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sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

HANNAH ARENDT EM CUBA.



HANNAH ARENDT EM CUBA.

“Na parede do fundo fora pregado um cartaz colorido, grande demais para exibição interna. Representava apenas uma cara enorme de mais de um metro de largura: o rosto de um homem de uns quarenta e cinco anos, com espesso bigode preto e traços rústicos mas atraentes”.

Esta é a imagem com a qual Winston Smith se deparou quando adentrou o saguão da Mansão Vitória para fugir do vento que castigava a tarde de abril. Estamos apenas no segundo parágrafo de 1984. Os cartazes espalhados pela cidade, como que a vigiar a vida e o vai e vem dos cidadãos, acompanharão Winston ao longo de toda a narrativa de Orwell. Winston era funcionário do Ministério da Verdade e sua função era falsificar documentos públicos para facilitar a propaganda do governo.

“(...) salvo nos cartazes pregados em toda parte. O bigodudo olhava de cada canto. Havia um cartaz na casa defronte. O GRANDE IRMÃO ZELA POR TI, dizia o letreiro, e os olhos escuros procuram os de Winston. Ao nível da rua outro cartaz rasgado num canto, drapejava ao vento, ora cobrindo ora descobrindo a palavra INGSOC (socialismo inglês).”

Não havia como fugir dos cartazes e do olhar paternal e autoritário do BIG BROTHER. Eles estavam por toda parte, nos prédios, nas ruas, como que a dizer o caminho a ser seguido. 


Cuba é o país dos cartazes e dos outdoors. A presença das placas modulares nos espaços públicos é onipresente e massacrante. Elas estão por toda parte a exibir a propaganda oficial do governo e a martelar na cabeça dos cubanos o blá blá blá ideológico da revolução. Os outdoors contam a história da revolução e relembram, a cada esquina, os feitos heroicos dos salvadores da pátria. Imagino o efeito disso sobre quem nasce, cresce e envelhece sob esta forma de doutrinação política. Pode levar ao fanatismo (os autômatos), a indignação (os dissidentes) ou a total indiferença (Creio que muita gente já nem vê mais os outdoors. De tão presentes tornaram-se invisíveis).


Não vamos, por favor, comparar a propaganda cubana com a publicidade, igualmente massacrante, com a qual convivemos. São coisas diferentes, embora a propaganda dos regimes totalitários tenha se inspirado, nas suas origens, na publicidade norte americana. Adolf Hitler reconheceu isso no seu livro famoso. Hannah Arendt confirmou. Mas não vamos justificar uma coisa com outra. A publicidade é, em certo sentido, exagerada, mas nós temos escolhas, opções. Podemos inclusive denunciar (No Brasil é só entrar em contato com o CONAR). A propaganda totalitária não admite alternativas, muito menos críticas. Ela martela uma verdade única. É a pedagogia “revolucionária”, no caso dos cartazes e outdoors, entrando pelos olhos.


Mas qual a razão de uma propaganda insistente e onipresente, que lembra diuturnamente aos cubanos a importância da revolução, as artimanhas e a maldade do inimigo e a necessidade de manter a coesão social? Hannah Arendt nos ajuda a entender: “Por existirem em um mundo que não é totalitário, os movimentos totalitários são forçados a recorrer a propaganda. Mas essa propaganda é sempre dirigida a um público de fora, sejam as camadas não-totalitárias da população do próprio país, sejam os países não-totalitários do exterior. (...) Em outras palavras a propaganda é um instrumento do totalitarismo, possivelmente o mais importante, para enfrentar o mundo não-totalitário.”


Cuba não é um regime totalitário como foram o stalinismo e o nazismo. O terror, elemento central na definição do totalitarismo, não está presente em Cuba. É certo que ele foi empregado nos primeiros anos da revolução, com o paredón. Hoje não poderíamos falar em terror, mas numa guerra psicológica, numa pressão sobre os indivíduos por meio de um estado provedor, policial e vigilante. Entretanto, alguns elementos do totalitarismo são visíveis. Cuba é uma sociedade relativamente fechada, governada pelo mesmo grupo há cinquenta anos, que controla o fluxo e o contato com o exterior, que exerce controle sobre os meios de comunicação e a informação, que não admite oposição política e mantém o “povo” sob um regime intensivo de educação política por meio da propaganda oficial. Embora existam eleições e a divisão dos poderes, as instituições são decorativas e ficam à margem do poder de fato. Uma sociedade com estas características (é assim que vejo Cuba) é uma sociedade que, com o devido cuidado, pode ser descrita como totalitária. Os traços mais evidentes do totalitarismo, insisto, estão relacionados justamente a forma e aos temas da propaganda oficial, cuja finalidade é exaltar a figura do líder e engrandecer a obra da revolução.



