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sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

 

O GESTO INESQUECÍVEL DO CRAQUE REINALDO CONTRA O RACISMO E A DITADURA MILITAR:

 

                    Quem pede a volta da ditadura militar no Brasil não sentiu na pele o que eu sofri” (Reinaldo).


O título mais do que merecido do Galo no Brasileirão, conquistado ontem contra o Bahia, me trouxe à memória o futebol elegante, rápido e inteligente de um dos maiores atacantes do futebol brasileiro. Reinaldo foi um craque e goleador estiloso. E foi o maior artilheiro do campeonato brasileiro entre 1977 e 1997. Conviveu com problemas no joelho, que o obrigavam a treinar de calças compridas para esconder o inchaço, e se aposentou precocemente aos 29 anos. A torcida o chamava de Rei, e cantava ReiReiReiReinaldo é nosso Rei.

Mas Reinaldo foi muito mais do que o centroavante goleador e praticante do futebol arte. Usou o esporte, numa época de repressão e violência, para manifestar-se em defesa das liberdades e do respeito às diferenças. Nas comemorações dos gols erguia o braço direito com o punho cerrado. Era uma referência ao movimento dos Panteras Negras, que lutavam contra a violência racial nos EUA, e aos atletas estadunidenses Tommie Smith e John Carlos, que protestaram contra o racismo nas Olimpíadas de 1968. O gesto, tomado de empréstimo pelo centroavante goleador, era um protesto pelo fim da ditadura militar.

Reinaldo contou que quando fez o gesto pela primeira vez todos queriam saber o que significava. Para driblar a repressão, dizia que era só um protesto contra o racismo. Os tempos eram difíceis. “Eu precisava tomar cuidado, pois os ‘dedos-duros’ do governo estavam sondando, querendo descobrir se eu seria como instrumento de algum grupo revolucionário. Percebia que o meu gesto era um alento aos socialistas, um sinal de apoio e de unidade perante uma causa” (Extraído do livro Punho Cerrado: a história do Rei, escrita pelo seu filho Philipe Van R. Lima, publicado em 2017).

Reinaldo se sentia isolado e desanimado com a falta de apoio no meio futebolístico, mas continuou fazendo o gesto a cada gol marcado. “O apoio que recebi vinha mais da classe artística e, mesmo assim, era silencioso. Quase ninguém tinha coragem de se manifestar. Fiquei muito isolado, sofrendo todo tipo de ataque. Esse gesto (comemoração) de alguma forma passou a mensagem de que precisávamos de um país democrático e com mais justiça social”.

Às vésperas da Copa e 1978 na Argentina o posicionamento do centroavante ocupava os debates esportivos. Afinal, um jogador poderia ter e manifestar opinião política? Três meses antes da Copa Reinaldo disse que foi impedido de disputar a final do Campeonato Brasileiro contra o São Paulo. Uma manobra punitiva dos cartolas com o governo o afastou da decisão. Na década de 1970, a Confederação Brasileira de Desportos (CBD, hoje CBF) era comandada por militares e presidida pelo almirante Heleno Nunes, que desaprovava a postura do jogador. Ficar de fora da final, por uma expulsão que aconteceu no mês anterior, dava a Reinaldo a certeza de que o julgamento foi político. Ao invés de intimidar, a punição aumentou a disposição crítica contra a ditadura. O tiro saiu pela culatra.

Antes do embarque para a Argentina, a seleção foi recebida pelo presidente Ernesto Geisel no Palácio Piratini, em Porto Alegre. A mensagem do discurso do presidente ao grupo não poderia ser mais clara: “Ponham de lado os sentimentos pessoais e façam do time um conjunto que realmente possa trazer a vitória”. Na conversa reservada que teve com Reinaldo a mensagem foi ainda mais clara: “Vai jogar bola, garoto. Deixa que política a gente faz”. Na concentração da seleção, André Richer, chefe da delegação brasileira, disse a Reinaldo que a CBD e o governo consideravam o gesto comemorativo “revolucionário demais”. A “recomendação” era para que não comemorasse os gols na Copa com aquele gesto e nem comentasse sobre política nas entrevistas.

Havia dúvidas sobre a convocação de Reinaldo. Mas, mesmo com a desaprovação dos generais, que o consideravam esquerdista e subversivo, Cláudio Coutinho, que era também capitão do exército, convocou o craque. Ele era bom demais para ficar de fora. E o apelo popular era grande. A convocação do Rei foi uma vitória, ainda que momentânea, do futebol sobre a ditadura.

 

A Copa na Argentina, que também vivia sob a ditadura do general Videla, tinha um peso político enorme. E mesmo com toda a pressão, e sem contar com o apoio dos colegas, Reinaldo não se intimidou. Na estreia contra a Suécia fez o que tinha que fazer. O Brasil saiu perdendo. Mas, aos 45 minutos do primeiro tempo, Toninho Cerezo cruzou a bola da direita, Reinaldo se antecipou ao zagueiro Roy Andersson e estufou as redes. Depois de hesitar por alguns segundos, tomou a decisão e comemorou o empate com o gesto que tanto desagradava a ditadura. Foi colocado na reserva e não jogou mais na Copa.


A comemoração foi um gol de placa contra as ditaduras brasileira e argentina do camisa 9, de 21 anos. “Não sei mensurar o impacto desse gesto durante a Copa do Mundo, pois estava isolado na concentração da seleção e não chegavam muitas notícias lá. Mesmo assim, foi um ato muito ousado, pois eu havia recebido a recomendação de não comemorar daquela forma, inclusive das autoridades argentinas”.

No hotel em Mar Del Plata, onde estava hospedado, e já afastado do time, Reinaldo recebeu um pacote anônimo, com um endereço da Venezuela. Era um Relatório sobre a Operação Condor, uma aliança e cooperação entre países sul-americanos que viviam sob regimes militares. O documento revelava planos para o assassinato de ativistas de esquerda e democratas, e o assassinato de importantes políticos chilenos pela ditadura de Pinochet. E sugeria também que a morte do ex-presidente Juscelino Kubitschek, no Brasil, foi planejada pela Operação. Segundo Reinaldo, o “documento estava em espanhol, não conseguir entender tudo. Fiquei apavorado, estava com uma bomba em minhas mãos, não sabia como lidar com aquilo, por isso guardei o envelope no fundo da minha mala e não mostrei para ninguém. Quando retornei ao Brasil, deixei o envelope com o músico Gonzaguinha, que era ligado a movimentos de esquerda”.

O Relatório foi bastante importante para desgastar a imagem internacional dos generais sul-americanos e para apontar os crimes contra a humanidade cometidos nas ditaduras.

A vida do jogador não foi fácil depois da Copa. Além das lesões, que o levaram a abandonar o futebol, sua vida pessoal foi atacada e exposta impiedosamente na imprensa. O uso de drogas e de álcool e a amizade com o radialista gay Tutti Maravilha eram pratos cheios para os difamadores e adversários políticos. A amizade com Tuti foi distorcida e massacrada pela vigilância homofóbica. Reinaldo era chamado de cachaceiro e gay. E tudo isso explodindo às vésperas da convocação para a Copa do Mundo de 1982. Numa entrevista à Revista Placar, Reinaldo se manifestou sobre os ataques: “Transar com o Tutti, minha gente, seria o mesmo que cometer um incesto. Transar com o Tutti não pode. Transar com muitas mulheres também não. Não transar com nenhuma é, da mesma forma, perigoso. Se saio à noite com mulheres, sou boêmio. Se não saio, sou viado. Que fazer?”.

O técnico Telê Santana deixou Reinaldo de fora da lista para a Copa de 1982. A Revista Placar, de janeiro de 82, detalhou a relação do jogador com o técnico e as razões da não convocação. “Seu relacionamento com o técnico deteriorou-se no semestre passado. A partir dali, Telê começou a censurá-lo - ora pela amizade do jogador com homossexuais, ora por suas brigas com a namorada, ora por suas ligações com o Partido dos Trabalhadores”. Embora Telê tenha negado que sua decisão tivesse alguma motivação política, o que é bastante questionável, não há dúvidas de que o moralismo foi decisivo. Considerado um técnico disciplinador, dizia abertamente que não queria no seu time “sujeito homossexual”. Mas sustentou que o veto era técnico e se devia à má condição física do jogador. Reinaldo discorda: “Houve influência política. Eu estava bem fisicamente. A comissão técnica não resistiu à pressão, aos argumentos de pessoas que não me queriam na seleção. O Telê era implicante com o estilo de vida das pessoas. E o meu estilo não o agradava.”

Alguns craques da Copa de 82, em entrevistas à Revista Placar em 1981, logo depois da convocação, manifestaram-se a favor da convocação do Rei:

“Não posso escalar o time. Mas, como nunca fiz um coletivo com o Serginho, o Baltazar ou o Roberto, é lógico que eu me entroso mais com o Reinaldo” (Zico).

“Vai jogar o Rei. É o mais inteligente, o mais técnico e o mais perigoso” (Júnior).

“Todos têm suas virtudes. A diferença é que o Reinaldo é o Reinaldo” (Éder).

