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segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

VIRGEM MARIA E A CONQUISTA DA AMÉRICA: um breve aporte teórico.


VIRGEM MARIA E A CONQUISTA DA AMÉRICA: um breve aporte teórico.






Acabei de ler um texto sobre a conquista da América e fiquei impressionado com a quantidade de jargões condenatórios que o autor empregou para demonstrar o quão violenta e sangrenta ela foi. Inspirado em Las Casas, e sem relativizar a obra do dominicano, o texto transformou a conquista num filme de terror histórico. Os espanhóis, alucinados por ouro, eram os vilões. Os indígenas, passivos e indefesos, eram as vítimas. Os esquemas binários sempre facilitam as coisas.



A conquista da América não se resume a um conjunto de atrocidades cometido pelos espanhóis. As atrocidades fazem parte, não há duvidas, mas devem ser explicadas não pelos sentidos que atribuímos hoje à violência. Se assim o fizermos estaremos condenando o passado com base nos valores do presente (Estou chovendo no molhado?). É claro que não podemos abrir mãos dos valores que praticamos. Escrever história é combinar os signos do presente com os signos do passado. Entendo que a história é uma “crítica do presente”, mas para isso devemos compreender o passado e não transforma-lo num depositário das nossas expectativas, amarguras e conveniências.



Explico-me.



(Digressão teórica).



Para entendermos os significados da conquista precisamos estar atentos sobretudo aos signos vigentes na época. É preciso voltar ao passado. À volta ao passado, neste caso a América dos séculos XV e XVI, não é um acontecimento místico, nem se realiza por passe de mágica. É uma operação técnica guiada por escolhas teóricas e metodológicas do presente. A expressão “volta ao passado” é, na verdade, um exercício de imaginação poética para compensar o drama epistemológico do historiador: a distância insuperável que nos separa do nosso objeto de investigação. O passado passou, não tem volta. Escrever sobre o passado, sobre pessoas que viveram no passado, é um gesto unidimensional em direção ao que já não existe mais. Mas não é um movimento em direção ao vazio, ao nada. O passado não está morto. Ele está e não está lá. Mesmo não existindo mais, pode ser sentido, lembrado, visto e, em alguns casos, tocado. Os vestígios do passado, de um mundo que não existe mais, invadem o presente e se projetam num tempo que lhes é estranho. Este passado residual tem uma existência paradoxal no presente. As ruínas de um antigo templo maia, por exemplo, observadas à maneira de Heidegger, são um gigante solitário e melancólico preso a um lugar que não é mais o seu. Silenciosas e majestosas, elas carregam as marcas de um tempo que já não é. As ruínas, fragmentos do passado que alcançaram o presente, são relíquias intratemporais que escaparam à fúria devoradora de Crono. Situam-se numa região intersticial do tempo. São elos entre o que foi e o que é. Por isso são mediadoras da historicidade, nossas pontes de acesso a um mundo que não é mais (Martin Heidegger. Ser e Tempo).



 Escrever sobre o que já não existe mais é recriar o que um dia foi. É trazer de volta o que estava perdido para sempre. Mas o que o historiador traz de volta não é aquilo que um dia foi. Porque aquilo que um dia foi não pode mais ser. A “ressurreição” do passado não é um acontecimento místico. É um truque literário e um gesto científico. Não o truque do mágico ou do ilusionista, mas o do escritor, que traduz e organiza as experiências do passado em uma narrativa escrita e é capaz de condensar vários séculos em um punhado de páginas. Escrever sobre o passado é, pois, um exercício poético e uma arbitrariedade científica.



A história, de acordo com a voz corrente, promove um diálogo entre os tempos. Antes de endossar este ponto de vista, é necessário precisar os termos deste diálogo. A ideia do diálogo é, por assim dizer, “imprópria”. O dito diálogo com o passado é uma conversa sem interlocutor, na qual nós fazemos as perguntas, definimos os temas e oferecemos as respostas. É aquela situação meditativa e interrogativa em que nos encontramos quando estamos diante das ruínas de um templo, a conversar com as pedras. Somos nós que estabelecemos as relações, fazemos as escolhas, os recortes e as conjecturas sobre vestígios pétreos e silenciosos. É uma prática unilateral, uma escolha arbitrária, uma decisão de um lado só. E isso porque o passado não existe mais. E não há diálogo entre termos que não coexistem. Santo Agostinho meditou sobre o tempo, no famoso capítulo XI de suas Confissões, e constatou memoravelmente a dificuldade de explicá-lo. Numa bela passagem, argumentou que “só de maneira imprópria se fala de passado, presente e futuro”: “Agora está claro e evidente para mim que o futuro e o passado não existem, e que não é exato falar de três tempos – passado, presente e futuro. Seria talvez mais justo dizer que os tempos são três, isto é, o presente dos fatos passados, o presente dos fatos presentes, o presente dos fatos futuros. E estes três tempos estão na mente e não os vejo em outro lugar. O presente do passado é a memória. O presente do presente é a visão. O presente do futuro é a espera. Se me é permitido falar assim, direi que vejo e admito três tempos, e três tempos existem. Diga-se mesmo que há três tempos: passado, presente e futuro, conforme a expressão abusiva em uso. Admito que se diga assim.  Não me importo, não me oponho nem critico tal uso, contanto que se entenda: o futuro não existe agora, nem o passado. Raramente se fala com exatidão. O mais das vezes falamos impropriamente, mas entende-se o que queremos dizer.”