Hannah Arendt nos ensina que a finalidade da propaganda política é conquistar, dominar e conduzir as “massas”. Claro que precisamos sempre tomar cuidado com estes conceitos, sobretudo se levarmos em consideração o momento em que foram criados. Os conceitos devem ser relativizados, sobretudo a noção de “massa”, usada aqui não para definir uma coletividade, mas para pensar a perspectiva do estado e suas ambições totalitárias. Não vamos jogar as categorias usadas por Hannah sobre Cuba e achar que está tudo resolvido. Não. Hannah é uma companheira de viagem. Observar Cuba com as intuições da filósofa é um livre exercício interpretativo. 

Por meio da propaganda cria-se um mundo a parte, ideal, com sua própria lógica e coerência, que se confronta com o mundo externo. Em comparação com o resto do mundo a propaganda cubana destaca as vantagens de se viver neste paraíso social criado pela revolução.


Os temas recorrentes que destacaria na propaganda cubana são:

Culto à personalidade: Fidel é a alma da propaganda cubana. As referências diretas e indiretas ao chefe dominam a paisagem oficial. Fidel é o líder, o caminho, a verdade, é o espírito invencível da revolução. Sua figura nos cartazes e outdoors impõe-se aos cubanos como o guia infalível que conduz seu povo no caminho da vitória.

O exemplo do Che: Che é o garoto propaganda de Cuba. Ele encarna o exemplo de coragem e lealdade aos princípios, que se espera dos cubanos. Afinal, Che morreu pela causa. É o ideal do revolucionário que deve ser cultivado e imitado. É uma espécie de santo protetor do regime.

O Bloqueio americano: As menções ao bloqueio estão por toda parte. Cuba só não é melhor do que está devido ao famigerado bloqueio. As carências e as deficiências do país são atribuídas a ele. É o perfeito bode expiatório do regime. A insistência da propaganda anti-bloqueio lembra o tempo todo aos cubanos do inimigo cruel que ronda a ilha a espera de uma brecha para destruir a obra da revolução.

Os feitos da revolução: Graças à revolução os cubanos vivem num país sem injustiças sociais, sem miséria e sem analfabetismo (mazelas do mundo capitalista). 

Winston sentiria certa familiaridade se percorresse as ruas de Havana.


De acordo com os estudiosos da propaganda em Cuba, a técnica de comunicação com as “massas” é controlada pelo partido, e visa a edificação do socialismo e a educação do novo homem. Além disso, procura despertar nos cubanos o orgulho pela singularidade do país e das derrotas que impôs ao imperialismo.

O pensamento cubano sobre publicidade e propaganda, embora busque um espaço de reflexão, segue a linha ditada pelo regime. Mirta Muñiz, o grande nome da área em Cuba, escreveu em seu livro “La Publicidad en Cuba: mito y realidad” que a propaganda em seu país deve ser analisada a luz do marxismo-leninismo e observando as condições concretas do sistema social cubano. Esta é a armadura teórica inexpugnável que envolve e dita o conteúdo da propaganda. Mirta já era da área da publicidade antes de 1959. Depois da revolução aderiu ao novo regime. Nos anos 50 trabalhava para a agência internacional McCann-Erickson e fez cursos em Nova York. Como ela mesma diz: “aprendimos de la técnica de los Estados Unidos, pero producíamos cosas muy particulares cubanas”.
O caso de Mirta espelha, de alguma maneira, a trajetória da publicidade e da propaganda em Cuba antes e depois da revolução. Deixemos que ela nos conte:

“En lo que se refiere a la publicidad, su desenvolvimiento en Cuba no ha sido fácil tras el triunfo revolucionario de enero de 1959. Cuando en los años sesenta hubo necesidad de intervenir las agencias de publicidad (yo trabajaba en la transnacional publicitaria McCann-Erickson, relacionada con anuncios como los de la Coca Cola), los escasos renglones de productos y servicios con que contábamos no permitían satisfacer las crecientes demandas de la población. Todo lo que se producía, se consumía. No existía excedente alguno. Por tanto, la publicidad realmente no tenía razón de ser; al igual que tampoco existía mucho espacio para ella.”