“No meu time, joga o Rei” (Sócrates).

E eu lembro do meu Pai dizendo: “Não tem ninguém melhor que o Reinaldo. Telê errou”.

Perdemos o Reinaldo, perdemos a Copa, perdemos 21 anos, perdemos quase 500 vidas, mas não perdemos a memória. Se a ditadura e os seus defensores trabalham com a política do esquecimento, nós, do campo democrático, resistimos evocando a memória e relembrando o que o autoritarismo tentou silenciar e apagar.

Hulk relembrou recentemente o gesto de Reinaldo e o homenageou no jogo contra o Fluminense, erguendo o braço com o punho cerrado. Reinaldo estava no Mineirão e se emocionou. Hyoran também comemorou o gol de empate contra o Bragantino com o gesto do Rei. Uma pena que as repercussões das comemorações ficaram apenas no domínio do esporte e na homenagem ao maior ídolo do Galo. Foi bonito, foi, mas teria sido épico se a atitude dos jogadores também tivesse despertado maior curiosidade sobre a causa por trás do gesto. Limitando-se à homenagem ao artilheiro, o gesto foi esvaziado de tudo aquilo que ele significava. Os motivos que levavam Reinaldo a fazer o gesto, e o quanto isso lhe custou, não foram lembrados.

O gesto solitário e corajoso de Reinaldo não pode ser esquecido. Tem que ser celebrado. A comemoração do tão esperado título do Atlético Mineiro, depois de 50 anos, é também um momento para celebrar e relembrar a história do time, os títulos e os ídolos do passado. Relembrar que Reinaldo chegou no clube em 1971, aos 14 anos, ano em que o Atlético foi Campeão, e o técnico era o Telê Santana. Relembrar é trazer à memória, é tornar presente e reatualizar algo significativo que se deseja preservar. E nada mais significativo do que o maior goleador da história do Galo encarando sem medo, com o braço em riste, a vergonhosa ditadura que tentava em vão discipliná-lo politicamente.

Com a palavra, o Rei:

 “Medo eu não tinha, porque contava com respaldo popular. Não iam me sequestrar ou matar, como fizeram com vários outros brasileiros. Mas fui queimado em fogueira pública e continuo queimando até hoje.”

O futebol sempre foi um meio machista e conservador. Não aceitam que um jogador tenha posições políticas, que se proponha a pensar. Fui perseguido por fazer oposição, mas, como figura pública, era preciso mostrar resistência ao regime militar para acelerar o processo democrático. O autoritarismo emburrece a sociedade. Quem pede a volta da ditadura militar no Brasil não sentiu na pele o que eu sofri.”



 





 

 

terça-feira, 7 de setembro de 2021

CENAS DE UMA BARBEARIA: A INDIGNAÇÃO DO CIDADÃO DE BEM E O PROFESOR QUE QUER CAÇAR MINISTROS DO STF

 

Post do 7 de setembro NÃO bolsonarista.

 


 

Fui cortar o cabelo ontem, 6 de setembro, na Barbearia do bairro onde moro e me envolvi sem querer numa discussão com um “cidadão de bem” sobre a prisão do professor Marcinho, de Otacílio Costa. O assunto era futebol de várzea. O barbeiro é goleiro e nos contava sobre os piores campos de futebol da grande Florianópolis. Do nada, um cliente atropelou a conversa e começou a falar, sem ninguém perguntar, sobre a prisão do professor, dizendo que o que o STF estava fazendo era palhaçada, era uma ditadura. “Não pode prender alguém só porque deu a sua opinião”, disse indignado.  Mexendo nervoso no celular e falando alto, o sujeito tomou conta da conversa. Falava sozinho, sem parar, repetindo a ladainha conspiratória bolsonarista como um papagaio treinado. Eu estava quieto, só ouvindo. Mas o sujeito me olhou, afirmou de novo que “estamos vivendo uma ditadura do STF e do careca sem vergonha”, e me perguntou: “Tu não acha?” E eu respondi: “Não, não acho”. Ele tirou os olhos do celular, me olhou com ar de desconfiança e retrucou de forma intimidadora: “Então tu concorda com a prisão de alguém por manifestar apenas a opinião?”

O barbeiro me olhou de canto de olho, apreensivo. Nos conhecemos há mais de vinte anos. Pisquei o olho para ele, como quem diz, fica tranquilo.

“Não, meu amigo”, respondi, “não concordo com a prisão de alguém por dizer o que pensa. Acredito na liberdade de expressão e de pensamento. É um princípio fundamental de uma democracia. Mas não acho que tenha sido este o caso do professor. As prisões que o Alexandre de Moraes está autorizando são corretas e baseadas na Constituição. Ele não está prendendo pessoas apenas por manifestar a opinião. O Roberto Jeferson, o Wellington Macedo e o Zé Trovão, por exemplo, foram presos por ameaçar ministros, ameaçar invadir Instituições e estimular atos de violência. E isso nunca foi, em lugar nenhum, opinião. Estes homens foram presos porque cometeram crimes”.

O “cidadão de bem” parecia não entender bem o que eu estava dizendo. Mas voltou meio agressivo ao assunto: “E o professor aqui de Santa Catarina, o que ele fez de mais? Ele só deu a opinião dele”.

Eu ainda não estava sabendo o que exatamente o tal professor Marcinho tinha dito, sabia da prisão, mas não conhecia o conteúdo das declarações. Perguntei se ele sabia o que o professor havia dito. E ele disse que o homem apenas deu a sua opinião. Eu insisti: “Você leu ou ouviu o que ele disse?” O homem respondeu que não, mas no WhatsApp dizia que ele apenas deu a opinião.

“Olha”, disse para ele, “é difícil alguém ser preso apenas por dar a opinião. Procure se informar sobre o que de fato este professor disse”. Não quis estender a conversa. Já tinha falado demais. O ambiente ficou pesado. O homem estava com cara de poucos amigos. Afinal, eu estava contestando a fonte da verdade do bolsonarismo: o WhatsApp. Dei boa tarde para o “cidadão de bem” e para quem estava por ali, um tapinha no ombro do barbeiro, e fui embora.

Na caminhada de volta para casa, com céu nublado, fiquei pensando sobre o que tinha acontecido. O cidadão recebeu uma mensagem num grupo de WhatsApp que acusava o STF de ter autorizado mais uma prisão arbitrária, cerceando a liberdade de expressão dos apoiadores do presidente. Não informaram o que o professor Marcinho disse. Omitiram esta informação e transformaram o professor em mais uma vítima do odioso STF. Os ativistas bolsonaristas e os blogueiros à soldo agem assim. Espalham notícias falsas e interpretações fraudulentas dos acontecimentos para confundir e criar narrativas paralelas em favor do presidente. As informações, filtradas e acompanhadas de slogans bolsonaristas, acabam chegando à população, que não costuma verificar a informação, como o sujeito da barbearia.  A manipulação das notícias, a meu ver, é uma operação consciente, portanto, criminosa.

Um dos efeitos mais danosos desta orquestração de mentiras é a confusão entre liberdade de opinião e atacar com mentiras e agressões. Liberdade de opinião é o direito que todos nós temos, numa democracia, de dizer o que pensa, independente das opiniões dos outros, de manifestar-se, inclusive sobre e contra o STF. Eu mesmo sou crítico, em algumas circunstâncias, de algumas ações e manifestação de ministros do Supremo. Fiz críticas ao Dias Toffoli, em 2018, quando ele se referiu ao golpe de 64 como um movimento. Fiz críticas duras, manifestei minha opinião, mas não xinguei, não ofendi e não ameacei caçar o ministro ou invadir o STF. E esta é a diferença entre crime e opinião. Os atos criminosos cometidos pelos bolsonaristas presos estão previstos na Constituição e, nestes casos, o STF tem agido corretamente, nos limites da Lei.

Quando cheguei em casa fui procurar a notícia sobre o professor Marcinho e soube que a prisão foi por conta de uma live no Tik Tok. Assisti a live para saber do que se tratava e verifiquei que em nenhum momento o professor manifestou alguma opinião. Ao longo de 3 minutos e 16 segundos, num português sofrível, o professor faz ameaças gravíssimas aos ministros do STF. Ameaças e mais ameaças. Nenhuma opinião. Nenhuma crítica às ações do Supremo.