A ideia de Agostinho de que passado e futuro não existem como realidades, senão como memória e expectativa da realidade presente, revela, sob certo aspecto, uma notável semelhança com a relação que estabelecemos hoje entre os tempos. O passado não existe mais e o futuro ainda não existe. Os dois existem como extensões e expressões do tempo presente. A ideia do diálogo, nestes termos, é “imprópria”, “mas entende-se o que queremos dizer.” 



Do passado, determinadas expressões de poder definem o que deve ser lembrado no futuro. Os conquistadores escreveram suas crônicas. Do presente, os historiadores, situados num certo ambiente de poder e saber, decidem sobre o que vai ser lembrado do passado. É desta tensão cambiante entre expressões de poder e saber de épocas distintas que se configura a escrita da história. A relação com o passado, assim me parece, tem duas pontas. Numa das pontas, está o historiador. Dessa perspectiva, a do presente, a escrita da história é sempre o exercício de um poder.  O poder de dizer o passado diante do outro que é só silêncio.  E dizer o passado é retirá-lo do esquecimento, é reintegrá-lo à ordem da memória. O que é lembrado e o que é esquecido, nesta recriação política do passado, é uma escolha do historiador. Recriamos experiências de vida de pessoas do passado e as desnudamos aos olhos de escrutínio do presente. Estabelecemos conjecturas sobre suas vidas, ações e relações que elas nem sonharam. Muitas das ideias que levantamos soariam, certamente, muito estranhas às personagens do passado. Elas estavam envolvidas numa teia de acontecimentos que lhes escapava. Séculos depois, esta teia se torna visível ao historiador em toda sua espessura, alcance e conexões (O léxico simplificador, como diria Alfredo Bosi, e os conceitos – conquistador e índio - que empregamos para descrever ou classificar homens e mulheres do passado, devoram, em parte, as suas subjetividades e intersubjetividades). Mas não é exatamente isso o que se espera de um “diálogo” entre mundos diferentes? É esta troca entre as experiências do passado e sua reconstrução histórica no presente que nos permite confrontarmos nossas próprias experiências. Se falássemos a mesma língua e vivêssemos os mesmo valores, qual a razão de estudá-los?  Se trocarmos signos de vida é pelo desejo de conhecimento do outro, e de nós mesmos. Aprender com o passado é auscultá-lo em toda a sua estranheza, e não acomodá-lo às nossas certezas. Confrontá-lo com o presente é ressaltar sua singularidade, e a nossa. É apreender a mudança, e aprender a conviver com ela.



Presente e passado, então, encontram-se pela mão do historiador. Do lado de cá, fazemos nossas escolhas, mas o acesso que temos ao passado só nos é possível por meio daquilo que o lado de lá nos permitiu ler. O poder de transmitir ao futuro aquilo que será lembrado é o poder que o passado tem de impor uma imagem de si ao presente. Cortez sabia o que estava fazendo ao escrever cinco cartas ao rei de Espanha. Esta angulação nos permite relativizar a ideia de que o passado é simplesmente uma invenção do presente. Em certo sentido o é, mas esta invenção é limitada por aquilo que determinadas relações de força e poder de outras épocas autorizaram chegasse até o presente. O presente inventa o passado até onde o passado o autoriza.



(Fim da digressão teórica).



Para evitarmos uma invenção unilateral do passado e transformarmos a conquista da América numa projeção das nossas demandas, situemos o tema no ambiente histórico devido. O primeiro passo a ser dado é no sentido de desfazer algumas simplificações.



Comecemos pelo anátema que a palavra conquista carrega. As palavras são signos sociais sensíveis às transformações do mundo. Pela densidade social que as constituem e por serem mediadoras fundamentais das relações humanas, são indicadores privilegiados das mudanças. Por acompanharem e expressarem essas mudanças, que também são mudanças de ordem semântica e da linguagem, não são signos fixos, não carregam significados eternos. As palavras possuem historicidades deslizantes, são socialmente e historicamente situadas. Algumas palavras, presas a determinadas experiências, carregam uma herança histórica e sociológica tão negativa e definitiva que dificulta o exame dos seus significados no passado. É como se elas mantivessem desde sempre o mesmo sentido, certa pureza original, e atravessassem os séculos imunes às transformações do mundo. E este sentido, muitas vezes, é fixado no presente e projetado para outras épocas, desconsiderando os significados diferentes que as palavras poderiam ter assumido no passado. É isso o que acontece frequentemente com a palavra conquista, quando utilizada para se referir as primeiras décadas de ocupação europeia da América. A palavra é empregada para descrever os processos turbulentos de tomada das terras dos indígenas, a ocupação territorial, os massacres, extermínios, enfim, a ação militar traumática que antecedeu a colonização das novas terras. Não há dúvidas de que a palavra conquista traduz com precisão isso tudo. Mas também parece não haver dúvidas de que ela possuía um significado mais amplo, envolvendo também a ação militar, mas não se limitando a ela. Paralelo às conquistas militares, e inseparável delas, desdobrou-se outra conquista, a das almas. Denominada de conquista espiritual, e empreendida por padres e missionários de diferentes ordens religiosas, teria sido responsável pela destruição das religiões das populações indígenas e lhes imposto o catolicismo, com o apoio das armas. O dilema “entre a cruz e espada” define bem o consórcio das duas conquistas. Ruggiero Romano expressou de forma contundente este ponto de vista, num livro publicado em 1972 (Mecanismos da conquista colonial), caracterizando a conquista com as palavras: violência, injustiça e hipocrisia. Os versos de Neruda – que acusam a cruz e a espada pela destruição da “familla salvage” - são o ponto de partida para “perceber por que elementos foi possível a conquista da “mais rica e bela parte do mundo” (Michel de Montaigne).  A denúncia implacável da conquista, extraída dos versos de Pablo Neruda, combinada com a visão humanista e idílica de Michel de Montaigne sobre a América, constituem a fórmula irresistível de Ruggiero Romano para caracterizar a conquista. A espada representa o aspecto militar, sangrento e belicoso da conquista, responsável pelas vitórias materiais e pela destruição física do Novo Mundo e seus habitantes. Embora contundente, a espada se mostrou insuficiente para submeter os povos indígenas, e os conquistadores logo compreenderam que: “a margem de segurança que lhes assegurava a técnica militar, se tornava muito pequena e que teria sido muito fácil alterar um equilíbrio que, apesar das aparências, permaneceu frágil durante muito tempo. A conquista efetuada pelas armas devia, portanto, ser mantida por outros meios” (Ruggiero Romano).


