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segunda-feira, 20 de maio de 2013

CARTA DE KROPOTKIN À LENIN: Da Revolução à Ditadura de um Partido.




CARTA DE KROPOTKIN À LENIN: Da Revolução à Ditadura de um Partido.




A crítica anarquista, a despeito do romantismo revolucionário e de certa ingenuidade política (o que sempre me pareceu ser o charme dos anarquistas), sempre foi das mais lúcidas e honestas. A integridade, a firmeza de caráter e o antiautoritarismo de homens como Kropotkin (e aqui no Brasil o inesquecível Edgard Leuenroth) representam um contraponto necessário que sublinha e acentua os desvios e os abusos praticados em nome do socialismo e do comunismo ao longo do século XX e neste começo do século XXI. O legado é inestimável. Vou dar uma pequena amostra.


Depois da vitória dos bolcheviques Piotr Alexeyevich Kropotkin retornou entusiasmado à Rússia, em meados de 1917. Estava motivado e inebriado pelos acontecimentos. Lenin tentou uma aproximação a fim de convertê-lo à causa bolchevique. O prestígio de Kropotkin era enorme na Rússia. Mas o entusiasmo logo se transformou em manifesta desconfiança. Passou a criticar duramente a postura totalitária e os métodos bolcheviques, acusando-os de estar construindo uma ditadura sob o comando de Lenin, sem se importar com o próprio povo, que era mais revolucionário que os próprios bolcheviques. No começo de 1919 os dois se reuniram em Moscou e Kropotkin defendeu as cooperativas, que estavam sendo atacadas pelos bolcheviques. O tom da reunião foi ameno, mas a partir daquele momento as críticas foram se tornando cada vez mais duras. Numa das cartas à Lenin, Kropotkin disse sem meias palavras: “Lenin não se compara a nenhuma figura revolucionária da história. Revolucionários tinham ideais, Lenin não tem nada. Lenin, suas ações concretas são completamente contrárias às ideias que você finge sustentar”. Não há dúvidas de que o pragmatismo glacial e as escolhas de Lenin assustavam o experiente e ressabiado anarquista. Em certo sentido entendo as escolhas de Lenin (além de admirá-lo como vigoroso teórico), e esforço-me para compreendê-las naquele contexto. Mas Kropotkin, que também viveu aqueles tempos turbulentos, é a crítica contemporânea, escrita no calor da hora, ao caminho que Lenin decidiu trilhar. Por mais que eu me esforce para entender Lenin, devo admitir, minha consciência histórica sobre o que se convencionou chamar de “revolução russa”, deve muito mais a Kropotkin. A desconfiança do velho anarquista em relação aos pretensos guias da vontade popular orienta, em grande medida, a leitura que faço dos caminhos de certa esquerda latino-americana hoje.



Kropotkin morreu alguns meses depois, em 8 de fevereiro de 1921. O governo bolchevique, que sempre tentou usar a seu favor a popularidade e a credibilidade do velho e autêntico REVOLUCIONÁRIO, ofereceu um funeral oficial. Felizmente a família e amigos libertários recusaram a duvidosa oferta. Uma multidão de trabalhadores, estudantes, camponeses, soldados e admiradores foram espontaneamente até a casa onde Kropotkin estava sendo velado. Escolas fecharam as portas e a multidão acompanhou o cortejo até a estação de trem, de onde o corpo foi transportado para Moscou. Na capital uma multidão de mais de cem mil pessoas recebeu o corpo e o acompanhou por oito quilômetros até o cemitério Novodévichi, ao som da Sinfonia Patética, de Tchaikovsky. Vários amigos e correligionários tomaram a palavra para homenagear Kropotkin, e Aarón Barón (anarquista que foi posto em liberdade provisória), último a falar, protestou contra as prisões arbitrárias e as torturas contra os revolucionários que faziam oposição aos bolcheviques (Prisões arbitrárias e torturas não acontecem apenas na prisão de Guantánamo). Para muitos historiadores do anarquismo o funeral de Kropotkin foi a última grande manifestação libertária na URSS. A máquina bolchevique de triturar não permitiria mais manifestações como esta. Recomendo que pesquisem sobre a figura “dramática e dostoievskiana” (George Woodcock) de Nestor Makhno, líder anarquista rural que enfrentou a ferocidade do “exército vermelho”. Só depois de vencer Makhno e as forças anarquistas é que os bolcheviques conseguiram “adaptar o mundo camponês ao estado marxista” na Ucrânia (Woodcock).





