A VERSÃO
ZUMBI DE ROMEU E JULIETA NUM MUNDO PÓS-APOCALÍPTICO.
Passei
na locadora para ver as novidades e me deparei com o filme “Meu Namorado é um
Zumbi” (Warm Bodies, 2013). Já tinha lido alguma coisa, mas nada que me
chamasse a atenção. Ando com um pé atrás com esta súbita popularização dos
zumbis. Parece epidemia. Virou modinha. Estão
em toda parte. Vi alguns nos protestos de rua aqui em Florianópolis. Desviei. Lugar
de zumbi é no cinema. E falando em cinema, eles chegaram a Hollywood.
Arrastando-se por décadas, mas chegaram. Os mortos-vivos saíram dos cantos
obscuros da indústria cinematográfica para o centro das atenções. Saíram das
produções B independentes com orçamentos modestos para os blockbusters milionários
alavancados por grandes estrelas hollywoodianas (Guerra Mundial Z). Foram devorados
pela indústria do cinema. O apocalipse zumbi está se convertendo na galinha dos
ovos de ouro dos grandes estúdios.
Olhei
para o filme na estante da locadora e pensei: “é mais um desses filmezinhos que
pegou carona na zumbimania e envolveu os mortos-vivos num romance adolescente
açucarado”. A atendente me viu com o filme na mão e disse: “é muito bom, tem
saído bastante”. Devolvi o filme à estante. Continuei a busca. Saí do campo de
visão da atendente. Mas o filme continuou no meu campo de visão. A capa do DVD,
vermelha, com letras pretas e brancas, e um zumbi entregando flores a uma
garota, me fisgou. Peguei o DVD para dar mais uma olhada. John Malkovich no elenco.
Aluguei. A atendente não resistiu: “alugo bastante este filme, mas, aí, não
sei, achei meio estranho...”. Balancei a cabeça e pensei: “tem chance de eu
gostar deste filme...”. Nada contra a moça, pelo contrário. Ela é uma querida,
mas nossos gostos para filmes são um pouco diferentes.
E
não é que gostei. O filme de Jonathan Levine mistura comédia romântica e narrativa zumbi, num
cenário pós-apocalíptico. E funciona. É tudo bem dosado.
Retirou-se o açúcar da comédia romântica e os clichês desnecessários dos filmes
de terror. Despretensiosamente, o filme renovou um gênero que, mesmo com o
sucesso das grades produções, parecia desgastado. Num mundo devastado e
transfigurado por uma catástrofe mundial, um grupo de sobreviventes luta pela
vida, ilhado numa cidadela improvisada cercada e protegida por muros
gigantescos. Do outro lado dos muros vivem os mortos-vivos, esfomeados e
cambaleantes. O muro separa a cidade dos mortos da cidade dos vivos, a vida da
extinção. Seguindo a tradição do gênero, os humanos estão em minoria e cercados
por multidões de mortos-vivos. Os governos, as instituições, as empresas, nada
sobreviveu à catástrofe. Um grupo de exterminadores de zumbis, comandados pelo
general Grigio (Jonh Malkovich), organização que substituiu o governo da
cidade, protege os sobreviventes e faz incursões na terra dos mortos em busca
de remédios e alimentos. De quebra, eliminam as criaturas com golpes e tiros na
cabeça. Julie (Teresa Palmer), filha do general Grigio, faz parte de um destes
grupos de jovens voluntários que se arriscam na cidade dos mortos para garantir
a sobrevivência dos vivos. Andam em grupos, como os zumbis, para se protegerem.
Numa perigosa missão o grupo de Julie se
vê encurralado no interior de uma farmácia por um bando de mortos-vivos
famintos. A garota é salva da morte por um zumbi e levada para um esconderijo
seguro. Ao invés de devorá-la, o zumbi a protege. Esta é a novidade de “Meu
Namorado é um Zumbi”: um zumbi introspectivo e consciente dos seus atos supera
a incontrolável fome e vê na moça mais do que alguns quilos de carne fresca. Fugindo
um pouco das regras do gênero, os zumbis não são cadáveres ambulantes cujo
único objetivo é comer carne humana. São divididos em duas categorias: os
esqueléticos e os cadáveres. Enquanto os esqueléticos já passaram
definitivamente para outro lado e não guardam o mais remoto traço de
humanidade, os cadáveres ainda estão numa fase de transição. Um lampejo de
humanidade ainda resiste nos seus corpos pútridos. Quando se alimentam de
cérebros humanos, sua alimentação favorita, são capazes de acionar e reviver
parte das memórias, dos sentimentos e dos pensamentos da pessoa devorada. Reviver as memórias, ainda
que dos outros, é a forma que eles têm de se sentirem vivos, experimentarem
sensações e (re)aquecerem, ainda que por breves instantes, o corpo gelado e
enrijecido. É assim que um dos zumbis se conecta com Julie. Ao comer o cérebro
do namorado da garota, o zumbi, que ainda não se desprendeu completamente da
vida passada, aciona as memórias do rapaz, reconhece a garota em perigo e
estabelece com ela um estranho vínculo.
