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terça-feira, 21 de abril de 2020

HISTÓRIAS EXEMPLARES EM DEFESA DOS DIREITOS À VIDA E À LIBERDADE POLÍTICA: O INSTITUTO DO ASILO DIPLOMÁTICO NO CONTEXTO DAS DITADURAS SUL AMERICANAS.


HISTÓRIAS EXEMPLARES EM DEFESA DOS DIREITOS À VIDA E À LIBERDADE POLÍTICA: O INSTITUTO DO ASILO DIPLOMÁTICO NO CONTEXTO DAS DITADURAS SUL AMERICANAS.



O passado tem grandes lições a dar ao presente. Algumas, dignas de serem celebradas e reverenciadas. Outras, de serem lembradas com pesar e evitadas. Assim concebido, o passado é um tempo vivo, que habita uma dimensão mnemônica do presente, e um relicário inesgotável de exemplos que pode ser acionado em determinadas situações para injetar valores e sangue novo nas artérias do presente. Este uso moral do passado, com propósito exemplar e educativo, tem familiaridade com a função do historiador, apontada por Antoine Proust, “de alargar e enriquecer o presente da sociedade” (1996). A celebração das virtudes e lições do passado, acrescentaríamos, também amplia e delineia o horizonte ético do presente. A história é um campo de disputas políticas e sociais e em certas ocasiões a rememoração de exemplos do passado é um exercício oportuno e um contraponto necessário aos usos desinformados e/ou mal-intencionados de acontecimentos pretéritos.

Diversos “historiadores” (nome genérico para designar prosadores, oradores, políticos e filósofos que se interessaram pela história e escreveram narrativas históricas), da antiguidade e da modernidade europeia, escreveram sobre o passado com o propósito de dar lições ao presente, ou endereça-las ao futuro. Cada um à sua maneira, e atendendo ao que o seu tempo e o seu meio social exigiam, entendiam que o passado era uma espécie de reservatório de virtudes, de equívocos, de bons e de maus exemplos. A história deveria reter os bons exemplos e transmiti-los às futuras gerações para serem imitados. O valor e a utilidade da história eram avaliados em função desta capacidade de fornecer bons exemplos. O historiador ateniense Tucídides viveu e narrou a Guerra do Peloponeso. O registro da guerra, que ele considerava ser a maior de todas, era uma “aquisição para sempre”, exemplar para aquelas gerações que estavam por vir. Por conta da imutabilidade da natureza humana, guerras como aquela irromperiam novamente no futuro (Hartog, 2001).


Políbio, historiador e geógrafo grego romanizado, pretendia que sua obra fosse um guia para conduzir as ações no presente e no futuro, imitando os êxitos e evitando os erros cometidos. Cícero, advogado, orador e escritor romano, denominou este uso moral e pedagógico de historia magistra vitae (história mestra da vida). A história, definida por Cícero como “testemunha dos séculos, luz da verdade, vida da memória, mestra da vida, mensageira do passado” (Hartog, 2001), forneceria exemplos úteis tanto por aquilo que deveria ser imitado quanto por aquilo que deveria ser evitado.  Maquiavel, na obra Comentário sobre a Primeira Década de Tito Lívio, exortava os governantes de sua época a “apoiar-se no exemplo da Antiguidade”. Espantava-se com a ignorância em relação ao “espírito genuíno da história”.  As lições da antigidade eram de vital importância quando se tratava de “ordenar uma república, manter um Estado, governar um reino, comandar exércitos e administrar a guerra, ou distribuir justiça aos cidadãos”. Disposto a “salvar os homens deste erro”, Maquiavel compôs “uma comparação entre fatos antigos e contemporâneos”, para facilitar a compreensão. E esperava que seus leitores pudessem “tirar daqueles livros toda a utilidade que se deve buscar no estudo histórico” (Maquiavel, 1994). Dois séculos depois de Maquiavel, em pleno século das Luzes, Voltaire (2007) reafirmou que a história era a mestra da vida e recomendou que os governantes podiam e deviam aprender com os exemplos históricos.

Para estes “historiadores”, a exceção de Voltaire, a história era cíclica e a natureza humana imutável. Os seres humanos eram os mesmos de sempre, movidos pelas mesmas paixões, e tendiam a repetir suas ações, virtuosas ou não. A história, por sua vez, repetia ciclicamente as mesmas formas de governo (Monarquia, Aristocracia e Democracia) e suas expressões degeneradas (Tirania, Oligarquia e Anarquia). Por isso, o olhar atento para o passado evitaria a repetição dos mesmos e recorrentes erros.