Oradores e amigos no funeral de Kropotkin.












Multidão acompanhando o funeral.







Na carta endereçada ao líder da revolução, reproduzida abaixo, Kropotkin sugere que o camarada Lenin saia do seu gabinete, deixe os livros um pouco de lado e vá conhecer os anseios, os desejos e as necessidades do “povo”. Uma revolução não poder ser concebida à revelia do “povo”. Uma revolução concebida apenas na teoria pode se converter em fantasmagoria. Neste caso, o “povo”, em nome do qual se opera a mudança, torna-se um colossal estorvo, e a revolução se volta contra ele. A revolução, como ideal, não enche barriga. Ela pode ser o alimento do espírito para os intelectuais, mas não é o trigo que alegra a mesa do “povo”. 

As palavras dirigidas à Lenin em 1920 revelaram a força da intuição e a aguda observação do velho anarquista. Nas décadas seguintes o partido se transformaria num mostro tentacular e devorador da própria revolução: a versão bolchevique do Saturno de Goya. A revolução devoraria seus filhos e maltrataria o “povo”, em nome do “povo”. Lenin já estava morto, Kropotkin também. Mas antes de morrer Lenin foi alertado. 

Mas afinal, o que Kropotkin teria a dizer a nós, homens e mulheres do século XXI, que ainda acreditamos que o mundo pode ser melhor (embora por caminhos diferentes)? Além do alerta do perigo do autoritarismo que ronda a ideia de revolução, um recado para os “revolucionários” latino-americanos: o “povo” é de verdade. “Povo” não é “massa”. “Povo” não é discurso. Revolução não é um brinquedinho temporário da classe média universitária nem um capricho de uma elite intelectual que se refugiou preguiçosamente no mundo das ideias. Deixem a teoria e a soberba um pouco de lado e afinem os ouvidos. Ouçam o que o “povo” tem a dizer. Pode soar estranho, conservador até, mas se não for assim, o ideal da revolução vai seguir sua marcha surda e indiferente, iluminada por uma teoria descolada do mundo real que atribui um papel ao “povo” que ele teimosamente se recusa a cumprir.

As palavras e o alerta de Kropotkin ecoam em “nuestra América” (sempre as voltas com a “revolución”), os métodos bolcheviques também. Kropotkin, revolucionário genuíno e crítico implacável do autoritarismo, é um excelente companheiro de viagem pela história das revoluções sul-americanas e seus desdobramentos contemporâneos. O velho anarquista sabia das coisas.

A Carta.

“Vivendo no centro de Moscou, você não pode conhecer a verdadeira situação do país. Teria de deslocar-se às províncias, manter estreitos vínculos com as pessoas, compartilhar seus desejos, trabalhos e calamidades; com os esfomeados – adultos e crianças – suportar os inconvenientes sem fim que impedem a obtenção de provisão para um mísero lampião … E as conclusões a que chegaria, poderiam ser resumidas numa só: a necessidade de abrir caminho para condições de vida mais normais. Se não o fizermos, esta situação nos conduzirá a uma sangrenta catástrofe. Nem as locomotivas dos aliados, nem a exportação de trigo, algodão, cobre, linho ou outros materiais dos quais temos enormes necessidades poderão salvar a população.

Em vez disso fica uma verdade: ainda que a ditadura de um partido constituísse um meio útil para combater o regime capitalista – o que duvido muito - , esta mesma ditadura seria totalmente nociva para a criação de uma ordem socialista. O trabalho, necessariamente, tem de constituir-se na base das forças locais, mas até agora, isto não ocorre nem é estimulado por nenhum lado. Em seu lugar se encontram, a todo instante, individualidades que desconhecem a vida real e cometem os maiores erros, ocasionando a morte de milhares de pessoas e arruinando regiões inteiras. Sem a participação das forças locais, sem o trabalho construtivo de baixo para cima, executado pelos trabalhadores e todos os cidadãos, a edificação de uma nova vida é impossível.