           

Por outros meios leia-se a cruz. O gesto inaugural de Colombo ao tomar posse da terra, destaca Romano, foi fincar uma cruz. Começava, com este gesto, a conquista espiritual das Américas. Mas foi com a evangelização que a cruz desempenhou realmente o seu papel. Contrariando o seu objetivo confesso – converter os índios – a obra de evangelização transformou-se num complemento perfeitamente simétrico à espada. “Juntas, elas constituirão as preliminares da conquista e da dominação: a desestruturação de todos os sistemas – político, moral, cultural, religioso – que regiam as massas indígenas da América.” Por tudo isso, conclui Romano, a evangelização foi negativa, foi uma forma complementar de agressão, pois provocou a desintegração cultural e espiritual das culturas locais.



Evidentemente não se trata de negar nem minimizar a violência e os efeitos devastadores da conquista sobre as populações americanas. O esforço aqui é no sentido de tentar restituir à palavra os significados que o século XV, XVI e XVII, ou os sujeitos envolvidos na conquista da América, atribuíam a ela. Isto não tem absolutamente nada a ver com justificar a conquista a partir da moral vigente naqueles tempos. Sabemos que certas palavras, tão poderosas num determinado contexto, perdem a força e o significado quando isoladas e extraídas da rede social que a constituía. E perder de vista a significação de uma palavra é perder a própria palavra, pois “o que faz da palavra uma palavra é sua significação” (Mikhail Bakhtin. Marxismo e filosofia da linguagem).



           

A palavra conquista evoca hoje, não sem razão, todas as atrocidades, injustiças e desmandos cometidos pelos espanhóis na América. Essa talvez tenha sido a mais profunda herança lascasiana (Las Casas) da conquista, a de um paraíso destruído pela ganância desmedida e brutal dos espanhóis. A posteridade reteve, em linhas gerais, essa imagem daqueles tempos. Mas como todo tema polêmico implica luzes e sombras, a conquista da América polarizou o debate desde o século XVI até os nossos dias. De um lado, a exaltação heroica da conquista, de outro, o anátema aos criminosos.

           

Uma espessa crosta ideológica envolveu a palavra conquista nestes últimos cinco séculos. Chegar aos sentidos da palavra, encobertos por camadas e camadas de discursos, apologéticos ou condenatórios, e que pressupõem uma continuidade, requer uma cuidadosa remoção destes discursos sobrepostos. Uma leitura atenta dos textos deixados pelos diferentes sujeitos envolvidos pode ser um bom caminho para esboçar uma arqueologia dos significados da conquista.



Tentar compreender historicamente os gestos e as ações dos conquistadores não pode ser confundido com aceitação, conivência ou benevolência em relação às atrocidades, injustiças e toda sorte de crueldades praticadas. Compreender – apreender com – é demarcar um espaço de reflexão sobre as ações e as motivações dos conquistadores com vistas a situá-las nos limites de sua própria historicidade. É desta maneira, examinando cada época pelas suas próprias referências, que vamos entender o que torna aquela experiência inédita, singular, nunca justificável. É, pois, este procedimento que torna possível aprender o sentido das mudanças. Compreender as ações do “outro” do passado não é buscar a absolvição ou a condenação, é diferenciá-las das “nossas”. Julgar o “outro” do passado com os valores praticados no presente é criar um horizonte comum de expectativas que não distingue, que uniformiza e, portanto, mata a singularidade das experiências históricas no tempo. Se retornarmos ao passado, conforme já explicitado, não é para encontrarmos o mesmo. Não retornamos ao passado para dele nos aproximarmos em busca de semelhanças e lugares de conforto, mas para nos afastarmos e delimitarmos a nossa diferença. Compreender os modos de atuação dos conquistadores com as populações indígenas da América, pelo seu próprio conjunto de valores e códigos morais é, ao mesmo tempo, criar novos modos de problematização e julgamento dos nossos modos de percepção da diferença. O julgamento, neste caso, entendido como um olhar crítico sobre nossas condutas e valores praticados, é visto como uma reflexão crítica sincrônica, e não como um deslocamento anacrônico. Cada época julga a si própria pelo que lhe cabe. A história fornece os parâmetros.