E
assim começa uma improvável história de amor, na fronteira entre a vida e a
morte, entre o vigor do corpo e a putrefação, num mundo pós-apocalíptico. O jovem
zumbi, que luta para lembrar o próprio nome, salva Julie e a leva para sua “casa”,
no aeroporto, onde vivem os mortos-vivos. Esfrega sangue morto no rosto da
garota, para disfarçar o cheiro, e a conduz pelo reino dos mortos em segurança.
Os mortos- vivos vivem num aeroporto abandonado. É uma boa metáfora. Um
aeroporto é um lugar de partidas e chegadas, de pessoas em trânsito, que estão
vindo de algum lugar ou partindo para outro. É o lugar nenhum. Neste não-lugar, os mortos-vivos, que estão na transição
para a morte definitiva, vagam de um canto para outro arrastando
melancolicamente os restos de humanidade que ainda lhes restam. Estão à espera
de alguma coisa? Exercitam mecanicamente hábitos rotineiros, reminiscências da
outra vida, como varrer o chão e passar o detector de metais ao longo do corpo
de quem adentra o aeroporto. Só saem dali quando sentem fome.
Julie
é levada para este lugar triste e perigoso. Aos poucos vai percebendo que o seu
zumbi herói tem vestígios de humanidade. O rapaz consegue, com algum esforço,
emitir algumas palavras e diz, monossilabicamente, que ela está segura. Não recorda
do nome. Lembra apenas que começa com a letra “R”. Julie rebatiza então o seu
zumbi de “R”. O morto-vivo que se arrasta entre o aeroporto e os cantos escuros
da cidade em busca de carne humana tem agora um nome. O nome implica numa certa
identidade, que humaniza o zumbi e cria um laço entre os dois. Na presença de
Julie, “R” vai retomando traços da humanidade e reaprendendo a falar. A garota,
por outro lado, percebe que o garoto zumbi é, em certos aspectos, mais humano
que aqueles que habitam a cidadela. Enquanto os zumbis lutavam pela humanidade
perdida, os humanos se brutalizavam na luta pela sobrevivência, enfiados em uniformes
militares e armados até os dentes. Sob condições adversas, ou vivendo fora do
império das leis e do regime das instituições, ensinam os filmes sobre zumbis,
os seres humanos deixam aflorar suas paixões profundas. Os zumbis,
protagonistas pela primeira vez, estão comprimidos entre os assustadores esqueléticos
e os humanos exterminadores. Os esqueléticos são assustadores, mas não lhes
fazem mal. Representam sua inapelável condição. Os humanos são, ao mesmo tempo,
seus algozes e sua única refeição.
Narrado
em off por “R”, o filme nos conduz pelo
mundo subjetivo dos zumbis. O olhar de “R”, marcado pela nostalgia e por uma
boa dose de humor, empresta leveza a narrativa. O mundo, visto por um zumbi,
vai aos poucos se mostrando mais interessante que o mundo dos humanos, de onde
Julie vem. Embora sempre cambaleante, devorador de gente e de aspecto cadavérico
repulsivo (pelo menos à primeira vista) “R” preserva hábitos de sua vida humana
e tem um olhar crítico sobre a sua morte
cotidiana. É um zumbi reflexivo que se sente sozinho e perdido. Sente,
pensa, mas não consegue se comunicar. Está preso a um corpo morto. Tem um
amigo, seu melhor amigo. Encontram-se no bar do aeroporto. Quase se comunicam, emitem
grunhidos e por vezes alguma palavra: “hungry”...”city”....se olham e partem
para cidade em busca de comida. “R” não se orgulha de comer gente, não gosta de
machucar as pessoas, mas a fome é poderosa. Nostálgico, lembra do tempo em que
era vivo e todos podiam se comunicar e desfrutar da companhia uns dos outros.
Mas a imagem que lhe vem à mente é a de pessoas presas aos seus celulares e
computadores portáteis, ilhadas, isoladas na multidão, incapazes de se
comunicar. Estão presas aos seus smartphones, vivos-mortos, como ele ao seu
cadáver. Arrastando-se de um lado para o outro, pensa: “estamos todos mortos”, embora,
aos seus olhos, todos pareçam normais. Imagina o que as pessoas eram antes de
se tornaram apenas cadáveres: zeladores, personal trainers, filhos de empresários
etc.. Mas agora eram cadáveres repulsivos e sem sentimentos. “R” olha para a
vida, com os olhos de um morto, e se dá conta da sua beleza. O que teria
provocado a catástrofe? Uma guerra química, um vírus transmitido pelo ar, um
macaco radioativo? Não importa. Estão todos mortos mesmo.