O que Marcinho disse exatamente? Transcrevo, mantendo a sintaxe peculiar do professor:

“Nós temos um grupamento no Brasil que nós vamos caçar ministros pelo Brasil em qualquer lugar que eles estejam. Fiquei sabendo que acabou, acabou a partir das arbitrariedades de hoje a tarde. Nós estávamos esperando ainda que os caras tentassem reconsiderar. Não vou falar agora quem é, porque podem me torturar, mas tem um empresário grande aí que tá oferecendo ...tem até uma grana federal que vai sair o valor pela cabeça do Alexandre de Moraes. Vivo ou morto... pra quem trazer ele. Então, o Brasil demorou mas aconteceu. Agora no Brasil, o ministro do supremo vai ser assim. Eles vão. Vai ter prêmio pela cabeça deles, tá certo. Não é questão de esquerda e de direita. Tá. Não é contra o Lula, não é contra ninguém. É contra a soberania brasileira voltar a ser o que era. Entendeu? Porque esquerda que acha ruim. Tem gente de esquerda que acha ruim, mas eles esquecem os narcotraficantes que eles liberaram tá lá vendendo droga na porta da escola para o próprio filho, de esquerda, de direita, independente de quem for. Tá certo?  É por isso que o corrupto nós vamos começar a caçar. Cada um já tem um grupamento, nós vamos caçar cada um em seu estado. Desde vereador a prefeito, o pau vai cantar parelho. Não vai ter mais molezinha. Eu, por exemplo, já ontem, acreditem se quiser, aqui na minha cidade, não vou falar onde que é, o cara foi na delegacia, eu cheguei atrás dele junto. Ele chegou na delegacia para fazer um BO, contra mim, eu já cheguei junto atrás. Falei pro delegado: o senhor quem sabe. Pode me prender, mostrei as mãos. E falei para o delegado, me prendes que esse vereador aqui em vou rachar ele no pau. Vai registrar o boletim? Pode registrar. Delegado, tá me ameaçando de morte. Falei: não estou te ameaçando de morte, estou te prometendo. Vou te quebrar todinho, vou deixar todos esses ossos do teu corpo quebrados. Então você não faz isso. Já temos o nome de todos. A maioria dos políticos nós já temos uma ficha, um dossiê guardado. De quem tem, cara que tem até multa de trânsito, pedofilia, tem vários processos tramitando nos tribunais”.

Marcinho é um justiceiro, moralista, que acredita estar numa cruzada cívica pelo Brasil. E é também um valentão, que promete quebrar ossos, caçar ministros e obrigar os políticos a andar na linha.

Desafio o leitor a encontrar a expressão de alguma opinião nesta live, para que a prisão possa ser caracterizada como arbitrária. Professor Marcinho cometeu crimes graves: ameaças de morte, formação de grupos para caçar (com ç) ministros e incentivo explícito à violência. Se isso não é motivo para prisão, o que seria?

Os argumentos do professor são precários, indefensáveis, e soam mais como bravatas. Não creio que existam estes grupos de justiceiros e caçadores de ministros. Parece valentia de rede social, de covardes ignorantes que se sentem poderosos e protegidos por trás dos seus smartphones. (Depois de presos se mostram frágeis, adoecem e pedem perdão). Mas se manifestações como esta não sofrerem algum tipo de advertência e punição, estas pessoas podem entender que suas ações e declarações são legítimas e que ameaçar de morte quem pensa diferente e se opõe ao presidente é uma forma aceitável de expressão política. Ultrapassada esta fronteira, passar das bravatas às ações de fato é um pulo.

Alexandre de Moraes agiu corretamente ao mandar prender o professor. Se o professor sabe de um empresário que paga uma fortuna pela cabeça do ministro, e sabe que existem grupos treinados para caçá-los, e fala sobre isso com absoluta naturalidade, tem que ser preso para investigação. Que ele diga, na delegacia, quem são estes grupos. Que revele o que sabe sobre a “grana federal” pela cabeça do Alexandre de Moares. Se for apenas bravata, que ele se explique e seja punido, pelo menos por sugerir e estimular que ministros devam ser caçados e mortos.

Professor Marcinho diz que não quer revelar nomes porque pode ser torturado. De onde ele tirou isso? Torturado por quem? Se percebe nesta fala a mente confusa e a formação precária do professor. A tortura foi um método brutal para extrair informações de presos políticos no tempo da ditadura, que os bolsonaristas, em geral, admiram. Torturador foi o coronel Brilhante Ustra, considerado um herói nacional pela família Bolsonaro. Marcinho sabe disso? Isso não o incomoda?

A live é uma manifestação da barbárie que o bolsonarismo representa para a política e para a democracia. Só o fanatismo político, combinado com desinformação crônica, pode levar um professor a sugerir numa live, exibida numa rede social popular como o Tik Tok, que ministros da justiça sejam caçados e tenham a cabeça a prêmio.

Vamos resistir à barbárie. O bolsonarismo quer confundir ameaças e mentiras criminosas com liberdade de pensamento. A medida provisória que o presidente assinou ontem, às vésperas do 7 de setembro golpista, para evitar a remoção de conteúdo das redes sociais, é um passe livre para as mentiras descaradas e as ameaças de morte serem tratadas como liberdade de expressão.

 


Fotografia adulterada e compartilhada milhares de vezes por bolsonaristas nas redes sociais, associando Alexandre de Moraes ao PCC.

 

quarta-feira, 14 de julho de 2021

 

FUNDAÇÃO Fahrenheit PALMARES: O EXPURGO BOLSONARISTA DO ACERVO DA BIBLIOTECA

 


O Relatório bolsonarista sobre a Biblioteca da Fundação Cultural Palmares, assinado por Sérgio Camargo e Marco Frenette, dirigido a “todas as pessoas de bem” (seja lá o que isso signifique para eles), é uma coleção de slogans ultraconservadores, arbitrariedades e aberrações. O texto é revestido de um espírito messiânico e patriótico (no sentido corrompido destes conceitos), e os autores parecem imbuídos da missão elevada, a eles conferida pelo próprio Messias, de purificação da Biblioteca e dos ideais da Fundação, contaminados desde a origem, sugere o Relatório, pelo esquerdismo militante.  

Depois de uma busca policialesca no acervo da Biblioteca, no estilo distópico Fahrenheit 451, os inquisidores Sério Camargo e Marco Frenette decidiram pelo descarte de cerca de 300 livros considerados impróprios à Fundação (Mas o expurgo deve alcançar 9 mil títulos). As obras sequestradas abordam, entre outros temas, educação sexual, história do banditismo, sexualidade, história do marxismo, estudos do marxismo revolucionário e de técnicas de guerrilha.  As manobras desonestas que fizeram para justificar o sequestro das obras são de doer. Estudos importantes sobre educação sexual de jovens e adolescentes foram caracterizados como “sexualização da infância”, desconsiderando inclusive o contexto em que foram escritos, e um estudo originalíssimo do Hobsbawm sobre o bandistimo social e rural, que prosperou em algumas partes do mundo sob a ausência do estado, foi classificado como “bandidolatria”. Para comprovar o “elogio ao banditismo”, destacam um trecho do livro, recortado arbitrariamente. Na passagem, o historiador diz que o “banditismo é liberdade, mas numa sociedade camponesa poucos podem ser livres. A maioria das pessoas está presa aos grilhões da autoridade e do trabalho, um reforçando o outro”. Os inquisidores, intelectualmente desonestos, não fazem nenhum esforço para entender o emprego da noção de liberdade, numa sociedade rural tradicional que beira a servidão. Estigmatizam os livros com adjetivos desqualificadores, sem o menor esforço para entendê-los.

A “interpretação” que fazem das obras, distorcida e mal-intencionada, serve apenas para justificar suas posturas autoritárias e agradar ao chefe no Planalto. A ignorância carola dos inquisidores censurou também o livro As Santas Prostitutas, do antropólogo e tradicionalista gaúcho Antonio Augusto Fagundes, sobre a devoção popular por santas não canônicas, que o povo decidiu cultuar. E não poupou nem o passado distante. Sobrou também para a obra Ciranda dos Libertinos, do Marquês de Sade, julgada como pornografia juvenil e adulta, sem nenhuma contextualização. O julgamento deles é atemporal, olímpico, perpetrado por uma moral que não pertence a este mundo. 

Os livros sequestrados da Biblioteca certamente não foram lidos pelos censores. Mapearam os títulos, folhearam uma página ou outra, já convictos do que representavam, julgaram e sentenciaram. É uma caça às bruxas, um atentado à memória da Fundação e um desrespeito brutal à diversidade do conhecimento, comparável ao Index librorum prohibitorum, de meados do século XVI, e às queimas de livros nos regimes nazifascistas.

                                Estudantes nazistas queimando livros de autores judeus. 10 de maio de 1933, em Berlim.

Ademais, se lido com atenção, o Relatório não é sobre conteúdo dos livros, é sobre as mentes perturbadas dos inquisidores. É uma manobra suja para se mostrarem relevantes e alimentar o ódio ideológico pelo que desconhecem. É uma prestação de contas para justificar suas nomeações.

O argumento para encobrir a censura e a liberdade de pensamento, descabível de todos os pontos de vista, é a divergência dos livros dos propósitos da Fundação.  A função da Fundação, segundo o Relatório, é a “promoção da cultura negra e a valorização do negro como parte inseparável do povo brasileiro”. O resto é “desvio da função”. O acervo da Biblioteca não atendia a esta finalidade, diz o relatório. As obras descartadas tratam de temas que não interessam à Fundação. Para a professora de História do Livros, Ana Virgínia Pinheiro, não existe na literatura da Biblioteconomia qualquer referência aos critérios se seleção adotados pela Fundação para justificar a exclusão dos livros. O Relatório, alheio dos princípios bibliométricos que devem orientar a política de desbaste de um acervo, carece de bases técnicas e científicas.