A devoção dos conquistadores e o “excessivo” apego aos santos e a Virgem Maria é uma boa maneira de compreender os significados da conquista nos séculos XV e XVI. Uma das imagens mais celebradas e evocadas ao longo da conquista da América foi a de Nossa Senhora. Do México ao Paraguai, a imagem da Virgem, sob as mais diversas invocações, deu suporte espiritual tanto à conquista militar quanto à religiosa. Desde o descobrimento uma profusão de imagens desembarcou e percorreu as Américas ao lado de missionários e conquistadores. Se esses a empunhavam como escudo de proteção e bandeira da fé que os impelia, àqueles solicitavam sua graça para amolecer os corações gentios e convertê-los à fé cristã. O culto à Virgem no Novo Mundo, no entanto, não se limitou aos conquistadores que chegavam do além-mar. Na medida em que a conversão avançava, Nossa Senhora era recebida com entusiasmo e devoção entre os indígenas. Não demorou muito para ela se tornar uma santa milagrosa entre esses povos e protegê-los contra as investidas dos conquistadores.            Essa duplicidade da Virgem na América, ora correndo em socorro dos conquistadores ora se derramando em auxílio aos indígenas, nos possibilita compreender os diferentes significados da conquista. Nos séculos XV, XVI e XVII, com ligeiras variações, a ideia de uma conquista imposta pelas armas, em busca de riquezas, era inseparável de um significado religioso característico daquele momento. Considerar a conquista como uma variante puramente econômica, a insaciável busca pelo ouro, e esquecer a devoção religiosa dos conquistadores, é cair num reducionismo caricatural. Rubén Vargas Ugarte, num estudo sobre o culto à Virgem na Ibero - América, já havia sublinhado, não sem algum desconforto, que: “aunque es forzoso reconocer que muchos de los conquistadores españoles no estuvieron exentos de graves defectos, es incontestable que casi todos eran hombres de arraigada fe y además fervientes devotos de la Virgen María.”



A ambígua e explosiva combinação da devoção religiosa com a devoção pelo ouro e a truculência militar, foi a marca registrada dos conquistadores e o fomento indispensável às suas vitórias. A religião fornecia o álibi perfeito e a justificativa moral para a conquista territorial, o saque dos tesouros e a guerra contra as populações indígenas. Era como se pudessem cometer o pecado e não alimentar o sentimento de culpa e remorso. É nesta trama de interesses e devoções que se foi moldando uma semântica da conquista. O que o nosso tempo definiu como condenável e moralmente inaceitável, parecia ser desejável e moralmente justificável naqueles tempos. No ambiente ambíguo da conquista foi possível, por exemplo, associar as vitórias militares e religiosas à imagem da Virgem Maria. Na tradição cristã católica, e especialmente na espanhola, a imagem da Virgem foi presença constante ao lado dos missionários e conquistadores como escudo protetor e estandarte da fé. Foi assim na reconquista com a Virgem de Covadonga, na conquista do México com Nossa Senhora dos Remédios e Nossa Senhora de Loreto na conquista jesuítica do noroeste da nova Espanha. Uma leitura atenta da documentação, voltada para o apelo religioso que envolveu a conquista da América, mostra a indissolubilidade entre o empreendimento colonial e os símbolos religiosos. A conquista revestiu-se de uma simbologia composta de cruzes, pinturas, relíquias, orações, rosários, evocações, missas, celebrações das datas santas, reveladora da fé e devoção daqueles homens. A cada passo, a cada gesto, seguia-se um jogo ritual de invocações a Deus, a Cristo, a Virgem ou o santo de devoção, rogando proteção ou agradecendo a graça da vitória.



A presença da Virgem Maria, no entanto, causa certa estranheza à sensibilidade contemporânea, para a qual a conquista, em geral, é associada à destruição das culturas indígenas. Esta aparente desconexão entre a violência da conquista e a imagem de proteção e conforto trazidos por Nossa Senhora, me leva a formular alguns questionamentos: por quais razões o símbolo máximo da piedade católica foi associado à conquista das populações indígenas? Que relações havia entre o sentido corrente de conquista e a presença da Virgem na América? Se Nossa Senhora, que na tradição cristã ocidental representa a figura materna bondosa e humilde, foi identificada com as conquistas militares e religiosas, é porque a concepção de conquista tinha naquele momento um sentido distinto daquele retido e consagrado pela posteridade. Creio que este é um bom caminho.



O diálogo com o passado pressupõe estar aberto as suas estranhezas. Acomodá-lo as nossas certezas e submetê-lo ao “tribunal da história” não é compreendê-lo, mas domesticá-lo.







domingo, 13 de janeiro de 2013

A MPB HEROICA E O LINCHAMENTO SELETIVO: querem transformar Roberto Carlos no Elia Kazan da ditadura brasileira.



A MPB HEROICA E O LINCHAMENTO SELETIVO: querem transformar Roberto Carlos no Elia Kazan da ditadura brasileira.


A ascensão política de um partido de esquerda e de governos de esquerda no Brasil, cujos nomes mais importantes enfrentaram, em diferentes contextos, a ditadura militar, estimulou o interesse por uma investigação critica do regime militar, mas também abriu brechas para o oportunismo. As indenizações milionárias pagas a Ziraldo e Jaguar pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça como forma de reparar os prejuízos sofridos pela perseguição política durante a ditadura foram escandalosas. Por outro lado, a divulgação de documentos do período militar e o desejo de revisar o passado são as boas novas. Mas é preciso tomar cuidado para não submeter a necessária investigação do passado aos caprichos daqueles que veem nisso uma oportunidade para tirar vantagens políticas.