Não pensamos mais como estes “historiadores” e não entendemos a história e a natureza humana da mesma forma, mas a ideia de que os exemplos do passado podem orientar e iluminar as ações no presente continua sendo muito inspiradora. Cabe a nós, no tempo em que vivemos, decidirmos que aspectos e personagens do passado devem servir de guias das nossas lutas e das nossas escolhas éticas, morais e políticas.

Em tempos difíceis para os direitos humanos e para as liberdades políticas, como os que estamos vivendo, no Brasil e no mundo, relembrar as atitudes corajosas em defesa destes direitos no passado pode ser uma das alternativas para enfrentarmos a dureza do presente e construirmos caminhos para futuros possíveis, menos asfixiantes. Na década de 1970 os embaixadores do México e da Suécia, vivendo sob as ditaduras do Chile e do Uruguai, utilizaram-se do Asilo Diplomático e abriram as portas das Embaixadas para abrigar homens, mulheres e crianças perseguidos pelos militares. A atitude corajosa e humana dos embaixadores preservou a dignidade e salvou a vida de milhares de pessoas.

Asilo Diplomático, variação do asilo em sentido amplo, é o conjunto de regras e tratados que protege o indivíduo perseguido em seu próprio país por motivos políticos e que, por isso, não pode permanecer ou retornar ao convívio pátrio. A prática de buscar proteção contra perseguições é recorrente desde os tempos antigos, embora tenha assumido nomes e sentidos diversos em diferentes épocas. A palavra deriva do termo grego ásilon e do latim asylum, que significavam lugar inviolável, templo, local de proteção e refúgio (Ramos, 2011).

O Asilo Diplomático desenvolveu-se a partir de práticas antigas, gregas e romanas, como o refúgio em templos para fugir de perseguições, e o asilo religioso medieval, que tinha nas igrejas um espaço de proteção contra as violências e arbitrariedades decorrentes do desmoronamento das instituições políticas e da justiça romana. Na modernidade europeia a prática se secularizou, deixou de ter um caráter exclusivamente religioso e assumiu contornos mais próximos do que conhecemos hoje. A formação das monarquias centralizadas e a gênese de um ambiente internacional impuseram a necessidade de se firmar acordos e tratados e criar corpos e missões diplomáticas permanentes para representar os Estados soberanos em territórios estrangeiros. Aos Embaixadores eram concedidos privilégios para desempenhar suas funções sem pressões e constrangimentos. No século XVI, quando a noção de soberania ainda estava em gestação, Carlos V instruiu que as casas dos Embaixadores servissem “de Asilo inviolável, como outrora os templos dos deuses e que não seja permitido a ninguém violar este Asilo, qualquer que seja o pretexto invocado" (Fernandes, 1961). A inviolabilidade das residências dos representantes diplomáticos, efeito da consolidação da moderna diplomacia, era um inequívoco sinal de respeito pelo Estado representado. A inviolabilidade estendeu-se também aos meios de transporte dos diplomatas e, em alguns casos, aos anexos e ao bairro da Embaixada. Os sentidos e os propósitos do Asilo Diplomático se ampliaram e se estenderam também aos perseguidos em geral, inclusive criminosos comuns. O cenário modificou-se com as revoluções liberais, nos séculos XXVII e XVIII, que colocaram freios ao poder arbitrário dos reis absolutistas. O Asilo concedido a qualquer criminoso que se arrependesse passou a ser concedido apenas aos perseguidos políticos, indivíduos que sofriam ataque injustificado do poder. O Asilo assumiu um sentido mais específico, de garantia essencial à promoção de direitos, pois impedia a violação da liberdade de expressão e direitos de participação política (Ramos, 2001, p.16). O A auge do Instituto do Asilo na Europa foi no século XVIII, mas a prática estendeu-se até a segunda metade do século XIX, quando conheceu um recuo. Durante a reunião de 1895 do Instituto de Direito Internacional, em Cambridge, um dos participantes declarou que julgava, na Europa, ser tão raro e improvável o Asilo Diplomático, que não haveria utilidade em ocupar-se do tema (Fernandes, 1961).

