algum afeto, alguma compaixão (não pelas vítimas) e
preocupação com os que o cercam. Mas essas são sutilezas que somente nós, os
cúmplices de poltrona, temos o privilégio de perceber. Nós protegemos o segredo
de Dexter Morgan, o nosso monstro de estimação.
Dexter
é educado, cordial e estranhamente charmoso. À primeira vista, um ser indefeso
e inofensivo. Mas não esqueçamos, ele é um monstro. Um monstro seguro do que é,
eficiente no que faz e que não hesita para manter seu mundo em ordem. Ele caça
pessoas, as mata num ritual frio e plástico, se livra dos corpos no mar aos
pedaços e não sente um pingo de remorso. Ao contrário, após as mortes é
invadido por uma paz de espírito e o alívio de uma tensão semelhante ao momento
que sobrevém ao gozo. E nós vibramos, partilhamos a adrenalina da caçada, torcemos
por ele e desejamos mais e mais mortes. Claro, as vítimas do serial killer são figuras
desprezíveis, assassinos hediondos que não fazem falta no mundo. O mundo fica
melhor e mais seguro sem eles, mas mesmo assim o “nosso” Dexter comete
assassinatos (sim, “nosso”, porque o que nos fisga na série é a intimidade que
aos poucos vamos desenvolvendo com a personagem). E ele não mata apenas
bandidos que escaparam da justiça. Ele burla a polícia para garantir novas
vítimas na sua mesa e aplacar sua sede por mortes. Talvez o monstruoso em
Dexter seja exatamente aquilo que nos atrai. Mas nem todo mostro nos seduz. Ao
contrário. Assassinos, estupradores, psicopatas, em geral nos aterrorizam. Os
monstros que adoramos não são exatamente esses, embora os nossos favoritos
sejam, por vezes, assassinos. Os nossos monstros prediletos são aqueles que não
nos oferecem perigo, que vivem no plano da mitologia, do cinema, da literatura,
do imaginário. Eles não vivem entre nós. Nós não suportaríamos conviver com um
vampiro, nem se ele brilhasse ao sol, ou com um Dexter de verdade. Nós não
teríamos com ele a intimidade que temos se não fosse da maneira como é. Existe
uma distância intransponível e segura entre nós e ele. A mesma distância que
faz de Freddy Krueger um símbolo pop. Bonecos do psicopata que mata nos sonhos
estão à venda em toda parte. “Todos” querem um Freddy de plástico na estante da
sala. Ninguém quer um “pesadelo” de verdade. É assim com o especialista forense
da Miami Metro Homicide. Nós sabemos tudo sobre
Dexter Morgan. Do trauma da infância aos dribles que dá na polícia, do código
dedicadamente construído por Harry
Morgan (James Remar) aos episódios amorosos, e desastrosos, que marcaram
sua vida. Somos testemunhos das suas tristezas, das angústias, das perdas e dos
crimes, que partilhamos como se fossem nossos.
No plano simbólico, nós mataríamos para proteger Dexter Morgan. E isto
nos coloca quase que na condição de criador. Na ausência de Harry, nós adotamos
o monstrinho que ele criou.
A
humanidade, até onde a entendemos, é apaixonada pelos monstros. No ocidente,
desde Homero, esses seres conquistaram o nosso gosto e povoam o nosso universo
fantástico de cada dia. Ciclopes, monstros marinhos colossais e feiticeiras que
habitavam os confins do mundo (Circe e Calípso), e seus correlatos em outras
culturas, nos ajudaram, pelo caminho inverso, a entender a história dos povos
antigos. Os monstros são o espelho invertido da humanidade. Por meio deles a
humanidade afirmou sua identidade e teve garantias de sua normalidade. Diferentes
gêneros literários, particularmente as narrativas de viagens, difundiram e
popularizaram o universo fantástico dos monstros, desde o mundo grego,
alcançando a idade média, adentrando na modernidade e chegando com fôlego
surpreendente aos dias atuais. As narrativas sobre monstros acompanham a
trajetória humana, não só no Ocidente, e se confunde com ela. O que seria de
nos sem os monstros?