Não resta dúvida de que os censores têm um conceito limitadíssimo de Biblioteca e uma intepretação mais limitada ainda dos propósitos das Fundação. Na verdade, o que eles querem é uma Biblioteca domesticada, alinhada com as diretrizes do bolsonarismo e das teses negacionistas do racismo, que tem sua gênese na noção equivocada de “democracia racial”, que surgiu ainda no século XIX e se projetou no século XX, e pintou e pinta o Brasil como uma democracia mestiça ou um paraíso racial.

Numa Biblioteca como a da Fundação cabem as obras de Gilberto Freyre e Florestan Fernandes, cabem todos os autores e obras que de alguma forma trataram do tema da escravidão e da cultura no Brasil, não importando o espectro político. E por se tratar de uma Biblioteca, aberta ao público, todos os temas são bem-vindos. A história da “cultura negra” no Brasil dialoga com uma variedade de temas. Não se limita à “cultura negra” e a “valorização do negro”.

Se o presidente da Fundação acha que a biblioteca é “brutalmente parcial”, que tem apenas uma linha, não descarte o que tem, acrescente o que julgue faltar. O acervo da Biblioteca é amplo e diversificado porque diferentes grupos e tendências a abasteceram ao longo dos anos. A Biblioteca não é particular, não é a estante de livros do Sérgio Camargo. Como toda Biblioteca, ela é cumulativa e diversa. Ela tem que contemplar os interesses do leitor conservador, do leitor de esquerda, do leitor.

 

                                    Recorte seletivo do acervo da Biblioteca para caracterizar a “dominação marxista”.

Os autores do Relatório falam em três décadas de “dominação marxista na Fundação”. Bem, fazer o que se a direita nunca se interessou pela história da escravidão e pela sorte dos negros e negou a existência de racismo no Brasil, como o próprio Sérgio Camargo? A Fundação tem uma história que não pode ser apagada, gostem dela ou não. Criada em 1988, às Vésperas do Centenário da Abolição da escravatura, foi um marco das lutas do movimento negro no Brasil. A gênese na Fundação articula-se às lutas históricas do movimento negro contra o racismo e pela memória dos africanos no Brasil, e boa parte desta história está ligada aos movimentos de esquerda das décadas 1950, 1960 e 1970, e aos intelectuais negros progressistas, como Carlos Alves Moura, Lélia González, Abdias do Nascimento, Conceição Evaristo, Francisco Lucrécio, Hamilton Cardoso (A lista é enorme).

O cidadão que hoje preside a Fundação, que se define no Facebook como “negro de direita, contrário ao vitimismo e ao politicamente correto”. O problema não é esse. Ser de direita ou de esquerda é escolha de cada um. E ser crítico do vitimismo, quando ele de fato existe, é uma virtude. Não é o caso do Camargo. Na verdade, a julgar pelas declarações, ele é um polemista barato de rede social, imaturo e negacionista tóxico. Gosta de se exibir e causar com frases de efeito agressivas e xingamentos rasteiros. Destaco algumas declarações do seu vomitório geral.

“No Brasil de hoje Zumbi seria um bandido ou defensor de bandido, integrante do MST”.

“O Dia da Consciência Negra "celebra" a escravização de mentes negras pela esquerda. Precisa ser abolido!”

“Esses filhos da puta da esquerda não admitem negros de direita. Vou colocar meta aqui para todos os diretores, cada um entregar um esquerdista. Quem não entregar esquerdista vai sair. É o mínimo que vocês têm que fazer.”

“Deviam dar medalha a branco que meter preto militante na cadeia por crime de racismo”.

“Angela Davis é uma comunista e mocreia assustadora”.

“Se você é africano e acha que o Brasil é racista, a porta da rua é serventia da casa”.

Como levar a sério e aceitar no comando da Fundação Palmares um homem que, contra todas as evidências, nega o racismo no Brasil e defende a ordem escravocrata? Além disso, o sujeito é um macartista enfurecido que obriga os diretores da Fundação e “entregar um esquerdista”, sob pena de serem demitidos.

Para Camargo, a “escravidão era um negócio lucrativo tanto para os africanos que escravizavam, quanto para os europeus que traficavam escravos”. O sujeito diz isso como se fosse a novidade das novidades, como se estivesse revelando alguma coisa que mudaria a visão que temos sobre a escravidão. Qualquer um que tenha lido Joseph Conrad, Manolo Florentino ou Jacob Gorender, sabe que o tráfico era vantajoso, tanto África quanto nas Américas, tanto para os traficantes (comércio) quanto para os régulos africanos (escambo). Os historiadores quando sustentam esta tese, embora divirjam em alguns pontos, pretendem mostrar que o tráfico durou tanto tempo justamente porque o comércio era bastante vantajoso nas duas margens do Atlântico. Mas o que o Camargo pretende? Relativizar a escravidão comprometendo os próprios africanos com o comércio de gentes? Se ele se dispusesse a ler os livros e os autores que demoniza talvez não fosse tão leviano nas afirmações.

 Sua intenção é expurgar a Fundação de tudo o que não agrada sua sensibilidade “conservadora e de direita”. Camargo quer que a Fundação tenha a cara dele. Se comporta como dono. E na condição de novo dono está fazendo uma faxina para descartar e jogar fora tudo o que julga inadequado. A faxina começou pela retirada de nomes de Benedita da Silva, Madame Satã, Marina Silva, Milton Nascimento, Zezé Motta, Gilberto Gil, Elza Soares, Martinho da Vila (27 no total), homenageados pela Fundação. Pessoas que, quer ele queira ou não, tiveram e tem um papel importante na Fundação e na história dos movimentos negros.

A intenção indisfarçável dos autores do Relatório é apagar (queimar) a história de lutas da Fundação e sua vinculação ao pensamento progressista brasileiro, e reduzi-la a um apêndice domesticado do bolsonarismo. Querem uma Fundação com a sua cara.

Ray Douglas Bradbury, numa entrevista à Playboy em 1996, comentando sobre sua obra Fahrenheit 451, disse que a “ficção científica é uma ótima maneira de fingir que você está escrevendo sobre o futuro quando, na verdade, você está atacando o passado recente e o presente.” A “queima” dos livros da Fundação Palmares conseguiu o feito de reunir no presente o pior dos regimes totalitários do passado e abreviar o caminho para o futuro distópico, imaginado por Bradbury. No romance, Guy Montag é um bombeiro, agente do Estado, desviado de sua ocupação original, cuja única função é procurar e queimar livros.

Sérgio Camargo, crítico da supressão das liberdades nos regimes comunistas, age do mesmo modo. Numa atitude totalitária, sequestra livros e os queima, metaforicamente, no altar do ultraconservadorismo. Sérgio Camargo é o Guy Montag do pesadelo distópico bolsonarista que rasga e dilacera o tecido social do Brasil.







 

terça-feira, 8 de junho de 2021

ENTRE CILA E CARÍBDIS: A DIFICIL ESCOLHA DOS PERUANOS NAS URNAS.

 

"Quantos, na nau Sensualidade, que sempre navega com cerração, sem sol de dia, nem estrelas de noite, enganados do canto das sereias e deixando-se levar da corrente, se iriam perder cegamente, ou em Cila, ou em Caríbdis". (Sermão de Santo António aos PeixesPadre António Vieira).

A certa altura da viagem de regresso à Itaca, Odisseu se deparou com duas criaturas ameaçadoras, emboscadas em ambos os lados do estreito de Messina, entre a Itália e a Cicília. Não tinha outra alternativa, tinha que escolher entre Cila e Caríbdis, monstros marinhos que aterrorizavam os navegadores. Cila era um monstro do rochedo, em forma de mulher, com seis cães que devoram tudo o que estivesse a seu alcance. Caríbdis era um monstro das profundezas que sorvia e vomitava água constantemente, formando um redemoinho que engolia tudo. Quem desviasse do turbilhão de Caríbdis se destruiria nos rochedos de Cila. Fosse qual fosse a escolha, as perdas seriam inevitáveis e terríveis.

Navegando em águas perigosas, distantes do continente da democracia, o povo peruano está diante de uma escolha difícil nas urnas. De um lado, o candidato “de esquerda” Pedro Castillo; de outro, Keiko Fujimori, da direita fujimorista e filha do ex-ditador. São candidaturas opostas, com projetos distintos, mas ambas representam perigos significativos às lutas políticas contemporâneas e ao estado democrático de direito. Seja qual for a escolha, no plano da metáfora, a democracia peruana vai de encontro ao redemoinho ou ao rochedo.

Pedro Castillo é professor no ensino fundamental e dirigente sindical. Saiu do anonimato e ficou conhecido do público em 2017, quando esteve à frente de uma greve de professores por melhores salários e contra a avaliação dos professores por desempenho (modelo gerencialista de educação), que durou três meses. A greve o transformou numa liderança nacional e o habilitou a disputar as eleições presidenciais. A campanha do candidato baseou-se em dois eixos fortes: o reconhecimento da saúde e da educação como direitos fundamentais e o combate à corrupção (ponto frágil da opositora).