O Asilo Diplomático é uma invenção europeia, mas foi na América Latina que a prática se enraizou e se notabilizou por meio de Tratados e Convenções promovidos no final do século XIX e na primeira metade do século XX. O turbulento contexto de formação e consolidação dos Estados nacionais gerou enorme instabilidade política na região, provocada pelas lutas entre diferentes grupos que disputavam a primazia política, nas entranhas dos estados em gestação, que explodiu em diversas guerras civis, golpes de estado e revoluções. Diferenças políticas inconciliáveis resultaram em represálias e perseguições aos adversários. Dezenas de indivíduos utilizaram as fronteiras extraterritoriais - Embaixadas, navios de guerra, Consulados - para escapar das perseguições políticas. Na grande maioria dos casos foram as grandes potências europeias e os Estados Unidos que concederam o Asilo. Um dos casos mais conhecidos foi o governador de Buenos Aires, o general Juan Manuel de Rosas. As tropas rosistas foram derrotadas em 1952, na Guerra Civil que envolveu Uruguai, Argentina e Brasil, pela influência sobre o Paraguai e hegemonia na região. Logo depois de renunciar, Rosas se dirigiu à legação britânica e solicitou Asilo Diplomático. Robert Gore, Encarregado dos Negócios em Buenos Aires, sabendo da gravidade da situação, acompanhou o ex-governador e sua filha até o porto para embarcar numa fragata inglesa (Gigena, 1960).

O primeiro esforço multilateral para regulamentar regionalmente o Asilo Diplomático teve como ponto de partida uma iniciativa do Peru, em 1867. O Ministro de relações exteriores convocou uma Conferência para discutir o tema, mas as controvérsias impediram o avanço dos debates. Em 1889 um passo importante foi dado com a assinatura do Tratado de Direito Penal Internacional, em Montevideo, que consagrou o Asilo Diplomático. As normativas estabelecidas na capital do Uruguai, no entanto, não detalharam satisfatoriamente as formas de utilização do Instituto. Em Convenções posteriores, em Havana, em 1928, em Montevideo, em 1933 e 1939, e em Caracas, em 1954, dedicadas especificamente ao tema, a definição de Asilo Diplomático, e as regras de funcionamento, para evitar abusos, foram sendo aos poucos firmadas (Fernandes, 1961).

A prática da concessão do Asilo, utilizada desde o século XIX, e as Convenções e Tratados para dar-lhe forma jurídica mais precisa, criaram uma cultura jurídica e política que o consagraram regionalmente. A prova de fogo viria nas décadas de 1960 e 1970, com as ditaduras civil-militares que dominaram o cenário político sul americano. Num contexto de intensa perseguição política e de brutal violação dos direitos humanos, o Asilo Diplomático foi respeitado. As Embaixadas tornaram-se ilhas invioláveis de liberdade provisória até a formalização e a concessão do salvo-conduto, que autorizava as pessoas a saírem do país. No caso chileno, que registrou o maior número de asilados diplomáticos, milhares de perseguidos políticos (funcionários do governo, artistas, militantes de vários grupos políticos e estudantes), procuraram Asilo nas representações diplomáticas estrangeiras, especialmente do México e da Suécia. As Embaixadas receberam apoio de vários organismos internacionais, como o ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), que colaboravam intensamente alocando os asilados em vários países. Mas nem todas as Embaixadas estavam dispostas a receber os perseguidos. A concessão do Asilo dependia de duas coisas: da posição política do governo e da posição pessoal do Embaixador. Não adiantaria nesta época, por exemplo, recorrer à Embaixada do Brasil, cujas orientações e instruções estavam alinhadas com os governos ditatoriais.

A atuação e intervenção de três Embaixadores em defesa dos perseguidos pelas ditaduras, fazendo valer o instituto do Asilo Diplomático, são dignas de serem lembradas e celebradas. Vicente Muñis Arroyo (Embaixador mexicano no Uruguai), Harald Edelstam (Embaixador sueco no Chile) e Gonzalo Martínes Corbalá (Embaixador mexicano no Chile), não hesitaram no socorro às vítimas e não cederam às pressões dos ditadores.