Uma obra semelhante poderia ser empreendida pelos sovietes, pelos conselhos locais. Mas a Rússia, devo enfatizar, é uma república soviética apenas no nome. A influência e o poder dos homens do partido, que são frequentemente estranhos ao comunismo – os devotos da ideia estão sobretudo instalados aí no centro – têm aniquilado a influência verdadeira e a força daquelas instituições que muito prometiam: os sovietes. Repito: não há mais sovietes na Rússia, mas somente comitês do partido que fazem e desfazem. E as suas organizações padecem de todos os males do funcionalismo.
Para sair da desordem atual a Rússia deve retomar o espírito criador das forças locais que, asseguro, são as únicas capazes de multiplicar os fatores de uma nova vida. Quando antes se compreender isto, melhor! As pessoas se disporão a aceitar mais facilmente as novas formas de organização social. Entretanto, se a situação atual se prolongar, a mesma palavra socialismo se converterá numa maldição, como ocorreu na França com a ideia igualitária durante os quarenta anos que seguiram ao governo dos jacobinos.”

Piotr Kropotkin – Dimitrov, 04 de março de 1920











REVOLUÇÃO E ESCATOLOGIA: A REVOLUÇÃO BOLIVARIANA E A ESCASSEZ DE PAPEL HIGIÊNICO.



REVOLUÇÃO E ESCATOLOGIA: A REVOLUÇÃO BOLIVARIANA E A ESCASSEZ DE PAPEL HIGIÊNICO. 




Como já era de se esperar, o governo de Nicolás Maduro não vai ter vida fácil. A política do governo de controle dos preços de produtos básicos, praticada desde 2003, tem provocado escassez de alimentos. O desabastecimento sazonal de alguns produtos como laticínios, café, açúcar, azeite, manteiga, leite e farinha de milho, para preparar as arepas, espécie de pão dos venezuelanos, vem causando transtornos e complicações para a revolução. “Revolução” sem pão, não dá.

O que já estava ruim, piorou. A crise de abastecimento alcançou agora a higiene dos venezuelanos. O papel higiênico sumiu das prateleiras. Virou artigo de luxo, dizem alguns. Sem pão até que vai, dá para improvisar, mas sem papel higiênico. A guerra de informações e acusações é ensurdecedora. O governo culpa os empresários, os grupos de oposição e uma "campaña mediática" que estaria promovendo uma demanda excessiva do produto pra desestabilizar o país. Alguns denunciam uma sabotagem da direita. Os empresários e representantes dos consumidores, por sua vez, culpam o governo. Alguns economistas afirmam que a escassez de produtos decorre dos controles de preços para tornar produtos básicos acessíveis para os mais pobres, e também dos controles cambiais impostos pelo governo. Roberto Léon, presidente da Associação Nacional de Usuários e Consumidores (Anauco) diz que é uma questão de matemática simples: não é possível pedir a um empresário que importe ou produza e saia perdendo. Segundo Léon, por conta da falta de variedade, há muitos anos os venezuelanos deixaram de poder optar sobre a qualidade dos produtos que entram na sua despensa. "É preciso que o vizinho avise que chegou azeite ao supermercado. Aí você vai correndo comprar, enfrenta fila e descobre que não vai ser possível pegar o melhor". William Sayago, subgerente de um centro comercial em Caracas, garantiu que: "Não tem papel porque aqui o papel é vendido muito barato, não no preço real. Ninguém quer produzir nem importar” (Informações retiradas de sites e agências internacionais). 

Quer dizer, o estado, que tem o controle de tudo, não consegue sequer garantir o papel higiênico. Quem sabe a “revolução”, como interprete da vontade do povo, não baixa uma norma proibindo os venezuelanos de evacuar sem necessidade. Ou declara de vez que o uso de papel higiênico é um capricho burguês ou uma imposição do imperialismo. Cagada por cagada...