Com o “triunfo” da revolução a publicidade foi desaparecendo e, na razão inversa, a propaganda ideológica foi assumindo um papel cada vez mais importante. Mirta justifica isto e aponta qual é, na sua percepção, a finalidade da propaganda:

“A mi entender la propaganda tiene dos grandes objetivos: uno, doctrinario; y otro, político. Para cumplirlos, habría que agruparlos en tres grandes direcciones. Una, la estabilidad política, o lo que es igual: la comunicación en función de la estabilidad política para cumplir un amplio espectro en la vida del país. La otra dirección es el desarrollo económico y social. En una sociedad como la nuestra, cuyo objetivo fundamental es el desarrollo en general, hemos utilizado la comunicación de modo que ella pueda contribuir a que los avances en todos los órdenes sean más rápidos y abarcadores en cualquier rama o sector. Y como último aspecto está la solidaridad. En Cuba constituye una vertiente de la propaganda, que antes del triunfo de la Revolución, era inexistente. Nació durante la década del sesenta del siglo pasado; y a ella se sumaron no sólo políticos, sino también historiadores, periodistas, diseñadores, fotógrafos.”

A publicitária e propagandista é cuidadosa com as palavras. Será que leu Hannah Arendt? Lendo ou não, ela embarcou na revolução, vestiu a camisa do regime, mas busca uma margem de autonomia para pensar a publicidade para além das exigências do socialismo e diferenciar a publicidade da propaganda revolucionária (Tema do livro que está escrevendo: Acciones y contradicciones de un proceso. Propaganda y publicidad en Cuba”. Não sei se já publicou). Tarefa difícil.

De um modo geral, a reflexão sobre a propaganda em Cuba é doutrinária e procura diferenciar a “propaganda revolucionária” – que tem a verdade como princípio fundamental em função de um homem harmônico e integral - da “propaganda imperialista” – que é sinônimo de mentira e manipulação - conforme podemos ler em diversos textos de autores cubanos. A propaganda cubana é revolucionária porque tem como objetivo levar às “massas” as novas ideias e uma nova maneira de pensar, com vistas à construção do socialismo. E também porque combate a ideologia do inimigo em todas as suas manifestações. (Ver “La propaganda política. Surgimiento y desarollo em Cuba”, de Miguel Guzmán Rojas). Bem, Stalin, que tinha seu retrato pregado em toda parte, inclusive em livros de receita de bolo, também considerava a propaganda soviética revolucionária. Eu fico com Hannah Arendt. Sempre que leio suas considerações sobre a propaganda totalitária imediatamente penso em Cuba.

Se um dia for a Cuba, convide Hannah para ir junto. Andar pelas ruas e pelas estradas é uma aula de propaganda ideológica. Na companhia de Hannah, então, torna-se um fascinante exercício de interpretação da relação do regime com o “povo”. Da relação do líder que acredita interpretar os desejos e as necessidades de seu “povo” com o “povo” que vê a imagem do seu líder obsessivamente pregada diante de seus olhos. Fidel acredita que é um país. A propaganda torna isso verdade.





quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

A BEATIFICAÇÃO DE PRINCESA ISABEL E OS PECADOS DA REPÚBLICA.


A BEATIFICAÇÃO DE PRINCESA ISABEL E OS PECADOS DA REPÚBLICA.






A república brasileira, corroída pela corrupção e pelos desmandos, atravessa um momento de descrédito e de fragilidade moral (não é a primeira vez). Os pecados contra a coisa pública desacreditam as instituições e nivelam homens públicos e partidos por baixo. “Ninguém presta”, diz o “povo” nas ruas, nas paradas de ônibus, nas rodas de conversa. O guarda que cuida do setor onde trabalho disse-me no fim do ano: “Seu Paulo, ninguém vale nada. Não valem o prato que comem. São todos iguais. Não voto mais.” Baixei a cabeça e perguntei sobre o time dele, o Hercílio Luz. O time não vai bem, mas a conversa ficou animada.