Estão circulando pelas redes sociais alguns documentos da ditadura militar que supostamente confirmam a colaboração de artistas como Roberto Carlos com o regime. Minha primeira reação foi de satisfação em relação à divulgação de nova documentação. Cada novo documento tornado público expõe uma nova faceta do período. Aqueles que desejam um país decente, democrático e em dia com sua memória, imagino, querem ver aqueles anos sombrios passados a limpo. A segunda reação foi de preocupação. Sabemos que documentos oficiais de um período como este devem ser examinados com cautela. A cautela deve ser redobrada quando o que está em jogo é a reputação alheia. A facilidade com que estas notícias se espalham na internet é impressionante. Os julgamentos vão surgindo na mesma velocidade. Vários blogs, sites e portais divulgaram os documentos referidos e imediatamente os tomaram como expressão da verdade. Antes de emitir qualquer sentença, favorável ou não aos artistas citados, devemos ter em mente que os documentos em questão não são transparentes. São opacos, lacunares e expressam os pontos de vista e as táticas dos militares. É preciso suspeitar dos documentos e cruzá-los com outras fontes. Caetano Veloso, por exemplo, num depoimento a Geneton Moraes Neto, disse que quando voltou ao Brasil para visitar a família foi levado para um lugar secreto e pressionado a escrever uma música ufanista sobre a transamazônica. Para pressioná-lo diziam que outros artistas como Wilson Simonal já haviam confirmado participação. Não era verdade. Caetano se recusou a colaborar. O depoimento nos ajuda a entender os métodos empregados pelos militares para pressionar e induzir o meio artístico. E se Caetano caísse na armadilha dos militares e saísse dali alardeando o colaboracionismo de Simonal? Esse papel coube ao Pasquim.

Conhecemos bem a versão heroica da MPB que resistiu a ditadura militar (A sigla MPB foi criada em 1965, apostando na tradição que o samba carregava e na modernidade trazida pela bossa nova). Durante a ditadura, na época da Anistia e no decorrer da década de 1980, consolidou-se o que poderíamos chamar de “discurso da resistência”, que construiu uma versão histórica legendária, e muito eficiente, da oposição ao regime militar. Entre outras manifestações artísticas a música recebeu destaque especial. Algumas canções se tornaram emblemáticas e passaram a traduzir o ideal de engajamento político dos artistas. As canções mais lembradas são: “Carcará” (1965), “Alegria, alegria” (1967), “Roda Viva” e “Pra não dizer que não falei das flores” (1968). Chico Buarque e Geraldo Vandré foram transformados em símbolos da resistência. Roberto Carlos, Simonal, Agnaldo Timóteo, Clara Nunes, Wanderley Cardoso e Rosemary, foram associados à ditadura e transformados nos Judas da MPB. Vandré nunca lidou bem com isso. Afastou-se de tudo, esquivou-se do rotulo de compositor de canções de protesto que lhe impuseram e rejeita categoricamente a condição de símbolo de uma época. A primeira e única aparição de Vandré, em décadas, foi numa entrevista a Geneton Moraes Neto em setembro de 2010. Quem esperava o Vandré idealizado pelo discurso da resistência decepcionou-se. O homem foi absolutamente vago, dosava as palavras com receio, talvez, de que elas se voltassem contra ele, vestia uma camisa com o símbolo da aeronáutica, exibia um cartão da instituição e usava um boné verde oliva. No meio da entrevista recitou versos de uma canção composta para exaltar a aeronáutica, sugestivamente intitulada FABIANA. Visivelmente, o compositor que se esforça para desfazer a imagem do passado, estava sob tutela da instituição. A entrevista foi realizada no Clube da Aeronáutica no Rio de Janeiro. Vandré era a desconstrução em pessoa do discurso da resistência. O ideal do compositor engajado se desfez. FABIANA é o contraponto perfeito para “Para não dizer que não falei das flores”.

Apesar de certos exageros e idealizações, personalidades da MPB encontraram nas canções um meio de protestar e fazer corajosa oposição ao regime. A história destes artistas é bem conhecida e celebrada pelo discurso da resistência (A imprensa liberal brasileira, por outros caminhos, também contribuiu para a fixação do nome de alguns artistas como símbolos da luta contra a ditadura. A revista Veja é o caso mais conhecido. Ver a matéria “Eles dizem ‘não’ mas todo mundo aplaude”, publicada na revista em novembro de 1968. O texto começa assim: “Toda música é de protesto. Esta é a tese de Geraldo Vandré, autor de "Caminhando". A matéria esta disponível em versão digitalizada. Vale apena conferir). Havia, no entanto, artistas que ou preferiram silenciar e não tomar partido, e artistas como Wilson Simonal e Carlos Imperial, que desdenhavam dos engajados e adotavam certo cinismo. A história destes artistas não é tão bem conhecida. Foi escrita, em parte, por quem desprezava suas posturas. O caso de Simonal foi extremo. O cantor trilhava um caminho que não agradava parte do meio artístico. Criticava o intelectualismo e o elitismo crescentes da MPB (que agradava apenas aos intelectuais a aos universitários, não ao “povo”), e apostava no lado mais comercial da música. Junto com Carlos Imperial esteve à frente do movimento conhecido como “pilantragem”, que ironizava o lado “intelectualóide” da MPB e investia no lado mercadológico da música. A “pilantragem” era uma grande jogada de marketing, mas a crítica não entendeu assim e repudiou ruidosamente o movimento. Antes de virar o “dedo-duro da ditadura”, Simonal conquistou no meio artístico a fama de arrogante e antipático. A fama de dedo-duro surgiu em 1971 por conta de um episódio nebuloso de desvio de dinheiro pelo contador de sua empresa, a “Simonal Comunicações”, que supostamente foi sequestrado por dois policiais amigos do cantor e ligados ao DOPS. O caso, envolvendo depoimentos contraditórios e suspeitas de falsificações, nunca foi suficientemente explicado, mas a fama de dedo-duro e de homem ligado ao regime se espalhou. O pasquim comprou a briga e desferiu pesados e insistentes  golpes contra Simonal. Era o começo do fim da carreira  do cantor. (Recomendo a leitura do texto: “Simonal, ditadura e memória: do cara que todo mundo queria ser ao bode expiatório”, de Gustavo Alves Alonso Ferreira).