Desde
criança amo os monstros. Primeiro foram as histórias de lobisomens que minha
mãe e minhas tias contavam. A credulidade infantil e a habilidade narrativa familiar
inocularam em mim o gosto pelo monstruoso. O monstruoso, neste caso, vinha
recheado de afeto e cuidado. Em certo sentido, de proteção. Era pedagógico.
Ficar até tarde na rua é perigoso. À noite as criaturas saem para caçar. Acho que estas histórias, em parte, me
tornaram aquilo que sou hoje. Depois vieram os filmes japoneses do Ultraman,
que enfrentava monstros espetaculares, e os filmes de vampiros com o
incomparável Christopher Lee. King Kong, Frankenstein e os monstros da mitologia
vieram mais tarde, quando os livros substituíram as narrativas orais da família
(Hoje sou eu quem dá continuidade a tradição e conto histórias de monstros,
quando posso, ao meu sobrinho de 4 anos. Inventamos um mostro para ele chamado
Pé Rachado. Ele escuta com total atenção e dá palpites na história). Mary
Shelley e Bram Stoker deram um sentido mais
literário e apurado ao meu gosto de infância por estes seres do desvio. Fui um
monstrinho criado em casa e cultivado na melhor literatura do gênero. O
encontro com Dexter era só uma questão de tempo.
A
literatura e o cinema possibilitaram uma sobrevida aos monstros. Drácula de Bram
Stoker, filmado pelo Coppola, deixa isso absolutamente claro. Gary Oldman,
encarnando o Conde Drácula, chega a Londres em 1895. Coppola sabia o que queria
quando desembarcou Oldman em Londres naquele exato momento. Numa sequência
extraordinária, Coppola leva o Conde, recém-chegado da Transilvânia, a uma
feira de variedades. Lá, Drácula vai conhecer um curioso experimento: o
cinematógrafo. Graças à invenção dos irmãos Lumière, ele consegue, depois de
séculos, ver o nascer do sol. A sugestão de que as narrativas sobre o príncipe
das trevas só conseguiram tal longevidade se deve ao cinema, é poderosa. Não
fosse a sétima arte, e os filmes extraordinários de Murnau (Nosferatu), Werner
Herzog (Nosferatu), Roman Polanski (A Dança dos Vampiros), entre outros, os
vampiros teriam a popularidade que tem hoje? Duvido.
O
cinema salvou os monstros do esquecimento, e eles retribuíram. Rendem bilheterias
milionárias e transformam atores desconhecidos em celebridades instantâneas. Do
Cult ao trash, do clássico as porcarias, os monstros dominam o cinema. Recordemos
a interminável batalha de Sigourney Weaver contra os Aliens, os zumbis de
George Romero, o retorno triunfal de Michael Meyers, o imbatível Jason Voorhees,
as releituras de Freddy Krueger, a popularidade do Leatherface, só para lembrar
os mais famosos, e o “nosso” Dexter, claro. Monstros e cinema foi um dos
casamentos mais bem sucedidos do mundo do entretenimento. Sim, os monstros
também divertem. Assustar, numa sala de cinema com pipocas e refrigerante, é
divertir. Dar pulos na cadeira e roer as unhas de medo é diversão segura. Mas é
também uma forma de reflexão. Os monstros são pedagógicos.
Dráculas
sedutores (lembram-se do vampiro Jerry Dandrige no filme “A hora do Espanto”?),
Godzilla, King Kong, Lobisomens sarados sem camisa, Vampiros que brilham ao
sol, serial killer do bem, são algumas das versões contemporâneas que atualizam
o repertório dos monstros e, gostem ou não, os mantém vivos e atuais. Eles são
eternos graças a nossa necessidade vital, civilizacional, por estas criaturas
terrivelmente adoráveis. Drácula foi morto centenas de vezes, e sempre renasce,
no cinema, com novas caras e versões. De Bela Lugosi a Gary Oldman, o príncipe
das trevas ressurge, de década em década, cada vez melhor. Quantas vezes o Rei
Artur matou o ogro do Monte Saint Michel? Não importa. O ogro está lá, impávido
e desafiador.