Vicente Muñiz Arroyo, Embaixador mexicano no Uruguai, outorgou centenas de Asilos Diplomáticos e abrigou os perseguidos políticos, entre 1974 e 1977, tanto na Embaixada quanto em sua própria residência oficial em Montevideo. Ambas as instalações não apresentavam condições e infraestrutura para receber tanta gente. Por isso, o Embaixador assumia as despesas com alimentação, roupas e colchões para os asilados, em virtude da emergência da situação. Arroyo chegou a abrigar, em 1976, quase 200 pessoas em sua residência.  Além de sua casa, disponibilizava para os inesperados hóspedes suas louças, seus discos, sua roupa, sua cama, suas próprias toalhas, e o que faltava comprava e pagava do próprio bolso e não enviava as contas e despesas mensais ao governo mexicano. Entre os asilados havia um número considerável de crianças. Arroyo passou então a promover escolas infantis improvisadas e festas de aniversário, decorando a Embaixada com balões e enfeites (Bielous, 2011). Além da corajosa postura política de sair em defesa e abrigar os perseguidos, o Embaixador ainda demonstrou grande sensibilidade em relação à infância, preservando a inocência das crianças e lhes oferecendo um pouco de alegria em meio à violência incompreensível que as cercava e ameaçava as famílias.

O testemunho de um asilado mostra o empenho do Embaixador para tornar a experiência do Asilo menos traumática: “[...] nos trasladaron a finales de enero a la embajada. [...] Cuando llegamos, el cuento de todos los niños era que todos tenían un regalo que habían recibido de don Vicente el día de Reyes; a lo largo de la escalera que subía a su habitación él habia dejado un paquetito en cada escalón. A los adultos les entregaba regalos en broma [...] a los niños pequeños, juguetes”. Para outro asilado, Muñiz Arroyo: “Fue una gente sumamente generosa, que en ningún momento nos hizo sentir como personas que teníamos que irnos de nuestro país por circunstancias ajenas a nuestro deseo [...] nos hizo sentir como sus huéspedes” (Bielous; Castro, 2008).

Numa linha de atuação semelhante, o embaixador sueco no Chile, Harald Edelstam, saiu em socorro dos que tiveram seus direitos violados. Nos primeiros meses da ditadura chilena, concedeu diversos Asilos Diplomáticos a perseguidos políticos. Segundo estimativas, baseadas em relatos de testemunhas, teria salvo mais de 1300 pessoas da prisão ou da morte, inclusive brasileiros, entre setembro e dezembro de 1973. Desde os primeiros momentos do golpe, Edelstam escondeu refugiados na Embaixada sueca e, dirigindo o próprio carro, saiu em expedições noturnas em busca de outros que necessitavam de ajuda. Com frequência, ia até o centro de detenção montado no Estádio Nacional e salvava prisioneiros da execução. De uma só vez retirou 54 uruguaios que iriam ser executados no dia seguinte (Camacho, 2006).

 Edelstam também emitia salvo-condutos, ajudava a criar documentos falsos para perseguidos, fez contato com outras embaixadas para abrigar refugiados e coordenou ações com organizações internacionais para a fuga dos ameaçados. Desafiando abertamente a ditadura, declarou vários locais como território sueco, e dizia que se fossem atacados seria uma declaração de guerra à Suécia. (Wallin, 2015). Num primeiro momento, Edelstam tentou convencer as pessoas que buscavam ajuda na Embaixada sueca a se dirigir às embaixadas dos países latino-americanos com os quais o Chile possuía convênio de Asilo para perseguidos políticos. A atitude do Embaixador demonstra que o Instituto do Asilo Diplomático estava em vigor e era reconhecido, mesmo naquela situação excepcional de ruptura democrática. Mas nem todas as sedes diplomáticas se dispunham ou podiam receber os perseguidos. As embaixadas do Brasil e do Uruguai, por exemplo, representavam países que também estavam sob ditaduras militares, e outras, como a do México e da Argentina, estavam no limite das suas capacidades. Por isso, Edelstam decidiu abrir as portas aos que buscavam ajuda (Camacho, 2006).

A embaixada cubana, representada naquele momento pela Suécia, por conta da ruptura entre Cuba e Chile, também passou a receber asilados. A sede cubana, de dimensões maiores, foi a que acomodou o maior número de pessoas. Foram utilizados também uma oficina comercial e o Consulado cubanos.  A própria residência do Embaixador sueco, sob imunidade diplomática, serviu de abrigo para os perseguidos. Para atender aos asilados, Edelstam contratou temporariamente vários cidadãos suecos que estavam no Chile para que ajudassem com a compra de alimentos, com a limpeza e a lavanderia, e no resgate de pessoas e materiais valiosos (Camacho, 2006).