A matriz discursiva da resistência tomou para a si a tarefa de celebrar os ícones da MPB que ergueram seu canto contra a ditadura e de “entregar” aqueles artistas que no seu entendimento colaboraram com os militares. Roberto Carlos e Wilson Simonal têm sido os alvos preferências desta turma.

Os profissionais da difamação de hoje querem fazer com Roberto Carlos o mesmo que os seus ancestrais fizeram com Wilson Simonal? Estão fazendo um linchamento moral do cantor baseado em informações bastante vagas extraídas de documentos oficiais do Centro de Informações do Exército. Porque tanta pressa para julgar? Seria Roberto um atalho para atingir a Rede Globo? Antes de lincharem Roberto Carlos, lembrem-se da música que fez em homenagem ao Caetano Veloso, que estava exilado em Londres (“Debaixo dos caracóis dos teus cabelos...”). A canção é bem mais concreta do que as informações disponíveis nos documentos que circulam na internet. Antes de julgar o sujeito, procurem saber mais sobre o seu suposto envolvimento com a ditadura. Uma coisa é um documento oficial que aponta nomes de artistas que na visão dos militares eram próximos do regime, coisa bem diferente é uma efetiva colaboração destes artistas com a ditadura. Se estes artistas eram ou não colaboradores, não saberia dizer ao certo. Li os documentos e não consigo, com base no que está escrito, ligar categoricamente os artistas ao regime. As informações são vagas e os documentos escorregadios. 

Não se deixem instrumentalizar, especialmente em tempos de “Comissões da Verdade” (Não lembra 1984?). Viva a “Comissão da Verdade” – apesar do nome -, mas temos que tomar cuidado com a euforia ideológica e a ânsia de julgar que a acompanha. Pode-se por tudo a perder e, ao invés de investigar seria e sobriamente o passado e esclarecer os crimes cometidos pela ditadura, corre-se o risco de embaralhá-lo ainda mais. 

Investiguem uma notícia antes de replicá-la. Estamos lidando com a reputação alheia.

Dois pontos chamam a minha atenção:

1.      As denúncias de colaboracionismo não vêm de hoje. Há três décadas que tentam comprometer, sem sucesso, Roberto Carlos com a ditadura. O ar de novidade que a notícia assume agora, já vem com cheiro de coisa velha. Nos anos 80 discuti muito este assunto com meus amigos e colegas mais de esquerda. Eu gostava, e gosto do Roberto, e alguns deles, baseados em boatos, o associavam a ditadura. Lembro até de um programa de TV que simulava um julgamento. Era o programa “Quem tem medo da verdade”, apresentado pelo Carlos Manga, exibido em 1968 na TV Record. A ideia do programa era convidar celebridades para participar de um julgamento simulado conduzido por personalidades do meio artístico (que tema para uma pesquisa, meus colegas historiadores!). Num dos programas Roberto era o réu e Sílvio Santos o seu defensor. Sílvio era hábil na defesa e insistia na tecla de que o cantor não havia contaminado a juventude com músicas subversivas. O vídeo é raro, mas pode ser visto no youtube. Roberto parecia estar ali sem saber muito bem por que. Parecia anestesiado. Sílvio Santos não. O apresentador era um ventríloquo do regime militar e desfiava arrogantemente o rosário de jargões do vocabulário ultra direitista da época. Sem dúvida o prestígio de Roberto Carlos estava sendo usado pelos militares. Mas nunca me pareceu que ele se prestava consciente e decididamente para este fim. Pode até ter sido um inocente útil, mas não um colaborador que sabia o que estava fazendo e colocava sua arte a serviço da ditadura.

2.      O caráter seletivo das denúncias. Porque os críticos de plantão não postaram comentários e fotinhos malandras com “dizeres espertos” quando surgiram as denúncias de que Mino Carta e Paulo Henrique Amorin escreviam textos apologéticos ao regime quando trabalhavam para a revista Veja? Porque hoje eles são governistas? Novidade. Parece que as celebridades escolhidas para o linchamento público são aquelas que de alguma maneira estão ligadas as ditas forças conservadoras. Roberto Carlos é a atração de fim de ano da Globo. É isso então? A ideia é atirar no padre para acertar a igreja? Eu até entendo as razões para perseguirem o Simonal. Afinal ele debochava e desdenhava da MPB e da esquerda. Roberto, ao contrário de Simonal, era na dele, não se metia nestes assuntos.

Será que querem transformar Roberto Carlos no Elia Kazan do Brasil? Mesmo no caso do diretor de “A Streetcar Named Desire”, que entregou alguns colegas “comunistas” para a Comissão de Assuntos Anti-americanos do Congresso, as controvérsias são acaloradas. Em 1999, quando recebeu um oscar pelo conjunto da obra, atores como Ed Harris, Holly Hunter e Nick Nolte recusaram-se a se levantar e aplaudi-lo, e Sean Penn e Richard Dreyfuss declararam publicamente que não concordavam com a homenagem. Martin Scorsese ficou do lado do velho cineasta, o levou ao palco amparando-o com o braço e em 2010 dedicou-lhe um documentário intitulado “A Letter to Elia”. Não pretendo ser o Scorsese de Roberto Carlos. Apenas incomodo-me com o fato de que muita gente parece querer ser, apressadamente, o Sean Penn do “rei”. É um macarthismo às avessas.