“R”
mora num avião, coleciona livros, objetos e vinis de rock clássico. Colecionar
e se apegar as coisas parece torná-lo mais humano. Leva Julie para o seu “lar”
e coloca o vinil do Guns and Roses para ela ouvir (Patience). A garota brinca e
diz que ele é um purista. Ele tenta, com dificuldade, explicar que considera o
som do vinil superior ao som digital (um som “mais vivo”). A sensibilidade
musical e auditiva do zumbi, que escuta Bob Dylan, vai na contramão da
zumbificação digital em massa em curso. Zumbis colecionam e escutam vinis enquanto
humanos se contentam com iPods. É realmente o apocalipse! Quem é, afinal, o
zumbi?
Nesta
versão lúgubre de Romeu e Julieta (R and J), o pai de Julie é um exterminador
de zumbis. Não permitirá que a filha ande na companhia de um morto-vivo. Para
ele os zumbis são indiferentes, insensíveis e não sentem remorso (Julie rebate:
“como alguém que eu conheço, não é papai?”). O amor sobreviverá ao
apocalipse-zumbi e ao pai exterminador? É possível o amor entre seres separados
pela morte e apartados por muros? A história de amor que atravessa os tempos ganhou
uma releitura escatológica, nos vários sentidos que a palavra comporta.
“Meu
namorado é um Zumbí” é uma história de amor sem as afetações e as pieguices das
comédias românticas habituais. É um filme honesto, que mistura em doses
suportáveis terror, comédia e amor. Não é um filme de amor arrebatador,
tampouco um filme de terror de meter medo. Jonathan Levine explora e extrai o
que tem de melhor nos dois universos e ainda satiriza os clichês dos dois gêneros
cinematográficos. A narrativa em primeira pessoa, além de permitir mostrar o
mundo pelos olhos de um zumbi (inédito até então, e deliciosamente herético), facilita
a sátira. “R” é um zumbi que zomba da própria condição, da incapacidade de se
comunicar, da aparência desagradável e da lentidão com que se movimentam. Julie,
uma heroína nada frágil, rejeita o namorado autoritário e protetor, que se
parece com o pai. Encontrou afeto, cuidado e boa companhia ao lado de um zumbi
melancólico. Não se incomodem com os exageros e os excessos. É um exercício
metalinguístico. É o modo que o diretor encontrou de dizer que tudo não passa
de cinema.
A
narrativa-zumbi e o cenário de fim de mundo, embalada por um trila sonora de
peso, dão um toque diferenciado a esta história que revisita o tema da
possibilidade do amor entre seres tão distintos, que vivem em ambientes tão
diferentes. O zumbi, seguindo a melhor tradição, é o pretexto para olhar criticamente
para as relações humanas e os valores socialmente praticados.
A
trilha sonora merece destaque. Se o filme é voltado para o público adolescente,
como se diz, seria de se esperar uma trilha baseada nos ídolos que embalam a
vida da garotada. Nada disso. O que se ouve é Bob Dylan, Guns and Roses, Bruce
Springsteen, Scorpions, Roy Orbison. A sequência embalada por Pretty Woman, na
voz de Roy Orbison, é uma citação de uma famosa comédia romântica açucarada.
Julie e a amiga decidem maquiar “R” para que ele se passe por humano para poder
andar pelas ruas na companhia delas, e o fazem ao som de Pretty Woman. “R” está
morto, mas nem tanto. Faz com a cabeça que desaprova a ideia.
Depois
de “Warm Bodies” o que mais podemos esperar: zumbis com consciência de classe? Zumbis
nazistas? (opa, lembrei do filme norueguês Dead Snow, de 2009). Zumbis
vegetarianos? Zumbis socialistas? (humm, este é o tema do próximo post).
“Meu
Namorado é um Zumbi” reserva boas surpresas aos que acompanham a trajetória da
temática zumbi no cinema. Vou resistir e não vou contar o final.
Ontem
fui devolver o filme.
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A atendente: “gostou do filme?”
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Eu: “gostei”.
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Ela: “não achou meio estranho?”
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Eu: “achei”.
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Ela: “ah... tá”.
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Eu: “aham”.
O
vocabulário do zumbi “R” era mais extenso e expressivo que o nosso “diálogo” monossilábico.
Nenhum
de nós estava interessado em alongar a conversa. Ela perguntou por perguntar.
Eu respondi por responder. Ela voltou para o computador e eu voltei para o
aeroporto (ops, para a minha casa).
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