Poucas semanas após o golpe, diversos asilados suecos, uruguaios, brasileiros, bolivianos, cubanos, equatorianos, peruanos, argentinos e chilenos, estavam divididos entre as delegações sob a responsabilidade de Edelstam. Krister Wickman, Ministro de Assuntos Exteriores da Suécia, afinado com a determinação do Embaixador, autorizava a ida dos asilados para a Suécia. No final de setembro, mês do golpe, foram 200 autorizações; em janeiro de 1974, chegou a 700 (Camacho, 2006).

As ações do embaixador sueco, e a atenção que a imprensa lhe dedicava, se tornaram um incômodo para a Junta Militar chilena. Em dezembro de 1973, foi declarado persona non grata, e obrigado a deixar o Chile. Edlestam, segundo Camacho, era um “humanista comprometido com os direitos humanos e a democracia, mas cuja personalidade o levou a ter conflitos com os governos de alguns dos países em que exerceu suas funções, especialmente onde ocorriam perseguições políticas, como a Noruega, durante a Segunda Guerra Mundial, e Indonésia ou Guatemala, nos anos sessenta” (2006, p.37, tradução livre). Edelstam foi o único Embaixador expulso do Chile, mas a sua partida não representou o fim dos Asilos concedidos pela Suécia. Seu sucessor, Carl-Johan Groth, de uma maneira mais discreta, manteve a linha política (Camacho, 2006, p.37).

 
Edelstam, com a bandeira do Chile no pescoço e flores na mão, sendo recebido no aeroporto, na Suécia, por asilados chilenos e latino-americanos, em 10 de dezembro de 1973. Foto: Sven-Erik Sjöberg / DN / Scanpix

O Embaixador mexicano no Chille, Gonzalo Martínes Corbalá, também enfrentou a violência da ditadura e usou da inviolabilidade da sua condição e do seu prestígio para acolher os solicitantes de Asilo. A sede da Embaixada abrigou 720 adultos e 36 crianças. Corbalá relatou que as pessoas que solicitavam Asilo "chegavam de 10 em 10, chegavam em grupo de 20”, e ele imediatamente os fazia entrar, pois “não se podia protege-los se não entrassem". Da Embaixada, os asilados partiam para México. O primeiro dos cinco voos, lavando 120 asilados, partiu 4 dias após o golpe. Entre os passageiros, estavam Hortensia Bussi, a viúva de Allende, e suas duas filhas. Pablo Neruda também recebeu oferta de Asilo no México, mas “desistiu” na última hora, alegando falta de ânimo. Corbalá chegou a receber, de Matilde, esposa do poeta, um casaco, o chapéu e as malas para a viagem, mas não deu tempo. Neruda foi hospitalizado e morreu, 12 dias após o golpe, e um dia antes do voo para o México (Quesada; Santaeulalia, 2015). Embora o laudo médico indique o agravamento do câncer da próstata, indícios fortíssimos sugerem que Neruda foi envenenado na véspera da viagem.

Na ficha de solicitação de Asilo, as pessoas escreviam os motivos de buscar proteção junto à delegação mexicana: "porque o México protege os perseguidos nesta noite escura que açoita meu país", escreveu um dos asilados. As fichas foram preenchidas e assinadas por sindicalistas, operários, historiadores, militantes socialistas, limpadores de vidraças, artistas, editores de livros e por políticos próximos a Allende (Quesada; Santaeulalia, 2015). Os Asilos na delegação mexicana ocorreram até 1974, quando o governo mexicano rompeu relações diplomáticos com o Chile, retomando-as somente em 1990.

Os gestos humanitários e a intransigente defesa dos direitos dos asilados promovidos pelos Embaixadores, infelizmente pouco conhecidos, são valorosas lições de virtude política, de dignidade e ajuda ao próximo, que contrastam com os horrores e violências implacáveis praticados pelos militares e pelos Estados ditatoriais sul-americanos.