Monstro
(do latim mostrare) é aquele que mostra, que revela. É o caráter pedagógico do
monstro. É assim que Santo Agostinho define o monstro e o monstruoso, na cidade
de Deus. Filho de deus, e que se diferencia de nós apenas na aparência, não na
essência, o monstro, pela sua singular natureza, teria algo de essencial a nos
revelar. O monstro nos mostra o que poderíamos ter sido se não fôssemos o que
somos. Como disse antes, é a garantia da nossa – aparente - normalidade. Construímos-nos,
desde Homero, em oposição aos monstros. A ciência moderna percorreu os quatro
cantos do mundo, foi ao centro da terra, ao fundo dos mares, catalogou ilha por
lha e varreu definitivamente os monstros da face da terra. As amazonas, as
blêmias, a mula sem cabeça, o pé grande, um a um, foram sumindo diante do
avanço do racionalismo cartesiano sobre os territórios fantásticos da
imaginação humana. Surgiram outros monstros. Alguns foram reconfigurados. Se a
ciência mostrou que os monstros antigos não existiam, ajudou a criar outros,
como Frankenstein. E quando não havia mais lugar na terra para os monstros,
eles foram morar no espaço, em planetas distantes. Acidentalmente, ou
alimentando estranhas formas de domínio, estas criaturas caíram na terra, na
forma de ET´s ou bolhas assassinas. A capacidade humana de inventar e reinventar
seus monstros é inesgotável, é proporcional a dependência que temos deles.
E
o que Dexter tem a ver com tudo isso? TUDO. Não sou eu, é o próprio Dexter que
se autodenomina um “monstro”. Como todo monstro, Dexter é um ser do desvio,
neste caso, ético e moral (o código). E se ele é um monstro, o que ele nos
mostra? Não vou falar dos bastidores da polícia e da justiça, evidentes no
seriado. Isso é o que menos me interessa. Dexter nos mostra a justiça crua, que
ocorre à sombra da lei e indiferente aos apelos dos direitos humanos e do
direito de defesa. No estilo velho testamento, Dexter, alheio tanto a deus
quanto as leis, parece seguir a filosofia do olho por olho, dente por dente. Os
criminosos incorrigíveis tem um encontro marcado com a lamina fria e afiada do
irmão da Debra. Ele é o nosso vingador amoral, que segue um código próprio de
sobrevivência e não carrega culpas. O
sucesso de Dexter e o fato de nós o acolhermos com entusiasmo, tem a ver,
acredito, com a descrença geral na justiça formal e na expansão vertiginosa e
banalizada da violência. Num mundo tão violento e selvagem, Dexter surge como
um corretivo, a “mão esquerda de deus”, segundo tradução brasileira. A ideia de
uma “mão esquerda de deus” parece tentadora, mas talvez não condiga com a moral
singular de Dexter. Tentar aproximar as mortes rituais com a ideia de uma
justiça divina é perder de vista o fato de Dexter ser completamente vazio em
termos de espiritualidade e de matar por pura necessidade. Não há lugar para
deus no universo de Dexter. Ele é o cavaleiro do apocalipse ateu para os
criminosos. Game over. Além disso, as passagem bíblicas referentes à mão
esquerda não autorizariam tal tradução. Todavia, não nos enganemos, o nosso
anti-herói não faz justiça. Matar um criminoso hediondo, ao invés de levá-lo à
prisão, é justiçamento (No sentido axiológico, justiçamento é oposto de
justiça. É a aplicação de um apena ou castigo, ao arrepio da lei.). Dexter é
movido por um impulso primário e obscuro, que foi identificado e reorientado
ainda na infância. Nosso anti-herói mata por necessidade e acaba sendo um
justiceiro por acidente. Existe um sentido particular de justiça que estrutura
o código de Dexter, mas o que o movo, fundamentalmente, é o desejo de matar.
Falando em “desejo de matar”, Charles Bronson, impagável como Paul Kersey, é a encarnação
do justiceiro com uma causa: ela quer livrar o mundo da bandidagem, e age
também ao arrepio da lei. Dexter não tem uma causa. Ele não é aversão serial
killer de Charles Bronson.
Nós
podemos nos escandalizar com a pena de morte, com a justiça feita pelas
próprias mãos, com os policiais flagrados, por onipresentes celulares, batendo
nos bandidos, mas não nos incomodamos com o macabro ritual do nosso monstro
sedutor. Nossa fiel audiência ao seriado é o salvo conduto, é a nossa licença
para matar. Depois de uma longa e, por vezes, mal sucedida caçada, o bandido
finalmente preso à mesa de Dexter Morgan é para os fãs do seriado uma verdadeira
catarse. Respiramos aliviados. Ele conseguiu.