Concorre à presidência pelo partido marxista leninista mariategusita Peru Libre, fundado e refundado entre 2007 e 2012 por Vladimir Cerrón. A presença de Cerrón na campanha traz algum desconforto à candidatura de Castillo. Ex-governador de Junin, Cerrón foi afastado sete meses depois da posse por corrupção. Indagado sobre a presença do secretário geral do Peru Libre no seu governo, Castilllo, tentando se distanciar, afirmou: “O senhor Vladimir Cerrón está legalmente impedido. Não vão vê-lo nem como porteiro de nenhuma instituição do Estado. Essa luta não é do Cerrón, nem do Castillo, é do povo”.

Na campanha, Castillo defendeu a construção de um “estado socialista” e, na mão oposta da adversária, que o Estado tenha um papel mais presente e ativo na economia. Manifestou interesse em negociar diretamente com os mineradores e empresas de gás para convencê-los a investir parte de seus lucros no país e propôs um aumento do orçamento para a educação de 3,5 % para 10 % do PIB, com o propósito de combater o analfabetismo, investir em melhores salários para os professores e em infraestrutura. Paralelamente, as declarações controversas de Castillo desgastam a imagem de um homem simples, educador rural, que usa chapéu de palha e anda a cavalo, que se coloca ao lado dos pobres e excluídos da ordem econômica e anuncia uma mensagem direta: “Chega de pobres em um país rico”. Conservador em relação às pautas identitárias e à legalização do aborto, Castillo reconhece apenas os direitos de homens e mulheres, como expressões naturais e legítimas, rejeita veementemente o casamento entre pessoas do mesmo sexo e se opõe à inclusão do gênero nos currículos escolares. Recentemente, disse que o feminicídio é resultado da ociosidade gerada pelo Estado e sustentou que o estímulo ao desenvolvimento nacional é a melhor política contra a violência sofrida pelas mulheres. De maioria católica, o Peru, quando comparado à Argentina e ao Uruguai, é um dos países da região mais atrasados nas discussões sobre igualdade de gênero e direitos da comunidade LGBTQI+.

Castillo está longe de ser um outsider da política, como querem alguns analistas políticos. É uma novidade e uma surpresa eleitoral, um azarão talvez, mas não um outsider. Sindicalista e católico, o candidato representa um tipo político muito comum na América Latina, que personifica as lutas sociais, a indignação com a pobreza e a exploração do trabalho e as reveste com o manto moral da religião. Isso explica, em parte, a aversão do candidato ao aborto legal e às reivindicações LGBTQI+. No Peru a religião tem um peso decisivo nas eleições. Foi neste país que o sintagma “ideologia de gênero” apareceu pela primeira vez numa nota oficial da Conferência Episcopal do Peru, intitulada La ideología de género: sus peligros y alcances, assinado pelo ultraconservador monsenhor Óscar Alzamora Revoredo, marianista e bispo auxiliar de Lima, em 1998. Traduzido em diversos idiomas, o texto tornou-se referência e passou a exercer contínua influência na comunidade cristã mais arredia à discussão do tema. Nas mãos dos detratores reacionários “Ideologia de gênero” tornou-se uma arma poderosa para atacar e estigmatizar os adversários, comumente chamados de: destruidores da família, cristofóbicos, homossexualistas, gayzistas, feminazis, pedófilos, heterofóbicos, zoofilistas, e por aí vai. No Peru, o movimento latino-americano contrário a “ideologia de gênero”, “Não se mete com meus filhos” (#ConMisHijosNoteMetas), tem ampla base popular e mobilizou milhares de pessoas em manifestações em 2018.

Fundado em Lima, em 2016, o movimento reuniu milhares de peruanos na Plaza San Martin, em Lima, em novembro de 2018, exigindo que o governo de Martin Vizcarra não promovesse as pautas de gênero nas escolas. A abordagem LGBTQI+ do governo, para representantes do movimento, era fruto de um ideal marxista que quer impor a “ideologia de gênero” pela força coercitiva do Estado. O populismo conservador, de direita e de esquerda, de Keiko e de Castillo, abraçou este movimento e o incorporou às suas campanhas. Castillo tornou-se ativista e Keiko alisou-se a pastores evangélicos também ligados ao movimento.

Trocando em miúdos, Castillo combina o socialismo marxista, a defesa de um Estado forte e interventor, o fim dos monopólios privados e a erradicação da exploração do trabalho, com um conservadorismo intransigente, moralista e homofóbico.

Algumas declarações também colocam o véu da suspeita sobre suas convicções democráticas, como a criação de uma lei de regulação da mídia, o fechamento do Congresso Nacional, caso não aceite a proposta de uma Constituinte, e o fechamento da suprema corte peruana.

Com o perdão do exagero, Pedro Castillo parece uma síntese infeliz de Maduro com Bolsonaro.

Keiko Fujimori, do partido da direita fujimorista Força Popular, não é nenhuma novidade. Keiko fundou o partido em 2009 e foi candidata à presidência em três oportunidades. Carrega o peso do sobrenome e do passado recente, seu e do pai, na política peruana. Pelo lado do pai, os horrores da ditadura, a corrupção e os abusos dos direitos humanos (motivos pelos quais Alberto Fujimori está preso); por sua própria conta, a denúncia de corrupção e a prisão, em 2018, sob a acusação de lavagem de dinheiro e de ter recebido 1, 2 milhão de dólares irregularmente da Odebrecht e de um grupo financeiro peruano para bancar as despesas das campanhas presidenciais de 2011 e 2016.

No lado oposto ao de Castillo, Keiko não é intervencionista, defende a manutenção das regras econômicas em vigor e se posiciona a favor do livre comércio e de medidas que atraiam mais investimentos externos para o país, especialmente para a mineração (área que Castillo quer nacionalizar).

Num esforço para se distanciar da imagem do pai, Keiko tem reiteradamente declarado respeito à democracia. Promete conduzir o país observando o estado democrático de direito, mas com “mão forte”. Chegou a criar um neologismo para caracterizar a “democracia firme” que pretende exercer: demodura. Vindo de quem vem, e com o sobrenome como corolário, o conceito é de provocar calafrios.

Na mesma linha de Trump e Bolsonaro, a campanha de Keiko utilizou as redes sociais para denunciar uma suposta fraude eleitoral em ação e acusar e associar a candidatura de Pedro Castillo ao comunismo (o bicho papão da direita) e ao terrorismo (do Sendero Luminoso). É a velha tática da direita populista de desinformar e espalhar o medo, apelando para teorias conspiratórias, e insistir no discurso envelhecido de que o comunismo ameaça as liberdades. Numa briga com Evo Morales, durante a campanha, mandou um recado que respingou até no Lula: “Eu quero dizer bem claramente ao senhor Evo Morales: você não se meta no meu país, não se meta no Peru. Fora do Peru, Evo Morales! Nós, peruanos, não vamos aceitar a sua ideologia, o socialismo do século 21. Dizemos fora ao comunismo, fora a Maduro, fora a Lula e a esse tipo de ideologias que buscam nos destruir e trazer pobreza”.

Numa campanha populista de direita, seguindo a tendência contemporânea, também não poderiam faltar as fake News. A mais bizarra envolve Leonel Messi. Na sua conta no Twitter, Rafael López Aliaga, aliado de Keiko, divulgou que Messi teria entrado em campo contra Pedro Castillo e a ameaça do comunismo. López Aliaga, conhecido como o “Bolsonaro peruano”, é um empresário milionário e solteiro, ligado à Opus Dei (vanguarda ultraconservadora da igreja católica, muito forte na América Latina), que promete dar combate sem tréguas a “nova ordem marxista”, o suposto plano global para destruir a economia e instaurar um “paraíso socialista”. O sujeito, que se declara apaixonado pela Virgem Maria, se diz “viciado na Eucaristia” e praticante diário da autoflagelação com uma corrente de metal com ponta, para se manter no caminho da castidade.

A imagem, que viralizou nas redes sociais fujimoristas, é uma fraude. Adulteraram uma campanha da Adidas que chamava a atenção para a poluição dos oceanos – Run for the oceans –, que Messi divulgou em suas redes sociais.

Castillo ou Fujimori? Que escolha difícil! Odisseu teve que escolher o caminho menos perigoso. Escolheu, mas perdeu os seus melhores homens e passou a conviver com o terrível peso de sua decisão.

A unidade fraseológica "entre Cila e Caríbdis" nos adverte sobre os perigos que, em situações em que temos que optar por um lado, ambos os lados nos ameaçam simultaneamente.

Para não ser destruído, Odisseu sacrificou seis valorosos homens. Dirigiu seu navio para Cila, para fugir do segundo monstro. Julgou o rochedo menos perigoso. O plano era navegar bem perto e bem depressa. Era preferível perder alguns homens a perder todos. Enquanto do outro lado Caríbdes sorvia a água terrivelmente, Cila agarrou seis dos melhores e mais fortes homens do barco e retirou-se para dentro da caverna para devorá-los. Aterrorizados pelos gritos dos homens que lutavam contra a morte e clamavam por ajuda, o navio conseguiu passar e seguir viagem com os sobreviventes. Foi o mais lamentável espetáculo que os olhos do herói testemunharam, sentenciou Homero.