A polarização política no Brasil e na América do Sul, agudizada nos últimos anos, reabilitou forças obscuras, identificadas com a tortura, com a censura e com a truculência política, trouxe de volta projetos conservadores e autoritários e abriu espaços para os militares retornarem à política. É neste contexto que devemos escavar o passado em busca de bons exemplos. Uma arqueologia das virtudes dignas de serem “imitadas”, diriam os historiadores antigos, pode nos servir de norte político e moral. Imitar os exemplos do passado, por óbvio, não tem a ver com a replicação ou com o simples arremedo do que já foi feito. Além de impossível e indesejável, porque as condições nunca são as mesmas. No nosso caso, podemos substituir imitação por inspiração.  Arroyo, Edelstan e Corbalá são figuras que nos inspiram a atravessar períodos de turbulência sem perder a dignidade, sem se acovardar e sem se curvar aos tiranos. Como bem disse Eliane Brum, numa reflexão inspiradora para a virada do ano: “Este é o desafio de 2020. O ano novo não está dado. 2020 só será novo se nossa resistência resgatar o presente das mãos dos déspotas. Esta é a única resolução possível diante do que vivemos e do que testemunhamos. Cada um de nós precisa se responsabilizar pelo horror do nosso tempo”.
O futuro não está dado. Nossas escolhas no presente refletem as leituras que fazemos do passado. Alguns preferem lembrar Goebbels e homenagear Brilhante Ustra e Pinochet. As escolhas e os exemplos que nos guiam refletem o caráter, o norte ético e os valores que praticamos. Estes homens, e o horror que seus nomes evocam, turvam o presente e apontam para pesadelos futuros.

As minhas escolhas são outras. Eu fico do lado de Corbalá, de Edlestain e de Arroyo, de homens que enfrentaram o horror, desafiaram tiranos e se posicionaram em defesa da vida, da decência e da dignidade humana. E fizeram o que fizeram sem esperar nada em troca. Uma lição para sempre!

Referências Bibliográficas
CAMACHO, Fernando. Los asilados de las Embajadas de Europa Occidental en Chile tras el golpe militar y sus consecuencias diplomáticas: El caso de Suecia. Revista Europea de Estudios Latinoamericanos y del Caribe, Espanha, n.81, 2006.
BIELOUS, Silvia Dutrénit. La embajada indoblegable. Montevideo: Fin de Siglo, 2011.
BIELOUS, Silvia Dutrénit; CASTRO, Ana Buriano. Refugio en el sur, un embajador inolvidable: eje memorístico e identitario en nuevas experiencias testimoniales. CUADERNOS DEL CLAEH n.° 96-97 Montevideo, 2.' serie, año 31, 2008.
FERNANDES, Carlos Augusto. Do Asilo Diplomático. Coimbra: 1961.
GIGENA, Carlos Torres. Asilo Diplomático: su práctica y su teoría. Buenos Aires: La Ley S. A. Editora e Impresora, 1960.
HARTOG, François. A história de Homero a Santo Agostinho. Tradução de Jacynto Lins Brandão. Belo Horizonte: UFMG, 2001.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução de Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto: PUC-Rio, 2006.
MAQUIAVEL. Comentário sobre a Primeira Década de Tito Lívio. Brasília: Editora a UNB, 1994.
PROUST, Antoine. Dez lições sobre a história. Autêntica, 2009.
SILVA, João Jorge Massaneiro da. A utilização do Asilo Diplomático na América do Sul durante as Ditaduras Militares nas décadas de 1960, 1970 e 1980: um estudo de caso do Chile sob a ditadura de Pinochet. Monografia defendida no curso de relações Internacionais, da UNIVALI, em 2016.
POLÍBIO. História. Brasília: Editora da UNB, 1985.
QUESADA, Juan Diego; SANTAEULALIA, Inés. “Porque o México protege os perseguidos nesta noite negra...”. Em País, 2015.
RAMOS, André de Carvalho. Asilo e Refúgio: semelhanças, diferenças e perspectivas. In: ______: RODRIGUES, Gilberto; ALMEIDA, Guilherme Assis de (Orgs.). 60 anos de ACNUR: perspectivas de futuro. São Paulo: CLA Cultural, 2011. p. 15-44.
TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso. Brasília: Universidade de Brasília, 1986.
VOLTAIRE. A filosofia da história. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
WALLIN, Claudia Varejão. Filme conta história de ‘Schindler sueco’ da ditadura chilena. ESTADÃO, São Paulo, 23 nov. 2007. Cultura Cinema.


4 comentários:

  1. Ótima reflexão professor, espero que sempre atualize o seu blog, necessito de uma "injeção" de artigos inteligentes seus. Um grande abraço.

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  2. Salve, Paulo! Como sempre te disse, teus textos são um alento nesses momentos!
    Que os personagens (e teus escritos) sirvam de inspiração. Abs!

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  3. Juliano, meu caro. Obrigado.
    Me mande noticias tuas.
    Abraços.

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