O ministro do comércio, Alejandro Fleming, vanguarda da “revolução”, reagiu ao desconforto da escassez do produto e, na semana passada, anunciou que vai importar 50 milhões de rolos de papel. A ideia é "saturar" o mercado local e acabar com a "campaña mediática" que promove uma excessiva demando do produto. "Vamos a traer 50 millones para demostrarle a esos grupos que no lograran doblegarnos". "La revolución traerá al país el equivalente a 50 millones de rollos de papel higiénico (...) para que nuestro pueblo se tranquilice y comprenda que no debe dejarse manipular por la campaña mediática de que hay escasez".

Fleming nega que exista escassez. No banheiro dele certamente não. Num típico delírio bolivariano, evoca a poderosa imagem da “revolução” como entidade protetora da higiene popular.  “La revolución” trará 50 milhões de rolos de papel. A “revolução” não vai deixar o povo na mão. 

Triste sina a da revolução: garantir o papel higiênico.  Será esta a contribuição bolivariana à história das revoluções?  Escatologia por escatologia eu ainda preferia aquela que anunciava o derradeiro e luminoso porvir. Nunca imaginei que um dia a “revolução” acabaria encurralada num vaso sanitário!

terça-feira, 7 de maio de 2013

O QUE A REVISTA FORBES NÃO SABIA. OU: A Fortuna de Fidel Castro Segundo Emir Sader.


O QUE A REVISTA FORBES NÃO SABIA. OU: A Fortuna de Fidel Castro Segundo Emir Sader.



Estava prevendo isso. Emir Sader, como era de se esperar, saiu em defesa de Fidel Castro contestando a revista Forbes que calculou a fortuna do ditador e o colocou na lista dos homens mais ricos do mundo. Num artigo publicado no portal Carta Maior, intitulado “A Fortuna de Fidel”, o articulista saiu com esta: 

“Forbes tem razão: Fidel possui uma fortuna incalculável. Não é propriedade dele, mas o verdadeiro proprietário – o povo cubano – associa essa riqueza diretamente a ele, porque foi sob sua direção que ela foi construída.”  


O que o povo cubano, não este idealizado pelo sociólogo, diria sobre ser proprietário de tamanha fortuna? 

A capacidade laudatória deste sujeito, em se tratando de Cuba e de Fidel, não tem limites (Emir só fica atrás de Salim Lamrani, o apologista mor do regime cubano). Leiam a sequência do texto: 

“É a maior riqueza do mundo, porque nenhum outro país a possui. E é incalculável, porque ela não pode ser contada em números, não pode ser fixada em preço, não pode ser vendida, nem comprada. Trata-se dos direitos econômicos, sociais e culturais conquistados nestas já quase cinco décadas. Trata-se dos valores humanos associados estreitamente a eles.” 

Fidel não tem fortuna pessoal. É um homem desapegado de bens materiais. Deve ter feito voto de pobreza quando se converteu ao comunismo. É um sacerdote da política, um “pedagogo dos povos”, diria Frei Betto. A fortuna é do povo. Do abençoado e afortunado povo cubano que teve a sorte, ou o destino histórico, de ter um Fidel como comandante. Ou como escreveu um amigo meu: “a fortuna não é dele. ele é só fiel depositário do povo. Esta forbes não sabe nada.” As mansões e as Mercedes de Fidel não são dele, são do povo. Fidel é um verdadeiro franciscano, que gosta de presentear amigos com bens de luxo. Gabriel Garcia Márquez foi um deles. Ganhou de presente do ditador franciscano que veste “Adidas” uma mansão no bairro Siboney, em Havana, e um automóvel Mercedes Benz, para melhor desfrutar de suas temporadas na ilha. Querem detalhes desta amizade e da circunstância em que o presente foi dado? (Ver “Gabriel García Márquez e Fidel Castro - Os Segredos de uma Amizade”, de Ángel Esteben e Stéphanie Panichelli). Uma curiosidade: Fidel ter trocado os monocromáticos uniformes militares por abrigos da Adidas não caiu muito bem, não é? Não combina com o anti-imperialismo dos seus discursos. O “Fórum Internacional sobre Direitos Trabalhistas” denunciou que a Adidas explora o trabalho infantil no Paquistão, na China, na Índia e na Tailândia, nas fábricas de bolas de futebol. Será que Fidel fez, em nome do povo, um contrato com a multinacional para ampliar ainda mais a fortuna do “povo cubano”? Acho que não. Acho que o discurso anti-imperialista do comandante é apenas uma defesa, como diria Nelson Rodrigues: “O tal ódio aos americanos não chega a ser um sentimento, não chega a ser uma paixão. É uma defesa. (...) O imperialismo é culpado de tudo e nós, de nada.” Pensando bem, Fidel fica melhor de Adidas do que de uniforme militar! Vestir a marca multinacional realça mais as contradições do comandante.