O Peru se encontra, à sua maneira, no estreito de Messina. As duas candidaturas, não há dúvidas, situam-se em espectros políticos opostos e antagônicos e apontam para distintos modelos de sociedade. Mas as duas campanhas também apontam para a construção de sociedades intolerantes e ameaçadoras às liberdades individuas.


Faço uso livre do que a ciência política chama de “teoria da ferradura” para entender melhor os extremos da política peruana polarizadas nesta eleição. A expressão foi criada por Jean-Pierre Faye, linguista e teórico do pensamento totalitário, no livro O Século das Ideologias, publicado em 2002. Faye se refere a uma ferradura terminológica que reúne os vários matizes da paleta ideológica. Ao contrário de serem extremos opostos expostos num plano linear e contínuo, à semelhança de uma régua, os extremos do espectro político (direita e esquerda) acabam se aproximando, da mesma forma que os extremos de uma ferradura. A ferradura parece uma ferramenta útil para o caso das eleições peruanas. Pedro Castillo e Keiko Fujimori acabam se encontrando, e quase dando as mãos, nos seus arroubos extremistas e manifestações de intolerância. Moralmente, são siameses políticos. São opostos convergentes. As táticas populistas e o conservadorismo atávico os aproximam. São opostos no plano ideológico, pessoal e social. Pedro era menino pobre, de uma família de camponeses, de San Luis de Puña, uma área pobre e periférica do Peru; Keiko nasceu no Peru urbano, cosmopolita, da elite econômica de Lima, é bacharel pela Universidade de Boston, casada com um estadunidense e filha do ex-ditador. Mas ambos compartilham de visões muito semelhantes em relação à pauta de costumes. Ambos se opõem veementemente ao casamento gay, se declaram defensores da família tradicional e não pretendem promover nem reconhecer os direitos da população LGBTQI+ nem o aborto, mesmo em caso de estupro. E tudo isso com amparo bíblico. “O religioso não divide os seguidores de Fujimori ou Castillo, eles são conservadores”, disse, em 31 de maio deste ano, Luiz Pássara, analista do Diálogos do Sul, de Lima. A direita reacionária, da qual Keiko é a representante na eleição, associa a “ideologia de gênero” ao marxismo de Castillo, mas o candidato da esquerda não chega a ser atingido pelas críticas porque é religioso e inimigo declarado das pautas de gênero.

Seja quem for o vencedor das eleições, a travessia do estreito vai ser perigosa. Odisseu apostou no lado menos arriscado. Mesmo assim as perdas foram devastadoras. Mario Vargas Lossa, notório antifujimorista, declarou apoio à Keiko, por considerá-la um “mal menor”. Outros(as) investem em Castillo como uma aposta na democracia. Aqui do meu canto, desejando toda sorte do mundo aos peruanos, torço para que as minorias identitárias, desprezadas por ambos os lados, não fiquem como os companheiros de Odisseu, aos gritos pedindo socorro enquanto o rochedo impiedoso os devorava na sua tranquila e feroz indiferença.

Para diversos analistas, a eleição no Peru, polarizada entre duas candidaturas populistas, reflete a situação de desmonte e descrença nos partidos políticos tradicionais, a crescente desconfiança na política, decorrente dos sucessivos escândalos de corrupção, e os efeitos devastadores da pandemia do coronavírus. O Peru é um dos países mais afetados da América do Sul. No dia 31 de maio o número oficial de mortes por Covid-19 alcançou o total de 180.764 mortos. Segundo dados da Universidade John Hopkins, o Peru tem a pior taxa do mundo de mortos da pandemia em números relativos à população. São mais de 500 vítimas do coronavírus para cada 100 mil habitantes.

Olhando para a nossa paróquia, e com todos os cuidados para não equipararmos realidades distintas e personagens diferentes, estamos às vésperas de adentramos o perigoso estreito de Messina. O rochedo e o redemoinho, por aqui, têm as suas próprias particularidades, mas não são menos perigosos. Mas este é um assunto para um próximo post.       

 

 

 

 



terça-feira, 21 de abril de 2020

HISTÓRIAS EXEMPLARES EM DEFESA DOS DIREITOS À VIDA E À LIBERDADE POLÍTICA: O INSTITUTO DO ASILO DIPLOMÁTICO NO CONTEXTO DAS DITADURAS SUL AMERICANAS.


HISTÓRIAS EXEMPLARES EM DEFESA DOS DIREITOS À VIDA E À LIBERDADE POLÍTICA: O INSTITUTO DO ASILO DIPLOMÁTICO NO CONTEXTO DAS DITADURAS SUL AMERICANAS.



O passado tem grandes lições a dar ao presente. Algumas, dignas de serem celebradas e reverenciadas. Outras, de serem lembradas com pesar e evitadas. Assim concebido, o passado é um tempo vivo, que habita uma dimensão mnemônica do presente, e um relicário inesgotável de exemplos que pode ser acionado em determinadas situações para injetar valores e sangue novo nas artérias do presente. Este uso moral do passado, com propósito exemplar e educativo, tem familiaridade com a função do historiador, apontada por Antoine Proust, “de alargar e enriquecer o presente da sociedade” (1996). A celebração das virtudes e lições do passado, acrescentaríamos, também amplia e delineia o horizonte ético do presente. A história é um campo de disputas políticas e sociais e em certas ocasiões a rememoração de exemplos do passado é um exercício oportuno e um contraponto necessário aos usos desinformados e/ou mal-intencionados de acontecimentos pretéritos.

Diversos “historiadores” (nome genérico para designar prosadores, oradores, políticos e filósofos que se interessaram pela história e escreveram narrativas históricas), da antiguidade e da modernidade europeia, escreveram sobre o passado com o propósito de dar lições ao presente, ou endereça-las ao futuro. Cada um à sua maneira, e atendendo ao que o seu tempo e o seu meio social exigiam, entendiam que o passado era uma espécie de reservatório de virtudes, de equívocos, de bons e de maus exemplos. A história deveria reter os bons exemplos e transmiti-los às futuras gerações para serem imitados. O valor e a utilidade da história eram avaliados em função desta capacidade de fornecer bons exemplos. O historiador ateniense Tucídides viveu e narrou a Guerra do Peloponeso. O registro da guerra, que ele considerava ser a maior de todas, era uma “aquisição para sempre”, exemplar para aquelas gerações que estavam por vir. Por conta da imutabilidade da natureza humana, guerras como aquela irromperiam novamente no futuro (Hartog, 2001).


Políbio, historiador e geógrafo grego romanizado, pretendia que sua obra fosse um guia para conduzir as ações no presente e no futuro, imitando os êxitos e evitando os erros cometidos. Cícero, advogado, orador e escritor romano, denominou este uso moral e pedagógico de historia magistra vitae (história mestra da vida). A história, definida por Cícero como “testemunha dos séculos, luz da verdade, vida da memória, mestra da vida, mensageira do passado” (Hartog, 2001), forneceria exemplos úteis tanto por aquilo que deveria ser imitado quanto por aquilo que deveria ser evitado.  Maquiavel, na obra Comentário sobre a Primeira Década de Tito Lívio, exortava os governantes de sua época a “apoiar-se no exemplo da Antiguidade”. Espantava-se com a ignorância em relação ao “espírito genuíno da história”.  As lições da antigidade eram de vital importância quando se tratava de “ordenar uma república, manter um Estado, governar um reino, comandar exércitos e administrar a guerra, ou distribuir justiça aos cidadãos”. Disposto a “salvar os homens deste erro”, Maquiavel compôs “uma comparação entre fatos antigos e contemporâneos”, para facilitar a compreensão. E esperava que seus leitores pudessem “tirar daqueles livros toda a utilidade que se deve buscar no estudo histórico” (Maquiavel, 1994). Dois séculos depois de Maquiavel, em pleno século das Luzes, Voltaire (2007) reafirmou que a história era a mestra da vida e recomendou que os governantes podiam e deviam aprender com os exemplos históricos.

Para estes “historiadores”, a exceção de Voltaire, a história era cíclica e a natureza humana imutável. Os seres humanos eram os mesmos de sempre, movidos pelas mesmas paixões, e tendiam a repetir suas ações, virtuosas ou não. A história, por sua vez, repetia ciclicamente as mesmas formas de governo (Monarquia, Aristocracia e Democracia) e suas expressões degeneradas (Tirania, Oligarquia e Anarquia). Por isso, o olhar atento para o passado evitaria a repetição dos mesmos e recorrentes erros.

Não pensamos mais como estes “historiadores” e não entendemos a história e a natureza humana da mesma forma, mas a ideia de que os exemplos do passado podem orientar e iluminar as ações no presente continua sendo muito inspiradora. Cabe a nós, no tempo em que vivemos, decidirmos que aspectos e personagens do passado devem servir de guias das nossas lutas e das nossas escolhas éticas, morais e políticas.

