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sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

O BOLÍVAR DE MARX: política, marxismo bolivariano e outros delírios sul-americanos.



O BOLÍVAR DE MARX: política, marxismo bolivariano e outros delírios sul-americanos.




 Meus amigos “marxistas bolivarianos” que me perdoem, mas preciso dizer: Marx destruiu Bolívar. E não entendam isso como um deboche ou uma interpelação liberal. Sigo apenas o conselho ácido do mestre Antonin Artaud de que é preciso usar Rembrandt como tábua de passar roupa. Submeter as obras primas, os heróis e as grandes causas sociais ao efeito iconoclástico do riso é, à maneira de Artaud, uma forma de testar sua profundidade.

Ao contrário de certo “Guia Politicamente Incorreto da América Latina”, minha intenção não é desacreditar Bolívar para atacar indiretamente o socialismo bolivariano. Também não é minha intenção tomar o que Marx escreveu como medida para avaliar o legado de Bolívar. Estou apenas metendo minha colher no fervilhante caldeirão latino-americano para “engrossar o caldo”. A nova fase do MERCOSUL, apimentada pelo ingresso dos marxistas bolivarianos, não pode, afinal, passar em “brancas nuvens”. Vem tempestade por aí. 

Vamos ao ponto.

A “revolução bolivariana” comandada por Hugo Chávez pode ser definida, como já o fizeram, como o “marxismo bolivariano do século XXI”. Trata-se de uma ambiciosa fusão do pensamento de Karl Marx com o ideário de Simón Bolívar. Dois gigantes do passado reunidos, sem o consentimento deles, pela causa da libertação sul americana. Não há dúvidas de que seria um arranjo teórico-político no mínimo ousado (a la Mariátegui), não fosse o anacronismo galopante e o péssimo juízo que Marx fazia de Bolívar. 

No final do século XX e no limiar do XXI o nome de Bolívar (re)apareceu no vocabulário político sul americano associado a auto-proclamada “revolução bolivariana”. Os bolivarianos se apresentam como herdeiros das lutas de independência e reivindicam o ideal de Bolívar da grande pátria de língua espanhola na América Meridional. O ideal de Bolívar, depurado, genérico e descontextualizado, virou estandarte do movimento capitaneado por Chávez. É no mínimo curioso que um movimento identificado como de esquerda e que encarna ideais socialistas busque no passado como referência simbólica um pensador e escritor liberal. Trata-se de uma apropriação seletiva e depurada do ideário de Bolívar. Não acredito que alguém ainda leve a sério a ideia de uma união latino-americana, esboçada por Bolívar na “carta da Jamaica” em 1815. Bolívar baseava-se numa vaga noção de identidade sul-americana ao escrever que: "já que tem uma só origem, uma só língua, mesmos costumes e uma só religião, devendo, por conseguinte ter um só governo que confederasse os diferentes Estados que haverão de se formar." As diferenças, ao que parece, eram muito mais fortes e atuantes do que estas semelhanças herdadas do passado colonial. Quinze anos depois, o próprio Bolívar, na famosa carta ao general Juan José Flores, abandonou a ideia.

Como não vejo aproximações possíveis entre o pensamento de Bolívar e a causa bolivariana, a explicação mais razoável, considerando para quem se direcionam os discursos bolivarianos, está no peso simbólico e no significado histórico de Bolívar para a América do Sul. A envergadura do herói e o consenso em torno de seu nome conferem legitimidade ao movimento que o reivindica. Para ser mais claro, os bolivarianos buscam no nome de Bolívar a densidade histórica e a legitimidade para emprestar à sua causa a herança do “libertador”. Impossível não lembrar das farpas e da ironia devastadora de Marx dirigidas à reedição farsesca do Dezoito Brumário no Coup d’État de Louis Bonaparte. Critico implacável do seu tempo, e leitor atento do passado, Marx se deu conta de que é justamente nos momentos “quando parecem empenhados em criar algo que jamais existiu (...) os homens conjuram em seu auxílio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestado os seus nomes (...)”. Em épocas de crises políticas que abalam o presente, ou em determinados contextos, certas referências do passado são acionadas. Passado e presente são então ligados pelos fios de um discurso atemporal, axiomático, que amarra os tempos numa cadeia eletiva de acontecimentos.


  Na Venezuela de hoje a figura e a memória de Bolívar se impõem à paisagem urbana e no cotidiano da população, do mesmo modo que a figura onipresente do “Che” em Cuba. A presença do herói é esmagadora, opressiva. Está em todos os lugares, no nome das ruas, praças, teatros e no dinheiro local. A figura de Bolívar paira vigilante sobre a Venezuela, e parte da América do Sul, a lembrar da libertação da Espanha e da fundação da Nação. Foram os historiadores liberais, venezuelanos e sul-americanos, e a oligarquia criolla venezuelana que, à moda Carlyle, elevaram a figura de Bolívar à condição de herói libertador. Cito, como exemplos, Felipe Lazarrábal e José María Torres Caicedo. 
Para outra vertente historiográfica, digamos “anti-bolivariana”, inspirada nos textos escritos por realistas pró Espanha, Bolívar era um déspota sanguinário. Salvador de Madariaga, notório anti-bolivariano espanhol, esforçando-se por desacreditar o “libertador”, acusava sua origem “de cor”. Os apologistas respondiam a altura e procuravam a todo custo branquear o herói e apagar uma possível origem africana ou indígena. Haja Bolívar para tanta necessidade de heróis e bandidos.