Não é por acaso que justamente neste momento de descrença na “política” toma corpo uma causa de beatificação de uma figura da família real brasileira que marcou os últimos anos da monarquia. Está sendo analisado pelo arcebispo do Rio de Janeiro um pedido de beatificação de princesa Isabel. O atual contexto marcado por escândalos políticos generalizados é propício para uma um causa como esta prosperar. A causa em prol da beatificação da princesa cresce nas fissuras morais da república.


No final de dezembro de 2011 especialistas do Vaticano participaram de uma audiência na Cúria Metropolitana da Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro para formalizar uma comissão especial para dar início aos estudos sobre o processo de beatificação de princesa Isabel. O pedido formal de abertura do processo de bem-aventurança e beatificação havia sido entregue em outubro de 2011. Na ocasião, o professor Hermes Rodrigo Nery, acompanhado do príncipe Dom Antonio João de Órleans e Bragança, da casa Imperial do Brasil, entregou uma carta ao arcebispo Dom Orani João Tempesta, apresentando as justificativas e os argumentos para a instauração do processo.


O tema é indigesto. Uma comissão católica, com apoio da casa Imperial do Brasil, pretende desenterrar parte do passado monarquista brasileiro, sepultado pela república, para beatificar uma figura símbolo da monarquia! Todo processo de beatificação é político, sabemos disso, mas neste caso mexe com o passado, com as instituições políticas e divide a sociedade brasileira. 


A beatificação é o primeiro passo para a canonização. O caminho é longo, mas já imaginaram a repercussão e a dimensão simbólica da canonização de dona Isabel, que foi destituída por um golpe e mandada para o exílio pelos republicanos? Seria, no mínimo, a santa vingança dos Órleans e Bragança e a reentronização em grande estilo, e com ares de santidade, da família real. Alguém tem dúvida de que a beatificação da princesa vai reacender o inexpressivo movimento monarquista brasileiro?


Dom Orani tem um abacaxi dos grandes nas mãos para descascar: está pressionado entre a comunidade católica e a casa imperial, de um lado, e o movimento negro e parte da “comunidade” dos historiadores, do outro. A candidata à beata não é uma unanimidade nacional, o que dificulta a tomada de uma decisão.  


O tema divide opiniões. Não podia ser diferente. Vejamos os argumentos de ambos os lados. 


1.      De um lado, estão os defensores da beatificação, capitaneados por Hermes Nery, o postulador da causa (Nery é pós-graduado em bioética pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ), diretor da Associação Nacional Pró-vida e Família, do Movimento Brasil Sem Aborto e membro da Comissão em Defesa da Vida do Regional Sul 1 da CNBB). O Postulador é figura imprescindível, além de obrigatória, num processo de santificação. Representa oficialmente a causa e formaliza, ou postula, o pedido. Deve ser alguém versado em teologia, direito canônico, história, e conhecer o modo de funcionamento da Congregação da Causa dos Santos. Cabe a ele também nomear o vice-postulador, para que acompanhe de perto o andamento da causa. Nery aponta o protagonismo de Isabel na abolição como argumento central da causa. Ela não apenas liquidou com a escravidão como libertou escravos do palácio e serviçais mais próximos quando do seu casamento em 1864. Demonstrou humildade incomum para uma pessoa da sua posição ao limpar a capela de Nossa Senhora Aparecida. Em Petrópolis ela era vista com frequência limpando igrejas. Por fim, Isabel era fiel ao papa. Nery cita um episódio ocorrido em 1888 quando a princesa recebeu a Rosa de Ouro (como reconhecimento da boa conduta na abolição). Na solenidade, Isabel jurou fidelidade ao papa, mesmo na presença de homens de estado. Tudo isso é coroado pelo manto de virtudes que os defensores da beatificação lançaram sobre a princesa.