Em tempos difíceis para os direitos humanos e para as liberdades políticas, como os que estamos vivendo, no Brasil e no mundo, relembrar as atitudes corajosas em defesa destes direitos no passado pode ser uma das alternativas para enfrentarmos a dureza do presente e construirmos caminhos para futuros possíveis, menos asfixiantes. Na década de 1970 os embaixadores do México e da Suécia, vivendo sob as ditaduras do Chile e do Uruguai, utilizaram-se do Asilo Diplomático e abriram as portas das Embaixadas para abrigar homens, mulheres e crianças perseguidos pelos militares. A atitude corajosa e humana dos embaixadores preservou a dignidade e salvou a vida de milhares de pessoas.

Asilo Diplomático, variação do asilo em sentido amplo, é o conjunto de regras e tratados que protege o indivíduo perseguido em seu próprio país por motivos políticos e que, por isso, não pode permanecer ou retornar ao convívio pátrio. A prática de buscar proteção contra perseguições é recorrente desde os tempos antigos, embora tenha assumido nomes e sentidos diversos em diferentes épocas. A palavra deriva do termo grego ásilon e do latim asylum, que significavam lugar inviolável, templo, local de proteção e refúgio (Ramos, 2011).

O Asilo Diplomático desenvolveu-se a partir de práticas antigas, gregas e romanas, como o refúgio em templos para fugir de perseguições, e o asilo religioso medieval, que tinha nas igrejas um espaço de proteção contra as violências e arbitrariedades decorrentes do desmoronamento das instituições políticas e da justiça romana. Na modernidade europeia a prática se secularizou, deixou de ter um caráter exclusivamente religioso e assumiu contornos mais próximos do que conhecemos hoje. A formação das monarquias centralizadas e a gênese de um ambiente internacional impuseram a necessidade de se firmar acordos e tratados e criar corpos e missões diplomáticas permanentes para representar os Estados soberanos em territórios estrangeiros. Aos Embaixadores eram concedidos privilégios para desempenhar suas funções sem pressões e constrangimentos. No século XVI, quando a noção de soberania ainda estava em gestação, Carlos V instruiu que as casas dos Embaixadores servissem “de Asilo inviolável, como outrora os templos dos deuses e que não seja permitido a ninguém violar este Asilo, qualquer que seja o pretexto invocado" (Fernandes, 1961). A inviolabilidade das residências dos representantes diplomáticos, efeito da consolidação da moderna diplomacia, era um inequívoco sinal de respeito pelo Estado representado. A inviolabilidade estendeu-se também aos meios de transporte dos diplomatas e, em alguns casos, aos anexos e ao bairro da Embaixada. Os sentidos e os propósitos do Asilo Diplomático se ampliaram e se estenderam também aos perseguidos em geral, inclusive criminosos comuns. O cenário modificou-se com as revoluções liberais, nos séculos XXVII e XVIII, que colocaram freios ao poder arbitrário dos reis absolutistas. O Asilo concedido a qualquer criminoso que se arrependesse passou a ser concedido apenas aos perseguidos políticos, indivíduos que sofriam ataque injustificado do poder. O Asilo assumiu um sentido mais específico, de garantia essencial à promoção de direitos, pois impedia a violação da liberdade de expressão e direitos de participação política (Ramos, 2001, p.16). O A auge do Instituto do Asilo na Europa foi no século XVIII, mas a prática estendeu-se até a segunda metade do século XIX, quando conheceu um recuo. Durante a reunião de 1895 do Instituto de Direito Internacional, em Cambridge, um dos participantes declarou que julgava, na Europa, ser tão raro e improvável o Asilo Diplomático, que não haveria utilidade em ocupar-se do tema (Fernandes, 1961).

O Asilo Diplomático é uma invenção europeia, mas foi na América Latina que a prática se enraizou e se notabilizou por meio de Tratados e Convenções promovidos no final do século XIX e na primeira metade do século XX. O turbulento contexto de formação e consolidação dos Estados nacionais gerou enorme instabilidade política na região, provocada pelas lutas entre diferentes grupos que disputavam a primazia política, nas entranhas dos estados em gestação, que explodiu em diversas guerras civis, golpes de estado e revoluções. Diferenças políticas inconciliáveis resultaram em represálias e perseguições aos adversários. Dezenas de indivíduos utilizaram as fronteiras extraterritoriais - Embaixadas, navios de guerra, Consulados - para escapar das perseguições políticas. Na grande maioria dos casos foram as grandes potências europeias e os Estados Unidos que concederam o Asilo. Um dos casos mais conhecidos foi o governador de Buenos Aires, o general Juan Manuel de Rosas. As tropas rosistas foram derrotadas em 1952, na Guerra Civil que envolveu Uruguai, Argentina e Brasil, pela influência sobre o Paraguai e hegemonia na região. Logo depois de renunciar, Rosas se dirigiu à legação britânica e solicitou Asilo Diplomático. Robert Gore, Encarregado dos Negócios em Buenos Aires, sabendo da gravidade da situação, acompanhou o ex-governador e sua filha até o porto para embarcar numa fragata inglesa (Gigena, 1960).

O primeiro esforço multilateral para regulamentar regionalmente o Asilo Diplomático teve como ponto de partida uma iniciativa do Peru, em 1867. O Ministro de relações exteriores convocou uma Conferência para discutir o tema, mas as controvérsias impediram o avanço dos debates. Em 1889 um passo importante foi dado com a assinatura do Tratado de Direito Penal Internacional, em Montevideo, que consagrou o Asilo Diplomático. As normativas estabelecidas na capital do Uruguai, no entanto, não detalharam satisfatoriamente as formas de utilização do Instituto. Em Convenções posteriores, em Havana, em 1928, em Montevideo, em 1933 e 1939, e em Caracas, em 1954, dedicadas especificamente ao tema, a definição de Asilo Diplomático, e as regras de funcionamento, para evitar abusos, foram sendo aos poucos firmadas (Fernandes, 1961).

A prática da concessão do Asilo, utilizada desde o século XIX, e as Convenções e Tratados para dar-lhe forma jurídica mais precisa, criaram uma cultura jurídica e política que o consagraram regionalmente. A prova de fogo viria nas décadas de 1960 e 1970, com as ditaduras civil-militares que dominaram o cenário político sul americano. Num contexto de intensa perseguição política e de brutal violação dos direitos humanos, o Asilo Diplomático foi respeitado. As Embaixadas tornaram-se ilhas invioláveis de liberdade provisória até a formalização e a concessão do salvo-conduto, que autorizava as pessoas a saírem do país. No caso chileno, que registrou o maior número de asilados diplomáticos, milhares de perseguidos políticos (funcionários do governo, artistas, militantes de vários grupos políticos e estudantes), procuraram Asilo nas representações diplomáticas estrangeiras, especialmente do México e da Suécia. As Embaixadas receberam apoio de vários organismos internacionais, como o ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), que colaboravam intensamente alocando os asilados em vários países. Mas nem todas as Embaixadas estavam dispostas a receber os perseguidos. A concessão do Asilo dependia de duas coisas: da posição política do governo e da posição pessoal do Embaixador. Não adiantaria nesta época, por exemplo, recorrer à Embaixada do Brasil, cujas orientações e instruções estavam alinhadas com os governos ditatoriais.

A atuação e intervenção de três Embaixadores em defesa dos perseguidos pelas ditaduras, fazendo valer o instituto do Asilo Diplomático, são dignas de serem lembradas e celebradas. Vicente Muñis Arroyo (Embaixador mexicano no Uruguai), Harald Edelstam (Embaixador sueco no Chile) e Gonzalo Martínes Corbalá (Embaixador mexicano no Chile), não hesitaram no socorro às vítimas e não cederam às pressões dos ditadores.

Vicente Muñiz Arroyo, Embaixador mexicano no Uruguai, outorgou centenas de Asilos Diplomáticos e abrigou os perseguidos políticos, entre 1974 e 1977, tanto na Embaixada quanto em sua própria residência oficial em Montevideo. Ambas as instalações não apresentavam condições e infraestrutura para receber tanta gente. Por isso, o Embaixador assumia as despesas com alimentação, roupas e colchões para os asilados, em virtude da emergência da situação. Arroyo chegou a abrigar, em 1976, quase 200 pessoas em sua residência.  Além de sua casa, disponibilizava para os inesperados hóspedes suas louças, seus discos, sua roupa, sua cama, suas próprias toalhas, e o que faltava comprava e pagava do próprio bolso e não enviava as contas e despesas mensais ao governo mexicano. Entre os asilados havia um número considerável de crianças. Arroyo passou então a promover escolas infantis improvisadas e festas de aniversário, decorando a Embaixada com balões e enfeites (Bielous, 2011). Além da corajosa postura política de sair em defesa e abrigar os perseguidos, o Embaixador ainda demonstrou grande sensibilidade em relação à infância, preservando a inocência das crianças e lhes oferecendo um pouco de alegria em meio à violência incompreensível que as cercava e ameaçava as famílias.

