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quinta-feira, 14 de agosto de 2014

“GUERRA MUNDIAL Z”: O COLAPSO DO SISTEMA INTERNACIONAL E O ELOGIO DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS.

“GUERRA MUNDIAL Z”: O COLAPSO DO SISTEMA INTERNACIONAL E O ELOGIO DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS.


Que tipo de ameaça poderia provocar uma catástrofe global capaz de derrubar os alicerces do sistema internacional e mergulhar o mundo no mais completo caos social? Sistema internacional, conceito fundamental para compreender o funcionamento e a dinâmica das relações internacionais, traduz um conjunto de relações e interações entre os atores que o compõe – estados, organizações internacionais, corporações, etc. - e supõe que as ações destes atores repercutem e definem os contornos do ambiente em que atuam. Pressupõe, no meu entendimento, um arranjo histórico, sempre provisório e dinâmico, diferentemente da abordagem tradicional, de linhagem positivista, que supõe o sistema internacional como uma entidade plana e a-histórica, que desde Vestefália, o mito de origem, manteria suas estruturas intactas e imóveis. O arranjo é provisório, o que não quer dizer frágil ou instável, e assume distintas formas históricas. As guerras, mesmo as mais devastadoras, não foram capazes de abalar as bases deste arranjo. A implosão do sistema internacional implicaria, hipoteticamente, na destruição dos seus atores, sobretudo os estados. Haveria um fenômeno capaz de tamanha façanha?

O denominado cinema-catástrofe já explorou este tema e sugeriu, no plano da ficção, diferentes formas possíveis de destruição do mundo. De meteoritos desgarrados a mudanças climáticas extremas, de invasões extraterrestres a epidemias devastadoras, o fim do mundo inspira a imaginação cinematográfica desde a criação do cinema. O gênero cinema-catástrofe se consolidou como estética do cinema americano na década de 1950, na aurora da guerra fria. Susan Sontag, num ensaio inspirado chamado “A imaginação do desastre”, identificou a emergência deste gênero nos filmes B, que exploravam o tema da destruição do mundo pela ação de alienígenas, monstros, animais gigantescos, etc. “Guerra dos Mundos”, dirigido por Byron Haskin em 1953, é um dos melhores exemplos desta safra cinematográfica. Quase sempre, e “Guerra dos Mundos” não é uma exceção, o caos apocalíptico que ameaça tomar o mundo de assalto é evitado por algum tipo de redenção ou manobra astuta de algum(s) indivíduo(s), que também se redime. A mensagem é sempre a mesma: cuidem do mundo que temos, cuidem das pessoas, um dia o mundo que construímos pode desmoronar.

 Guerra Mundial Z, blockbuster inspirado no romance homônimo de Max Brooks, é a mais recente investida cinematográfica na poderosa e lucrativa indústria da catástrofe. O filme, dirigido por Marc Forster, retoma o tema do apocalipse zumbi, de George Romero, e consagrado em filmes como The Walking Dead e Resident Evil, e o explora em escala planetária. Uma pandemia de zumbis, de origem desconhecida, se espalha velozmente pelo mundo dizimando populações inteiras. A humanidade aterrorizada, atomizada e lutando contra o que desconhece, trava uma “guerra mundial” pela própria sobrevivência.

Embora as guerras sejam diferentes quanto às motivações e as técnicas empregadas para dar combate ao inimigo, elas eram, até então, situações de beligerância entre estados. Mesmo a “guerra ao terror”, declarada contra um inimigo opaco, sem base territorial definida e que atua em rede no mundo, foi declarada por um estado, e resultou na invasão territorial de um país. Nas piores guerras, o mundo manteve-se de pé e o sistema internacional, mesmo abalado, conservou suas estruturas e instituições. A “Guerra Mundial Z” traz um novo conceito de guerra. Não é uma guerra convencional, entre estados, ou uma guerra entre grupos humanos. Não é uma guerra econômica, estratégica ou uma disputa por territórios. É uma guerra pela civilização, pela sobrevivência da humanidade. O mundo como nós o conhecemos veio abaixo e os vivos lutam contra os mortos.

No filme, o sistema internacional ruiu na velocidade do avanço da pandemia. No plano interno, as instituições desabaram, as famílias foram dizimadas, os governos sucumbiram, a polícia desapareceu. O caos tomou conta das cidades e as pessoas correm desesperadas em busca de um refúgio. No plano externo, os estados, as instituições e as organizações desapareceram e, com eles, as relações internacionais. O que restou da ordem anterior sobrevive apenas nas intenções e valores internalizados pelos indivíduos.

Em meio ao caos e a falência do sistema internacional, algumas organizações – ONU e OMS - e parte da Marinha dos Estados Unidos, conseguiram manter uma estrutura mínima de funcionamento que permite mobilizar recursos (porta-aviões, aviões, helicópteros, laboratórios e algum prestígio) para encontrar um meio de deter a zumbificação do mundo.  A ONU, ou o que restou dela, organiza uma missão para localizar o lugar onde o surto supostamente começou para tentar encontrar respostas. O ex-agente Gerry Lane (Brad Pitt), especialista em trabalhos perigosos em regiões de conflito, é incumbido da missão. Mesmo com o mundo desabando Gerry, que se apresenta como funcionário da ONU, ainda consegue se valer do prestígio da instituição para realizar as investigações. A autoridade das Nações Unidas é reconhecida em três momentos chaves no filme. Logo na chegada a Corei do Norte, onde possivelmente tudo teria começado, Gerry diz quem é e a que veio e, apesar da zombaria de alguns militares, consegue o apoio que precisa para iniciar os trabalhos de reconhecimento das vítimas. Mais tarde, ao sair às pressas de Israel num voo com outro destino, consegue mudar a trajetória do avião ao colocar o piloto em contato com o vice-presidente da ONU, Thierry Umotoni (Fana Mokoena). Por fim, ao chegar à Escócia, em busca de um laboratório da OMS (Organização Mundial da Saúde, agência especializada em saúde e subordinada às Nações Unidas), obtém a colaboração da equipe de cientistas para testar uma hipótese.