2.      Do outro lado, contrários a causa, estão os historiadores e o movimento negro. Em primeiro lugar, questionam a importância da princesa na abolição da escravatura. Embora tenha abraçado a causa alforriando escravos, escondendo fugitivos no Palácio de Petrópolis e abrindo as portas para amigos negros, não teve o papel decisivo que lhe foi atribuído. Com ou sem ela a escravidão estava com os dias contados. Os verdadeiros protagonistas foram os escravos e abolicionistas como Joaquim Nabuco e Luz Gama. Isabel nunca se interessou por política, pensava que era coisa de homens. Estudou, mas não soube tirar proveito do que aprendera. Era apegada a certas futilidades e nunca se envolveu de fato na causa abolicionista (Vale a pena conferir no blog “Monarquia Já” a reação dos monarquistas às críticas dos historiadores). A historiadora Wlamyra Albuquerque afirmou que “canonizar d. Isabel a partir do episódio da assinatura da Lei do 13 de maio é uma tentativa de reiterar uma memória que silencia sobre o papel do negro na sua própria história.” Juntam-se a Wlamyra na crítica a beatificação, embora com outros argumentos, a historiadora Mary Del Priori , que esta para lançar ainda este ano um livro sobre a princesa e o historiador Roderick Barman, autor do livro “Princesa Isabel: gênero e poder no século XIX”. Hermes Nery rebateu as críticas afirmando que os críticos são historiadores republicanos, aos quais não interessa o protagonismo de Isabel na luta contra a escravidão.



Na resposta de Nery aos historiadores veio à tona o pano de fundo que dá sentido a causa da beatificação: o embate tardio entre monarquistas e republicanos e a disputa pela memória histórica sobre a abolição.


O assunto é polêmico, o terreno é “sagrado”, mas vamos meter a colher neste angu? Não se trata de ser favorável ou não à beatificação. Essa conversa de santo realmente não me interessa. O problema é de natureza política. O pedido é, em certo sentido, uma retomada do debate que polariza os defensores da monarquia e os republicanos. A república nunca convenceu, vive aos tropeços, assombrada por golpes e moralmente abalada. A monarquia não foi definitivamente derrotada, é um fantasma político que sempre volta. Não chega a ameaçar, mas esta sempre a espreita. A beatificação de Isabel poderia ser vista pelos admiradores da monarquia como um desagravo histórico à família real e uma crítica contundente aos desmandos da república. É difícil imaginar que a beatificação de Isabel tenha apenas motivação de fundo religioso.


Polêmicas à parte, e adentrando um pouco no campo religioso, Isabel reúne as qualidades necessárias, apontadas pela tradição da igreja católica, para tornar-se santa? Santo, na tradição católica, é um modelo exemplar de virtudes e renúncia. É alguém que cultivou e praticou as virtudes morais – prudência, justiça, coragem e temperança - em grau heroico e conquistou o reconhecimento de sua santidade na comunidade católica. A exemplaridade, digna de imitação, passa pela proximidade com o divino. Mas imitar o exemplo dos santos – a morte heroica, as virtudes ou as asceses dos anacoretas - não é algo simples para o cristão comum, pois o que caracteriza a santidade é justamente a sua excepcionalidade e o distanciamento que mantém das coisas mundanas. Até onde me é dado a ler Isabel não foi exatamente um modelo de virtudes digno de ser imitado.  Sabemos que a historiografia republicana não foi nada generosa com a princesa, mas nem as biografias menos parciais nos oferecem uma imagem que possa ser usada para uma causa de beatificação. Exceto uma biografia, escrita por Hermes Vieira e lançada pela editora GRD em 1990 (Pesquisem a editora, garanto que vale a pena). O autor parece ter escrito a obra sob encomenda, visando o pedido de beatificação. Para que uma causa prospere é necessário reunir o maior número possível de provas sobre a vida cristã do candidato. As biografias documentadas cumprem este papel. O autor recorreu aos testemunhos de nomes como os de Assis Chateaubriand, Machado de Assis, Heitor Lyra e o cônego Manfredo Leite, para dar sustentação a sua narrativa. Hermes Vieira escreveu uma biografia histórica com indisfarçável apelo hagiográfico. Ora realça-se a mulher, a personagem histórica, que viveu um momento crucial da história política do país, e não se intimidou, ora a predestinada que, como que cumprindo um chamado da providência, intercedeu em favor dos humildes. Mas o que predomina é uma fusão dos dois gêneros. As narrativas históricas, centradas em documentos, que mostram as atividades da princesa num contexto imperial e escravocrata, são revestidas de uma aura de santidade e predestinação. História e hagiografia são integradas num esforço combinado para revelar a vida e obra da princesa/mulher que trazia dentro de si a santa. A estrutura narrativa e a intenção são hagiográficas, mas a legitimidade é dada pela história A história fornece os recursos de retorno ao passado, de leitura da documentação e a comprovação do que se diz; a hagiografia, por sua vez, trabalha sobre a matéria fornecida pela história para erguer um monumento à candidata à beata.