O testemunho de um asilado mostra o empenho do Embaixador para tornar a experiência do Asilo menos traumática: “[...] nos trasladaron a finales de enero a la embajada. [...] Cuando llegamos, el cuento de todos los niños era que todos tenían un regalo que habían recibido de don Vicente el día de Reyes; a lo largo de la escalera que subía a su habitación él habia dejado un paquetito en cada escalón. A los adultos les entregaba regalos en broma [...] a los niños pequeños, juguetes”. Para outro asilado, Muñiz Arroyo: “Fue una gente sumamente generosa, que en ningún momento nos hizo sentir como personas que teníamos que irnos de nuestro país por circunstancias ajenas a nuestro deseo [...] nos hizo sentir como sus huéspedes” (Bielous; Castro, 2008).

Numa linha de atuação semelhante, o embaixador sueco no Chile, Harald Edelstam, saiu em socorro dos que tiveram seus direitos violados. Nos primeiros meses da ditadura chilena, concedeu diversos Asilos Diplomáticos a perseguidos políticos. Segundo estimativas, baseadas em relatos de testemunhas, teria salvo mais de 1300 pessoas da prisão ou da morte, inclusive brasileiros, entre setembro e dezembro de 1973. Desde os primeiros momentos do golpe, Edelstam escondeu refugiados na Embaixada sueca e, dirigindo o próprio carro, saiu em expedições noturnas em busca de outros que necessitavam de ajuda. Com frequência, ia até o centro de detenção montado no Estádio Nacional e salvava prisioneiros da execução. De uma só vez retirou 54 uruguaios que iriam ser executados no dia seguinte (Camacho, 2006).

 Edelstam também emitia salvo-condutos, ajudava a criar documentos falsos para perseguidos, fez contato com outras embaixadas para abrigar refugiados e coordenou ações com organizações internacionais para a fuga dos ameaçados. Desafiando abertamente a ditadura, declarou vários locais como território sueco, e dizia que se fossem atacados seria uma declaração de guerra à Suécia. (Wallin, 2015). Num primeiro momento, Edelstam tentou convencer as pessoas que buscavam ajuda na Embaixada sueca a se dirigir às embaixadas dos países latino-americanos com os quais o Chile possuía convênio de Asilo para perseguidos políticos. A atitude do Embaixador demonstra que o Instituto do Asilo Diplomático estava em vigor e era reconhecido, mesmo naquela situação excepcional de ruptura democrática. Mas nem todas as sedes diplomáticas se dispunham ou podiam receber os perseguidos. As embaixadas do Brasil e do Uruguai, por exemplo, representavam países que também estavam sob ditaduras militares, e outras, como a do México e da Argentina, estavam no limite das suas capacidades. Por isso, Edelstam decidiu abrir as portas aos que buscavam ajuda (Camacho, 2006).

A embaixada cubana, representada naquele momento pela Suécia, por conta da ruptura entre Cuba e Chile, também passou a receber asilados. A sede cubana, de dimensões maiores, foi a que acomodou o maior número de pessoas. Foram utilizados também uma oficina comercial e o Consulado cubanos.  A própria residência do Embaixador sueco, sob imunidade diplomática, serviu de abrigo para os perseguidos. Para atender aos asilados, Edelstam contratou temporariamente vários cidadãos suecos que estavam no Chile para que ajudassem com a compra de alimentos, com a limpeza e a lavanderia, e no resgate de pessoas e materiais valiosos (Camacho, 2006).

Poucas semanas após o golpe, diversos asilados suecos, uruguaios, brasileiros, bolivianos, cubanos, equatorianos, peruanos, argentinos e chilenos, estavam divididos entre as delegações sob a responsabilidade de Edelstam. Krister Wickman, Ministro de Assuntos Exteriores da Suécia, afinado com a determinação do Embaixador, autorizava a ida dos asilados para a Suécia. No final de setembro, mês do golpe, foram 200 autorizações; em janeiro de 1974, chegou a 700 (Camacho, 2006).

As ações do embaixador sueco, e a atenção que a imprensa lhe dedicava, se tornaram um incômodo para a Junta Militar chilena. Em dezembro de 1973, foi declarado persona non grata, e obrigado a deixar o Chile. Edlestam, segundo Camacho, era um “humanista comprometido com os direitos humanos e a democracia, mas cuja personalidade o levou a ter conflitos com os governos de alguns dos países em que exerceu suas funções, especialmente onde ocorriam perseguições políticas, como a Noruega, durante a Segunda Guerra Mundial, e Indonésia ou Guatemala, nos anos sessenta” (2006, p.37, tradução livre). Edelstam foi o único Embaixador expulso do Chile, mas a sua partida não representou o fim dos Asilos concedidos pela Suécia. Seu sucessor, Carl-Johan Groth, de uma maneira mais discreta, manteve a linha política (Camacho, 2006, p.37).

 
Edelstam, com a bandeira do Chile no pescoço e flores na mão, sendo recebido no aeroporto, na Suécia, por asilados chilenos e latino-americanos, em 10 de dezembro de 1973. Foto: Sven-Erik Sjöberg / DN / Scanpix

O Embaixador mexicano no Chille, Gonzalo Martínes Corbalá, também enfrentou a violência da ditadura e usou da inviolabilidade da sua condição e do seu prestígio para acolher os solicitantes de Asilo. A sede da Embaixada abrigou 720 adultos e 36 crianças. Corbalá relatou que as pessoas que solicitavam Asilo "chegavam de 10 em 10, chegavam em grupo de 20”, e ele imediatamente os fazia entrar, pois “não se podia protege-los se não entrassem". Da Embaixada, os asilados partiam para México. O primeiro dos cinco voos, lavando 120 asilados, partiu 4 dias após o golpe. Entre os passageiros, estavam Hortensia Bussi, a viúva de Allende, e suas duas filhas. Pablo Neruda também recebeu oferta de Asilo no México, mas “desistiu” na última hora, alegando falta de ânimo. Corbalá chegou a receber, de Matilde, esposa do poeta, um casaco, o chapéu e as malas para a viagem, mas não deu tempo. Neruda foi hospitalizado e morreu, 12 dias após o golpe, e um dia antes do voo para o México (Quesada; Santaeulalia, 2015). Embora o laudo médico indique o agravamento do câncer da próstata, indícios fortíssimos sugerem que Neruda foi envenenado na véspera da viagem.

Na ficha de solicitação de Asilo, as pessoas escreviam os motivos de buscar proteção junto à delegação mexicana: "porque o México protege os perseguidos nesta noite escura que açoita meu país", escreveu um dos asilados. As fichas foram preenchidas e assinadas por sindicalistas, operários, historiadores, militantes socialistas, limpadores de vidraças, artistas, editores de livros e por políticos próximos a Allende (Quesada; Santaeulalia, 2015). Os Asilos na delegação mexicana ocorreram até 1974, quando o governo mexicano rompeu relações diplomáticos com o Chile, retomando-as somente em 1990.

Os gestos humanitários e a intransigente defesa dos direitos dos asilados promovidos pelos Embaixadores, infelizmente pouco conhecidos, são valorosas lições de virtude política, de dignidade e ajuda ao próximo, que contrastam com os horrores e violências implacáveis praticados pelos militares e pelos Estados ditatoriais sul-americanos.

A polarização política no Brasil e na América do Sul, agudizada nos últimos anos, reabilitou forças obscuras, identificadas com a tortura, com a censura e com a truculência política, trouxe de volta projetos conservadores e autoritários e abriu espaços para os militares retornarem à política. É neste contexto que devemos escavar o passado em busca de bons exemplos. Uma arqueologia das virtudes dignas de serem “imitadas”, diriam os historiadores antigos, pode nos servir de norte político e moral. Imitar os exemplos do passado, por óbvio, não tem a ver com a replicação ou com o simples arremedo do que já foi feito. Além de impossível e indesejável, porque as condições nunca são as mesmas. No nosso caso, podemos substituir imitação por inspiração.  Arroyo, Edelstan e Corbalá são figuras que nos inspiram a atravessar períodos de turbulência sem perder a dignidade, sem se acovardar e sem se curvar aos tiranos. Como bem disse Eliane Brum, numa reflexão inspiradora para a virada do ano: “Este é o desafio de 2020. O ano novo não está dado. 2020 só será novo se nossa resistência resgatar o presente das mãos dos déspotas. Esta é a única resolução possível diante do que vivemos e do que testemunhamos. Cada um de nós precisa se responsabilizar pelo horror do nosso tempo”.
O futuro não está dado. Nossas escolhas no presente refletem as leituras que fazemos do passado. Alguns preferem lembrar Goebbels e homenagear Brilhante Ustra e Pinochet. As escolhas e os exemplos que nos guiam refletem o caráter, o norte ético e os valores que praticamos. Estes homens, e o horror que seus nomes evocam, turvam o presente e apontam para pesadelos futuros.

As minhas escolhas são outras. Eu fico do lado de Corbalá, de Edlestain e de Arroyo, de homens que enfrentaram o horror, desafiaram tiranos e se posicionaram em defesa da vida, da decência e da dignidade humana. E fizeram o que fizeram sem esperar nada em troca. Uma lição para sempre!

Referências Bibliográficas
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