O culto à memória do herói era limitado aos grupos políticos mais conservadores, que historicamente dominaram o estado Venezuelano. Porém, desde o final do século XX, alcançou também as esquerdas. Bolívar converteu-se, à revelia de Marx, no patrono do socialismo do século XXI. Antes de Chávez se apropriar do legado de Bolívar, por volta de 1990, o herói era uma unanimidade nacional. Hoje, com o nome do herói associado ao socialismo bolivariano, o culto à memória sofreu grande abalo. E o que eu tenho com isso? Nada além de uma tábua de passar roupa ociosa.



 Mas é bom que a esquerda lembre que Bolívar não era filho de Abya Yala. Era filho da principal família mantuana da “Venezuela” (ver privilégio do uso de mantos ou véu como forma de distinção social), filho dileto do Iluminismo, espanhol de sangue e defensor da propriedade privada. Seu horizonte de reflexão não era a utopia coletiva e anti-individualista, mas o indivíduo, definido nos termos do liberalismo. A “Pátria Grande” de Bolívar era um ideal político fundado na razão ocidental e não nos ideais do Pachakuti.
E Marx, o que tem a ver com isso? A imagem do “libertador” que os sul-americanos cultuam, em especial os venezuelanos, em nada lembra o líder oportunista, traidor e canalha, pintado pelo pai do marxsimo. Por Pachamama! Como os caminhos desses dois homens foram se cruzar. Será que o “espírito do tempo” (Zeitgeist) escreve certo por linhas tortas? O papo está ficando metafísico demais. Vamos ao que está ao nosso alcance.

Em 1857 Karl Marx foi contratado por Charles Anderson Dana, diretor do New York Daily Tribune, para quem Marx já trabalhara como colaborador a distância, para redigir alguns verbetes sobre temas militares para a New American Cyclopaedia. Entre outras colaborações, Marx escreveu uma pequena biografia de Simón Bolívar (Aos interessados: MARX, Karl. “Simón Bolívar por Karl Marx”. Martins Fontes, 2008). O quadro que Marx pintou do libertador foi devastador. Com a ironia que lhe era peculiar apresentou Bolívar como um personagem medíocre e obscurantista. A prosa corrosiva de Marx envolveu o herói libertador numa trama política nada heroica e lhe dedicou adjetivos pouco honrosos: ambicioso, orgulhoso, covarde.


O juízo de Marx é perturbador para quem admira Bolívar, e mais ainda para quem pretende uni-los. Por isso, algum esforço já foi feito para tentar entender e explicar as razões de Marx. Sugeriu-se que Marx, que na época redigia a primeiro volume de O Capital, escrevia textos jornalísticos com rapidez, para sobreviver, o que é verdade, e que por esta razão os textos jornalísticos não podem ser considerados do mesmo modo que os textos científicos. O argumento não é ruim. Mas Marx escreveu, e depois reiterou. Quando Engels perguntou se não havia exagerado na crítica a uma figura que obteve tantas conquistas na América, Marx admitiu que saiu do tom enciclopedístico, mas que “Seria ultrapassar os limites querer apresentar como Napoleão I o mais covarde, brutal e miserável dos canalhas”. O juízo que fez de Bolívar foi ainda mais severo que o que fez de Proudhon, em “Miséria da Filosofia”. O sonho de uma grande “nação liberal”, a Pátria Grande, de Bolívar, não passava para Marx de megalomania. Vejamos o que ele escreveu: “O que Bolívar realmente almejava era erigir toda a América do Sul como uma única república federativa, tendo nele próprio seu ditador. Enquanto, dessa maneira, dava plena vazão a seus sonhos de ligar meio mundo a seu nome, o poder efetivo lhe escapou das mãos.” (p.53). O Bolívar de Marx era um sujeito “moralmente suspeito”, representante da elite criolla e beneficiário direto da independência.

Para alguns admiradores de Marx e Bolívar, o problema foram as fontes que Marx usou para escrever a biografia. O material consultado, disponível no Museu Britânico, não permitiria a Marx ter uma ideia clara de quem foi e da importância de Bolívar para as lutas de independência. Tentou-se desqualificar os autores que Marx consultou (as memórias de dois oficias ingleses engajados nas tropas patrióticas), apresentando-os como militares desertores e desafetos de Bolívar. Resulta disso tudo que Marx teria sido bastante infeliz ao redigir a biografia do libertador. (Um estudo cuidadoso das fontes consultadas por Marx para escrever sobre Bolívar seria de grande utilidade. Marx teria de fato incorporado ao seu texto os juízos emitidos pelos oficiais ingleses? Quem sabe).
Mas o fato é que Marx escreveu. Usou o que tinha a disposição e emitiu seu parecer. E Marx não era ingênuo, e menos ainda um homem de juízos levianos. Era rigoroso com as fontes e escrevia com convicção. E era assim mesmo que ele via Bolívar – um bonapartista reacionário. Lembrando a “Ideologia Alemã”, quando Marx afirmou que "A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”, Bolívar seria a farsa.