Hermes Vieira não economiza nos elogios à bondade e à honestidade da princesa. Relata em tom de veneração a vida de Isabel desde a infância, passando pela fase adulta, e o empenho pelo fim da escravidão para, finalmente, alcançar a apoteose do exílio, quando suportou com dignidade os dissabores e os sofrimentos da humilhante condição. Menina ainda já demonstrava traços de caráter e virtuosismo cristão. Cresceu desapegada das coisas materiais, do dinheiro, e sempre esteve voltada para a caridade e o desejo de ajudar ao próximo. As qualidades vinham de berço. A formação e a firmeza das convicções temperaram o caráter da princesa para o protagonismo que assumiu na abolição da escravatura. A princesa Isabel de Hermes Vieira é um modelo de virtudes e bondade.



O outro Hermes, o postulador da causa, foi o autor da carta entregue ao arcebispo (a carta está disponível na net). A carta baseia-se integralmente nesta biografia. No que diz respeito à participação da princesa na luta pela abolição da escravatura, o texto que serve de apoio, além da biografia, é “As Camélias do Leblon e a Abolição da escravatura”, de Eduardo Silva. Mas é a biografia de Hermes Vieira que serve de base e sustenta a argumentação de que Isabel viveu cristamente e praticou a virtude de modo heroico. É esta a função de uma biografia histórica para fins de beatificação. Transcrevo um trecho da carta:


“Testemunharam os que conviveram com ela, o vigor límpido de seu caráter, seu autêntico patriotismo, a sensibilidade na busca de soluções efetivas que dessem ao Brasil condições a um desenvolvimento social pautado nos princípios e valores do humanismo integral, para corrigir distorções e abusos que atentassem contra a dignidade da pessoa humana, refletindo em ações concretas o que Leão XIII imprimiria em sua memorável Rerum Novarum. Quando as circunstâncias exigiram dela uma tomada de posição, ousou correr riscos em defesa dos fragilizados, decidindo em favor daqueles que mais necessitavam um olhar compassivo, tomando decisões que refletiram um desejo sincero e profundo de melhoria conjuntural para viabilizar um panorama social brasileiro menos perverso. ´Carinhosa ao extremo, devotada à família, ela queria que todas as mães sentissem a ventura de se verem livres para melhor se dedicarem aos seus entes queridos. Vibrava nela, de modo intenso, o sentimento da solidariedade cristã´ ”(A frase final é uma citação do livro de Hermes Vieira). 



Na outra margem, os historiadores destacam outros traços da personalidade da princesa. Os novos estudos indiferentes, à causa da beatificação, revelam uma princesa bem mais interessante do que até então se supunha. Uma carta de sua autoria descoberta recentemente e endereçada ao Visconde de Santa Vitória revela uma faceta desconhecida da princesa. São quatro páginas manuscritas, datadas de 1889. Na carta Isabel defende a indenização para ex-escravos, a reforma agrária e o voto feminino. Num fragmento, a princesa assim se expressa em relação ao voto feminino: "Quero agora dedicar-me a libertar as mulheres dos grilhões do captiveiro domestico, e isto será possível atravez do Sufragio Feminino! Si a mulher pode reinar também pode votar!" Mary Del Priori sugeriu que Isabel tenha aderido à agenda proposta por vários jornais e revistas escritas por mulheres no final do século XIX. Discutia-se nestas revistas temas como educação feminina e o acesso das mulheres às áreas de conhecimentos destinadas apenas aos homens. Além disso, Isabel aderiu entusiasticamente à causa abolicionista. Após a assinatura da Lei Áurea Isabel tornou-se abjeto de adoração popular e passou a ser identificada como a “redentora da escravidão”. Ainda segundo Del Priori, Isabel era querida pelos negros livres. A “guarda negra”, por exemplo, formada por ex-escravos, bagunçava com os comícios republicanos sob o pretexto de proteger a princesa.