É o nosso lado monstruoso que se manifesta? É a nossa descrença na
justiça que vibra com morte dos criminosos? Ou é preciso parar de querer ver
pelo em ovo e entender que Dexter é apenas um seriado?
Dexter, o nosso espelho
invertido.
O
assassino frio e criativamente calculista, que burla a lei e engana a polícia,
é na verdade um especialista forense em padrões de dispersão de sangue, da Miami
Metro
Homicide.
O sangue é o elemento que liga o cientista ao monstro. É o disfarce dos
disfarces. Se o seu ofício é matar, camufle-se com sangue. Camuflagem é com ele
mesmo. Dexter cultiva uma onda Clark Kent, passando-se por nerd, desatento e
frágil no ambiente de trabalho. A sequência da cabeçada que deu no sargento James
Doakes (Erik King), sem ninguém ver, e da surra que fez Doakes dar nele, aos
olhos de todos, é a marca registrada do jeito Dexter de manipular as situações
e se mostrar indefeso. Mestre dos disfarces, distribui rosquinhas toda manhã para
os colegas, joga boliche uma vez por semana, casou-se com uma mulher
absolutamente normal, é eficiente no trabalho, cuida de um filho pequeno e
celebra datas comemorativas com “amigos” (O mais próximo de um amigo que ele
teve foi Miguel Prado (Jimmy Smits)?). Seu objetivo é ocultar o monstro e
parecer normal. Tirando nós, que sabemos do desprezo que ele tem por tudo isso,
ele disfarça muito bem. Dexter tentando dançar naquele encontro da turma do
colégio, para demonstrar alguma sociabilidade, é absolutamente impagável. Como
Clark Kent, tem algo de heroico em Dexter. O monstro livra a sociedade dos
criminosos e leva uma vida amorosa desastrada, tentando esconder da amada sua
identidade secreta. E nós somos os guardiões do segredo. Não sem motivos. O
sarcasmo demolidor, a ironia afiada e os diálogos internos que revelam o
verdadeiro Dexter cativaram o público. O estilo metódico e inteligente, o
instinto aguçado para farejar criminosos e a maneira como ele demonstra, com um
simples olhar, o absurdo da vida e das relações que chamamos de normal, são
alguns dos ingredientes da complexa personalidade do “nosso” serial killer que
o torna irresistível. Dexter é desconcertante. Tentando parecer normal, expõe
de maneira caricata o jogo de aparências em que vivemos. As pessoas “normais”
que o cercam parecem infinitamente mais estranhas, carentes e perturbadas que
ele. O mundo visto com os olhos e pela lógica de um serial killer sofre um
deslocamento, e o normal assume ares patológicos. Sobretudo quando nos tornamos
íntimos confidentes do serial killer. Dexter, o monstro, não apenas mata. Ele
escancara nossos valores, nossos códigos de comportamento, nossas ambições e
relações, e os faz parecerem bizarros. Ele nos mostra quem somos, não o que pensamos
que somos. É o nosso espelho invertido, ou a nossa bruxa no espelho que nos diz
que não somos a pessoa mais bela do mundo. Creio que esta é a chave para
entender a pedagogia do monstro Dexter. Além de nos jogar na cara a violência,
a sujeira do mundo e a fragilidade da justiça, ele nos derruba do altar seguro
da normalidade. Dexter desmonta nossos argumentos em defesa de um mundo
alicerçado no direito, na justiça e no império da lei. Se assim for, quem vai
nos proteger daqueles que não dão a mínima para essas coisas? É ali, no espaço
imponderável onde a justiça falha e nos expõe ao perigo, que Dexter cresce e
atua. Nós o amamos porque ele fala conosco com aquela sinceridade que nos desarma,
que nos desconstrói, que permite nos vermos de fora. Dexter se expõe para nós,
e ao se expor nos expõe. Nós guardamos o seu segredo. Ele guarda os nossos?
Paulo.
Genial! O Monstro e o Paulo ;)
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