A trama toda gira em torno da odisseia de Gerry em busca de respostas. Da Filadélfia, onde vive com a família, o herói voa para a Coréia do Norte, para Israel e Escócia, sob a bandeira das Nações Unidas. A odisseia global do herói da ONU, que luta contra o tempo, alimenta duas expectativas: encontrar a cura para a praga zumbi e o reencontro com a família. Hollywoodianamente, o filme não frustra as expectativas.


Em “Guerra Mundial Z” a defesa da humanidade contra o apocalipse e a barbárie não está nas mãos dos militares, nem no poder das armas.  Embora a Marinha dos Estados Unidos ofereça toda a logística para a missão da ONU, a esperança do mundo está nas organizações internacionais que, neste momento em que os estados desmoronaram e as forças armadas perderam a articulação e a capacidade de mobilizar recursos de poder, assumem o papel de atores principais.  ONU e OMS, no filme, aparecem como pontos de luz na tenebrosa noite que se abate sobre o mundo. São signos de estabilidade no mundo que desmorona. As organizações, representadas pelas personagens principias, assumem o protagonismo. Às forças armadas é reservado um papel secundário, de apoio à ação do ator central.

Do ponto de vista das Relações Internacionais, o filme, que parece fazer uma aposta nas organizações internacionais e na cooperação para resolver catástrofes mundiais, poderia ser lido como um elogio à ação das organizações e da sua capacidade de articulação de interesses em prol de uma causa global. O apocalipse zumbi, neste caso, é uma metáfora sobre o valor das organizações internacionais, e o triunfo da cooperação, para evitar o colapso do sistema internacional. O funcionário da ONU, valendo-se de toda experiência adquirida em regiões de conflito, e de uma peculiar capacidade de observação, descobriu um tipo de camuflagem, inoculando o vírus de uma doença, para passar despercebido pelos zumbis. A descoberta resultou numa possibilidade de vacina. Sintetizada a vacina, a ONU encarregou-se da missão de distribuí-la mundo afora. O mundo foi salvo de ser devorado num banquete global de zumbis (poderosa metáfora) e pode sonhar com um recomeço graças aos esforços das Nações Unidas e a ação extraordinária do herói não-estatal (piada interna).


A Metáfora Zumbi à Serviço da ONU?

A metáfora zumbi, que já foi empregada para denunciar o consumismo, a violência racial e a concentração de poder das grandes corporações internacionais, desta vez foi acionada para fazer um elogio rasgado à ONU e o panegírico do herói solitário que corre o mundo em busca de uma resposta/cura para a pandemia de zumbis. Brad Pitt, na pele de um ex-funcionário das Nações Unidas, apoiado pelo vice-presidente da organização e pelo que restou da marinha americana, combinam esforços para salvar o mundo do apocalipse. As organizações internacionais são a gota de esperança da humanidade.

É difícil assistir ao filme e não associá-lo as escolhas políticas e a militância internacional em causas humanitárias de Brad Pitt junto as Nações Unidas nos últimos anos. Brad Pitt, um dos produtores do filme, é também, ao lado de sua mulher (Angelina Jolie é Embaixadora da Boa Vontade), um ativista internacional ligado a ONU. Juntos, visitam campos de refugiados em vários países e atuam em diversas missões humanitárias ao redor do mundo.
 “Guerra Mundial Z” traduziria cinematograficamente as opções políticas recentes do ator Brad Pitt?


A Estética Zumbi Higienizada.

“Guerra Mundial Z” esta longe de ser, ou de vir a ser, um filme clássico de zumbis, mas trouxe algumas novidades para dar novo fôlego ao gênero. É um filme de zumbi turbinado, acelerado. Cinematograficamente, Marc Forster abusa das tomadas aéreas a dos grandes planos, para demonstrar a dimensão colossal da catástrofe. E funciona muito bem. Os planos gigantes se alternam com uma montagem vertiginosa, com cortes rápidos e precisos, fechados, que imprimem velocidade ao filme.  A câmera rápida e ágil nos leva junto na correria e no ritmo frenético da narrativa. A excelente sequência inicial é de prender a respiração e se segurar na cadeira. Os zumbis de Marc Forster, diferentemente dos mortos lentos e cambaleantes, correm alucinadamente e realizam acrobacias coletivas extraordinárias, como escalar um gigantesco muro em Jerusalém.


Esqueçam as sequências de mortos-vivos esfomeados devorando restos humanos. Esqueçam as cenas sanguinolentas e o terror explícito. Em “Guerra Mundial Z” o gore e o splatter não tem vez. O terror característico, as mordidas dilacerantes e as cenas fortes dos filmes do (sub)gênero foram suprimidas. Fica tudo subentendido no extracampo. O motivo: aliviar na mordida e no excesso de sangue para atrair os menos afeitos ao terror e atingir faixas etárias mais susceptíveis a cenas chocantes? O resultado é um filme clean, esteticamente asséptico e higienizado, que investe num terror bem comportado – um thriller de suspense na verdade - e suaviza nas mordidas. Mesmo assim, os zumbis de Forster são assustadores, especialmente quando filmados de perto, como nas sequências no laboratório da OMS.






Um comentário:

  1. Muito bom, tive que assistir uma segunda vez o filme com esses novos conceitos apontados pelo professor, incrível como o papel das relações internacionais tem forte atividade neste filme chegando a transformar o "Herói não-estatal" no salvador do mundo.

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