A nova imagem de princesa Isabel revelada pelos historiadores esta longe de ser aquela figura morna e apagada fixada pela memória republicana, e longe também da figura idealizada da santa, como pretendem seus fervorosos admiradores.



O pedido de abertura do processo foi feito. Os argumentos contrários e a favor foram dispostos. Aguardemos os próximos capítulos. Enquanto isso, procurem informações a respeito dos novos estudos sobre princesa Isabel. De santa ela não tinha nada. De insossa e fútil também não. Descubram então quem era Dona Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bragança e Bourbon.


Se Isabel for beatificada, será necessário comprovar um milagre para avançar rumo à canonização. E o que não falta entre nós é gente a procura de um milagre. Se procurarem bem, encontrarão. Os defensores da causa são especialistas na “arte” de fabricar milagres.


Se dom Orani decidir pela beatificação de Isabel, provavelmente teremos outro candidato a beato como contraponto: Zumbi dos Palmares. Duvidam?


domingo, 20 de janeiro de 2013

RAÚL CASTRO: O DITADOR/DISSIDENTE DO REGIME CUBANO.



RAÚL CASTRO: O DITADOR/DISSIDENTE DO REGIME CUBANO.



Alguns regimes políticos, notadamente os identificados como socialistas, contam com um quadro de dedicados intelectuais espalhados pelo mundo que espontaneamente os defendem contra as “hostilidades” e críticas desferidas desde o mundo capitalista. O esforço destes intelectuais é no sentido de desacreditar os críticos externos, associando-os à propaganda imperialista (mídia corporativa) e aos interesses de Washington, e desvalorizar a dissidência interna, descaracterizando suas manifestações e reduzindo as críticas dos dissidentes a meros interesses individuais e egoístas. O caso cubano é extraordinário.


Salim Lamrani escreveu um artigo publicado na Agência Ópera Mundi apresentando Raúl Castro como o “verdadeiro dissidente” cubano. Eu sei. Soa bastante estranho. Mas é isso mesmo. Lamrani é professor das Universidades de Paris-Descartes e Paris-Est Marne-la-Vallée e um admirador/defensor declarado do regime cubano. Publicou diversos textos na net defendendo o regime dos Castro e atacando seus adversários. Num dos textos sustentou que Orlando Zapata Tamayo, que morreu numa prisão cubana em fevereiro de 2010 após uma greve de fome de 83 dias, não era um preso político. Zapata, de acordo com o governo cubano e com Lamrani, era um preso comum. Recentemente tentou desqualificar Yoani Sánchez afirmando, de maneira duvidosa, que a blogueira tem um padrão de vida bem acima da maioria dos cubanos. Agora o professor francês, autor do livro “Cuba. Ce que les médias ne vous diront jamais”,  investe na figura de Raúl Castro para mostrar que este senhor possui as melhores credencias e o espírito crítico necessário para conduzir o processo de reformas em Cuba.  

Creio que a iniciativa tem duas finalidades, uma explicita, outra oculta. A finalidade explicita é rebater as críticas externas de que em Cuba não existe “debate crítico”. Em Cuba, garante Salim, “a cultura do debate se desenvolve mais a cada dia e é simbolizada pelo presidente cubano Raul Castro, que se converteu no primeiro a falar dos reveses, das contradições, aberrações e injustiças presentes na sociedade cubana.” A Cuba de Salim Lamrani esta longe de ser uma “sociedade monolítica que compartilha o pensamento único.” 


Salim considera que as falas de Raúl Castro pela televisão e alguns discursos criticando algumas posturas do governo e injustiças sociais (isso existe em Cuba?) são a prova de que existe debate crítico em Cuba. O chefe do governo e irmão do chefe máximo da revolução faz criticas a ineficiência do regime e as “aberrações” que eles mesmos criaram e isto é chamado de “debate crítico”? Expliquem-me, como base em alguma teoria política deste planeta, como pode o chefe do governo ser ao mesmo tempo dissidente e chefe político? Dissidência é o “ato de discordar de uma política oficial, de um poder instituído (ou constituído) ou de uma decisão coletiva.” O “dissidente” Raul Castro discorda do que, dele mesmo e da política com a qual compactua há 50 anos em Cuba? Salim Lamrani acaba de inventar um novo significado para o conceito de dissidência. 