Não que essa seja também a minha visão sobre Bolívar. Mas eu não me sinto desconfortável. Não estou tentando fundir, numa fórmula mágica de libertação, o criollo liberal e rico proprietário, leitor de Rousseau, com a teoria social de Marx. O Bolívar que mais gosto é o Bolívar liberal, empenhado em soprar sobre estes rincões os ventos da liberdade, conforme a definiram Locke e Rousseau, e varrer da América Meridional a “tirania espanhola”. Bolívar não era apenas leitor de Rousseau. Seu tutor intelectual Simón Rodríguez, conhecido como o Rousseau tropical, o educou baseado no livro Emílio ou a educação, do filósofo de Genebra. O “libertador”, em certo sentido, foi a cobaia privilegiada da enorme admiração que seu mestre tinha por Rousseau. O Bolívar rousseaniano, com traços jacobinos, idealista, sonhador, romântico, é o Bolívar que admiro.  O general realista, autoritário, esse eu deixo aos condutores de rebanhos. A decepção que Bolívar teve no fim da vida foi uma espécie de amargo retorno ao romantismo. O homem de elevados ideais foi confrontado pela realidade das ambições políticas e econômicas, provou do seu veneno, e voltou a se refugiar no mundo das ideias. Suportou a guerra sobre os Andes, a doença, mas não resistiu à ganância dos homens. 

É claro que para um “marxista bolivariano” isso é um verdadeiro trauma. Contestar o pai teórico para salvar a reputação do herói libertador não é tarefa fácil. É mais fácil demonstrar que Marx estava com a cabeça voltada para a redação do Capital, e que foi levado ao erro pelas fontes suspeitas que consultou. Não são poucos os autores de esquerda que, com base nisso, sustentaram que este texto de Marx não pode ser considerado científico. A literatura marxista latino-americana se encarregou de fazer a crítica do texto de Marx, como é o caso de Miguel Ángel Uribe. Historiadores marxistas que dedicaram importantes estudos ao processo de independência ignoraram a biografia escrita por Marx, não científica, e viram em Bolívar o mais interessante dos revolucionários burgueses do começo do século XIX.

O que Marx pensaria dessa divisão arbitrária dos seus escritos (textos científicos e não científicos)?
A leitura que Che Guevara fez em 1960 das duras palavras que Marx dedicou a Bolívar foi largamente utilizada para corrigir o que seria o seu grande equívoco. Segundo Che: “Podem-se apontar em Marx, pensador e investigador das doutrinas sociais e do sistema capitalista que lhe coube viver, certas incorreções. Nós, os latino americanos, podemos, por exemplo, não concordar com sua interpretação de Bolívar... Mas os grandes homens, descobridores de verdades luminosas, vivem, apesar de suas pequenas faltas, e estas servem apenas para demonstrar-nos que são humanos". O engano de Marx se devia a sua incompreensão das especificidades da América Latina. Pode ser. Mas creio que pode ser também que Marx tenha identificado um traço de personalidade de Bolívar que foi esquecido e encoberto por camadas e camadas de mistificação, apologias e os pesados investimentos no processo de heroificação após sua morte. Lida com a mais atenção, a pequena biografia poderia, quem sabe, ajudar na desconstrução do herói. Desconstrução do herói, não de Bolívar. Certo? Desconstruir o herói significa questionar os interesses políticos que presidiram sua unção, no passado e no presente. Antes, foram as oligarquias e os liberais que o idolatraram. Hoje, são os socialistas do século XXI. Cada movimento, cada grupo político, faz de Bolívar o herói que lha convém. E Marx foi um crítico implacável da construção de heróis.

Seja como for, o mal estar, para os bolivarianos que leram Marx, é indisfarçável. O socialismo do século XXI inspira-se num homem reputado por Marx como covarde, despótico e egocêntrico. Para mim a lição é simples: quanto mais leio Marx, mais compreendo Chávez.

  • Adoraria ler uma biografia de Chávez escrita por Marx. Como isso não é possível, tomo a biografia de Bolívar como profecia. Afinal, este não é o Marx científico, não é mesmo?

O Bolívar do século XIX era pé de valsa,  Karl Marx jogava xadrez, Hugo Cezar Chávez joga bocha. E eu jogo uns contra os outros. É a minha alienação favorita.

Paulo.

Um comentário:

  1. Show! A melhor parte do post com certeza é "E eu jogo uns contra os outros." hahaha

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