Roberto e Simonal colaboraram com a ditadura? Não sei. E se colaboraram, colaboraram como? Entregando colegas do meio artístico? Não acredito. O que eu sei é que os documentos existentes não confirmam nada. Se um dia aparecer um documento contundente e inquestionável, eu baixo a guarda. Enquanto isso não acontecer, eu fico com a sensibilidade e demonstração de carinho da canção dedicada ao irmão da Betânia. O depoimento de Caetano no DVD “Circuladô ao Vivo” sobre a visita que recebeu de Roberto Carlos em Londres é um exemplo da solidariedade de Roberto com colegas do meio artístico perseguidos pelo regime. Talvez Roberto não fosse um cara politizado, talvez fosse um tanto inocente, mas daí a colaborador da ditadura vai uma boa diferença. Sei que a noção de colaboração é ampla e implica numa série de posturas, mas ainda assim é preciso ter cuidado.

Alguns autores afirmam que a música de Roberto foi a trilha perfeita para a ditadura. O moço bem comportado teria composto a música permitida daqueles anos. Isso já implicaria numa modalidade de colaboração. Não vejo assim. Este tipo de argumento amarra arbitrária e definitivamente um estilo musical a um contexto, como se houvesse uma homologra direta entre a música e a sociedade. As relações entre ambas são íntimas, mas ver a música como um retrato da realidade é empobrecedor. Não se leva em conta a complexidade dos circuitos que ligam a música ao mundo social, não se considera a linguagem musical nem os encontros de estilos e tradições musicais que perpassam uma canção ou um movimento musical. Decreta-se uma homologia simplista e mecânica entre a canção e o contexto histórico (como se este existisse de maneira independente) e constrói-se a imagem reducionista da jovem guarda como a trilha musical da ditadura. Como este tipo de abordagem opera no registro simples do preto e branco, ou do contra ou a favor, as canções que de alguma forma levantaram algum tipo de questionamento à ditadura são classificadas como canções de protesto. É igualmente simplista. Ver as canções de Chico Buarque por este prisma redutor é deixar de fora os elementos – poéticos, musicais e estéticos – mais importantes para articular historicamente sua arte. Chico estava interessado em política e assinou várias canções que poderíamos, sem erro, definir como “de protesto”. Mas isso não é tudo, e talvez não seja o dado mais importante.

Roberto Carlos e o movimento jovem guarda, diferente de alguns nomes da MPB, não estavam interessados em política. Era um direito deles. Mas uma parcela da intelectualidade não pensa assim. O silêncio de Roberto Carlos expressaria bem mais do que o simples desinteresse pala política. O raciocínio é o seguinte: o Brasil sofria debaixo das botas dos militares e jovens eram caçados e torturados. E Roberto, o que fazia? Gravava músicas ufanistas, canções de amor e hinos religiosos como Jesus Cristo. Imperdoável. Um crítico da conduta do cantor escreveu no portal Carta Maior em 2005 que a canção gospel “Jesus Cristo” era para “corações ocos”, pois não tinha a “fúria dos negros norte-americanos”. Deixa ver se eu entendi. Música gospel tem que ter fúria, tem que envolver alguma forma de protesto, por que nos EUA era assim? É isso? Roberto deveria ter composto um hino gospel de protesto? Entendi.

A convergência da música de Roberto Carlos com as exigências e expectativas dos governos militares só existe na hiper-hermenêutica de alguns iluminados que consegue decifrar nas canções de amor e nas manifestações de fé do cantor um código secreto que as vincula à ideologia do regime militar. Os acusadores devem ter a disposição super lentes de aumento que permitem ver além do que está escrito nos documentos. O uso de lentes hermenêuticas potentes como estas, apontadas seletivamente para o passado, resultam em hiper-interpretações que recriam uma realidade, ou uma hiper realidade, feita sob encomenda para sustentar as batalhas do e pelo presente. O prefixo hiper aqui empregado, livremente inspirado em Lipovetsky, aponta para a cultura do excesso, do que vai além. Neste caso, além da realidade. Refiro-me a construção de uma realidade passada sob medida para atender as demandas políticas do presente.

Na versão heroica da história que a MPB construiu para si mesma, Roberto Carlos e Simonal cumpriram e cumprem o papel de bodes expiatórios perfeitos. Simonal, que zombava dos engajados, morreu, e tentaram destruir sua alma (Nada contra os engajados, pelo contrário. Mas engajados que transformam suas lutas e crenças numa forma de julgamento da conduta alheia, não). Roberto esta vivo, e sua imagem está associada à Rede Globo. Conveniente, não? Os vestígios documentais nos quais se baseiam os acusadores são frágeis e insubstanciais. Neste caso, mesmo que eu desconfiasse do cantor, não o acusaria de colaboracionismo. Seria leviano de minha parte. Entendam-me bem. Não estou me portando como advogado do “rei”. “Esse cara não sou Eu”. Estou apenas manifestando indignação em relação à facilidade com que se julga e condena alguém política e moralmente.