Se olharmos por outro ângulo, o conceito de dissidência no vocabulário político do ocidente, no século XX, esta associado aos regimes totalitários, especialmente a União Soviética sob o governo stalinista. Estaria o autor do texto afirmando, mesmo sem ter a intenção, que Cuba encerra um regime desta natureza? Ato falho, Salim? 


E a ideia do debate que ele acredita existir em Cuba? Um debate não exige a presença de um contraponto? Raul discursando por meio de sonolentos monólogos, sem alguém que lhe apresente argumentos contrários, poder ser chamado de “debate”? É realmente impressionante a maneira como o professor Salim lida com o significado das palavras.


A finalidade oculta, e a mais importante, é desacreditar e deslegitimar a dissidência cubana não controlada pelo governo. A intenção fica clara quando Salim sustenta que Raúl foi o primeiro a falar dos problemas de Cuba. O Primeiro? E os dissidentes (os verdadeiros), que há décadas chamam a atenção para os problemas que só agora Raúl entendeu existirem?


Sugerir que Raúl é o verdadeiro dissidente em Cuba é uma afronta ao pensamento. É propagando política disfarçada de crítica. Raúl Castro é a continuidade, é a autocrítica tardia e conservadora. Raúl Casto representa a política do vão se os anéis para ficarem os dedos. Representa a agonia de um regime falido que não quer admitir seus erros, e que vê nesta forma cínica de autocrítica oficial uma forma de se manter no controle político do país. Prestem atenção nesta frase: “Assim, Raúl Castro não é apenas o presidente da nação, mas também – segundo parece – o primeiro dissidente do país e o mais feroz crítico das derivas e imperfeições do sistema.” 


Vou traduzir a minha maneira: Raúl é o ditador e o crítico da ditadura. É o criador do sistema e o crítico oficial, e único, de suas imperfeições. É o Victor Frankenstein tentando aplacar a fúria a do monstro que ele mesmo criou e que agora se volta contra ele.


Transformar o irmão de Fidel no “verdadeiro dissidente” e “feroz crítico” do regime cubano é afirmar com outras palavras que realmente não existe debate crítico em Cuba. Os irmãos Castro e seus ventríloquos na mídia cubanófila manejam os conceitos para manter um regime obsoleto que satisfaz aos seus caprichos ideológicos. Se quiserem o mínimo de rigor com os conceitos, procurem pelo conceito de “dissidente”, conforme qualquer dicionário de política, nas prisões cubanas. Lá estão os “dissidentes” que defendem o “debate crítico” em Cuba. 


As medidas de abertura do regime tomadas por Raul, como a reforma migratória, embora bem vindas, não podem, de maneira alguma, ser tomadas como dissidência. Um dos sinônimos de dissidência é ruptura. Raul esta longe de qualquer coisa que mesmo remotamente lembre ruptura. As medidas anunciadas representam o desejo de continuidade de um regime que, embora falido, tenta se manter abrindo-se lentamente para reformas (inspiradas quem sabe nas experiências chinesas e vietnamitas). A “autocrítica”, e a reforma, anunciadas como a grande novidade da “revolução”, não é nada mais do que aceitar tardiamente aquilo que os críticos já haviam denunciado há décadas.


Não estou agourando as reformas e torcendo pelo fracasso. Ao contrário. Espero que Raúl esteja bem intencionado e consiga encontrar o melhor caminho para abrir o regime, sem, contudo, desfazer as conquistas da revolução. Só não dá para engolir esta conversa de “dissidente”.


Raúl Castro representa a sobrevida do regime cubano sem Fidel. Transformá-lo num “dissidente” e num “feroz crítico” do modelo criado por seu irmão é deixar tudo em família e se antecipar a uma possível manifestação popular por reformas mais contundentes. Afinal, o dissidente é aquele que contesta e rompe com o que existe. Apresentar Raúl como o dissidente, o insatisfeito, é uma manobra política para dissociá-lo do fracasso histórico do regime. É revestir o velho com nova roupagem crítica, para camuflar seu passado, e anunciá-lo como novidade.