O próprio Emir Sader, critico virulento do imperialismo, já usou os dados da revista Forbes como fonte num artigo intitulado “A economia política das drogas”: "Um dos seus chefões, Joaquin Guzman, entrou para a lista mundial dos bilionários da Forbes". Neste caso, a lista é séria e a indicação da revista é válida? Emir, o senhor também ficaria bem de uniformes Adidas! Aproveita e dá um de presente para Salim Lamrani.

No portal Carta Maior, onde Emir publica seus textos, a revista Forbes já foi citada como referência algumas vezes. No artigo “Os Ultramilionários”, por exemplo, aparece a seguinte citação: “A relação de ultramilionários do mundo voltou a alcançar máximas históricas, informa a 'Forbes': agora essa lista é formada por 1426 nomes com um valor patrimonial líquido de aproximadamente 5,4 trilhões de dólares. É algo inquietante.” A revista, portanto, goza de alguma credibilidade no portal, não é mesmo? Ou isto vale apenas para medir as fortunas dos “capitalistas”?

Agora, que o centro das atenções é Fidel Castro, Emir resolveu criticar e dizer, em tom de descrédito, que “obsessão pelos números é típica dos norte-americanos”. Tem como levar um sujeito como este a sério? Porque não fez isso antes? Quando os dados numéricos e a quantificação de fortunas da revista lhe interessam ele os usa sem problemas, mas quando seus correligionários estão na linha de fogo ...
Fico imaginando se a revista tivesse publicado sobre a fortuna de FHC ou sobre o patrimônio da Globo! Provavelmente Emir diria: “segundo a prestigiada e imparcial revista Forbes, FHC possui fortuna pessoal avaliada em ...”. 

Forbes no dos outros é refresco.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

“SANTO CHÁVEZ”: O COMANDANTE BOLIVARIANO E A PIEDADE POPULAR.



“SANTO CHÁVEZ”: O COMANDANTE BOLIVARIANO E A PIEDADE POPULAR.





Desdobramento do post anterior sobre o futuro do chavismo.

Se depender da devoção popular venezuelana o Comandante já é “santo”. As demonstrações públicas de veneração, a comercialização de imagens e a capela construída num bairro em Caracas para dar sede ao novo culto não deixam dúvidas. Chávez saiu da vida para alcançar os altares. Não falo isso em tom de deboche. Nunca acreditei no chavismo, nunca simpatizei com Chávez, mas aprendi a respeitar a devoção popular. Refiro-me à autêntica devoção popular, que não precisa da autorização do vaticano nem da aquiescência das paróquias para existir. O culto a Chávez contraria a igreja católica venezuelana e, certamente, perturba os socialistas bolivarianos espalhados pelas Américas. O “povo” venezuelano que venera Chávez, ouso dizer, nunca foi politicamente bolivariano nem doutrinariamente católico.

A santificação de Chávez tem duas dimensões distintas. De um lado, a dimensão político-eleitoral que procura obter vantagens e explorar politicamente a comoção popular provocada pela morte do líder. O conveniente apoio de um “santo” deixa qualquer oponente em desvantagem. Ter um cristo bolivariano como cabo eleitoral então, é covardia. Este é o lado perverso da santificação. É a exploração política da piedade popular. A campanha eleitoral de Maduro usou e abusou deste expediente. Na outra ponta, temos a dimensão popular do culto ao “santo”. Pelo que podemos ler nas imagens, embora seja cedo ainda para afirmar, a adoração religiosa em torno de Chávez é um fenômeno espontâneo entre as pessoas de origem mais humilde (reluto em usar a expressão “classes populares”). Algumas declarações colhidas entre os “adoradores” do “santo” nos dizem muito sobre as razões da santificação: “É o nosso santo dos pobres”, nos diz Eva Gárcia, de 45 anos, que visita o local todos os dias depois do trabalho. “Decidimos venir para ver la tumba de este hombre que hizo tanto por el pueblo, sobre todo por los más olvidados”, diz Lesbia Torres, que veio do norte da Colômbia para homenagear o Comandante. Outra devota afirma que “nosotros vivimos y trabajamos en Caracas gracias a Chávez”. Marina Flores, residente em Caracas, explica que “Chavecito para mí es todo. Nos dio independencia, nos devolvió lo que otros gobiernos nos habían quitado y nos hizo entender que todos tenemos los mismos derechos” (As falas foram extraídas de artigos de cronistas e jornalistas venezuelanos e correspondentes internacionais). As declarações se multiplicam e apontam numa mesma direção: Chávez intercedeu pelos pobres, lutou pelos seus direitos e criou trabalho para todos.