Por trás das acusações do suposto colaboracionismo de Roberto Carlos está a interminável luta pela memória do passado. Sabemos que a memória sobre a ditadura foi construída por aqueles que foram derrotados em 1964 e em 1968. Supõe-se então que Roberto Carlos estivesse do lado dos vencedores? Os próprios militares dizem que mesmo sendo vitoriosos em 1964, foram derrotados em relação à construção da memória histórica. Foram derrotados nas batalhas do presente pela imposição de uma imagem a cerca do passado. A “Comissão da Verdade” é mais um capítulo desta batalha. Daniel Aarão Reis, num estudo importante sobre o tema, sugeriu que as esquerdas derrotadas politicamente conseguiram impor uma memória vitimizadora da sociedade perante a ditadura militar. Ao mesmo tempo impuseram uma memória heroica e redentora de si mesma. Contudo, essa versão vitimizadora e redentora não consegue explicar, por exemplo, o porquê de a ditadura ter se sustentado por tanto tempo. No imediato pós 1964 as esquerdas, empenhadas em registrar a memória daqueles tempos, construíram para si, segundo Aarão, a ideia de que foram surpreendidas pelo golpe. Esqueceram, no entanto, que o golpe também era uma possibilidade para as esquerdas, que não tinham nenhum compromisso com a democracia. Direita e esquerda tinham a expectativa do golpe no seu horizonte político. Ao mesmo tempo em que as esquerdas consolidavam a ideia da resistência à ditadura, especialmente com a emergência da luta armada, passavam a defender o retorno da democracia. Não que tivessem convicções democráticas. 

A memória da resistência elegeu seus artistas e suas canções favoritas. Ao mesmo tempo que se consolidava uma narrativa heroica da MPB, espécie de trilha sonora da resistência, construía-se uma versão em negativo dos artistas que não comungavam dos mesmos valores ou que não estavam do mesmo lado (Não que estivessem necessariamente do outro). Chamar Roberto Carlos de “o cantor da ditadura” porque nadava a favor da corrente ou não remava contra a maré é arbitrário. Fosse assim deveria ser chamado também de o cantor da era Sarney, da era Collor, da era FHC e da era Lula. Em 1985 compôs “Verde e amarelo” em homenagem a Nova República. Deveria por isso ser chamado de “o cantor da redemocratização”? Para além dos apelidos desqualificadores, Roberto Carlos é um cantor popular, escolhido pelo gosto popular. Sant'Anna foi quem melhor o definiu: "Ele é o lado kitsch dos ouvintes mais sofisticados e é o lado mais sofisticado dos ouvintes mais kitsch. É uma espécie de herói popular". 

Isso talvez incomode muita gente que preferiria que o “povo” cultuasse figuras como Lamarca e Marighella. Ademais, artistas populares nunca foram bem vistos pelos guardiões do “bom gosto”. 

Eu fico do lado do Caetano, que chama Roberto Carlos de “rei”, sem se incomodar com a patrulha estética e ideológica da MPB, e escreveu uma canção em homenagem a Marighella, indiferente a recente onda de incriminação de figuras da esquerda que pegaram em armas para enfrentar a ditadura.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

SOBRE METÁFORAS, CONCEITOS E CONSTRUÇÃO TEXTUAL.





SOBRE METÁFORAS, CONCEITOS E CONSTRUÇÃO TEXTUAL.









Departure of the winged ship.
(Vladimir Kush)





Uso metáforas com bastante frequência nos meus textos. Não o faço apenas para embelezar a narrativa. O recurso à metáfora tem ancoragem num belíssimo texto de Nietzsche, de 1873 (“Sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral”). Com a originalidade que lhe é peculiar, e cara, Nietzsche opõe a flexibilidade poética das metáforas à primazia atribuída aos conceitos. O conceito, por definição, tende para a regularidade, a uniformização e a estabilidade dos sentidos. O conceito de folha, usado como exemplo por Nietzsche, nos dá uma boa ideia da “regularidade rígida” que preside a formação dos conceitos. As folhas não são todas iguais, elas existem de todas as formas, cores e tamanhos. O conceito de folha, no entanto, esquece “o que é distintivo, e desperta então a representação, como se na natureza além das folhas houvesse algo, que fosse ‘folha’, uma espécie de folha primordial, segundo a qual todas as folhas fossem tecidas (...)”.As metáforas, por sua vez, tendem para a expansão dos sentidos, e restituem às coisas aquilo que foi subtraído pelo gesto uniformizador operado pelo conceito. Se os conceitos, pelo rigor e frieza característicos da matemática, são sempre precários e insuficientes em relação aquilo que desejam apreender, as metáforas, por suas características poéticas e intuitivas, escapariam a lógica uniformizadora e abririam inúmeras possibilidades de conexões e construção de jogos de sentidos. Tomadas não como ornamentos, mas como eixos que articulam as peças de uma narrativa, as metáforas enfatizam o caráter interpretativo e relacional da narrativa histórica, suavizando os efeitos generalizantes e a lógica das identidades dos conceitos (Maria Cristina Franco Ferraz). Do ponto de vista da narrativa, o uso de metáforas, neste caso como ornamentos expressivos, empresta um colorido e uma agilidade ao texto que quebra a armadura conceitual que o envolve. A ideia não é opor ou alternar metáforas e conceitos, mas empregá-los como recursos complementares, que se entrelaçam no texto construindo o sentido da narrativa. Se considerarmos a etimologia latina de texto, proveniente do verbo texere, indicando tecer, entrançar, entrelaçar, veremos que o sentido próprio de texto, do que é tecido, está na trama que o constitui. Metáforas e conceitos são, enfim, os fios do tecido narrativo de que é composto o texto.

O trabalho com metáforas não exclui nem diminui a importância dos conceitos. O que se propõe é um uso combinado dos dois recursos, como formas complementares, em que um atua sobre o outro, reforçando algumas definições ou atenuando os aspectos mais rígidos.
(Além de “Sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral”, de Nietzsche, recomendo a leitura do texto “Da valorização estratégica da metáfora em Nietzsche”, de Maria Cristina Franco Ferraz. A autora fez uma excelente leitura do uso que Nietzsche faz das metáforas e das suas possibilidades diante da “rigidez cadavérica dos conceitos”).