Podemos considerar Chávez um populista, um oportunista que estendeu benefícios ao povo para conquistá-lo politicamente, mudar o jogo e ter força eleitoral para enfrentar as velhas elites venezuelanas. É assim que eu interpreto a política chavista. Mas se nos afastarmos um pouco de nossas categorias sociológicas e nos colocarmos na pele de quem nunca teve nada e sempre foi tratado como lixo social pelas elites carcomidas, a coisa muda de figura. Para entendermos a conversão de Chávez em “santo” temos que olhar para aqueles que assim o elegeram, entender os seus motivos, suas crenças e a relação que mantinham com o líder. Mais do que o Comandante de uma revolução, Chávez era o salvador. Oportunista ou não, Chávez olhou para esse “povo” e o trouxe, do seu modo, para o centro da política nacional.  Para estas pessoas pobres e profundamente religiosas o pouco que Chávez fez foi muito se considerarmos a forma como eram tratadas antes. Chávez olhou pelos pobres, como disse alguém. Chávez usou os pobres, diria outro. Que diferença isto faz para os ditos “pobres”? Getúlio Vargas era “pai dos pobres” ou “mãe dos ricos”? Não importa. Para os trabalhadores brasileiros daquela época Vargas fez o que nenhum outro presidente fez. Olhou para eles, falou com eles, lhes deu atenção e importância e instituiu leis trabalhistas. Sabemos das intenções de Vargas e da importância estratégica que a “classe” trabalhadora tinha para os seus planos (projetos). Mas se quisermos entender as razões do culto a Vargas temos que olhar para os “trabalhadores”, para o modo como eles viam o presidente. São conhecidas as cartas, com pedidos, sugestões e elogios, que eram enviadas para o presidente por admiradores de todo o Brasil Numa delas, datada de 1940, Fernando G. da Silva, do Rio de Janeiro, assim se manifesta: “(...) V. ex. que é um presidente justo, honrado e muito querido pelo povo. o que mais tem feito por todas as classes e finalmente que incluirá o Brasil no rol das grandes potências.” Havia o reconhecimento popular de que um presidente finalmente se preocupava como o “povo”. E este “povo” demonstrava gratidão.

Logo, logo vão surgir os Milagres atribuídos ao Comandante. O milagre social e coletivo da revolução, mais anunciado do que realizado, vai dar lugar as curas individuais de doenças e as graças alcançadas pela intervenção do “santo”. Que me perdoem os bolivarianos e os que acham que religião é bobagem, mas a “religião chavista” é o que de mais interessante vai ficar de herança da “era Chávez”. É o “povo”, para o desencanto dos intelectuais, fazendo a sua escolha. A piedade popular manifesta-se num registro pautado pelo mistério e não pelos caminhos da racionalidade que levam a revolução. E foi a piedade popular quem proclamou e esta reivindicando a santidade de Chávez. O culto está nas ruas da Venezuela, contrariando as orientações da igreja. Neste caso, a veneração pública ao santo não depende de um gesto oficial do poder eclesiástico nem da instauração de um processo jurídico-teológico. 

Se a população pobre beneficiada pelas políticas chavistas quer ter Chávez como “santo” e não como líder revolucionário, que seja assim então.  O “povo” não é livre para escolher? O problema é a outra metade do país, que vê na figura de Chávez a encarnação do mal. Santos, normalmente, são figuras que unem. Por terem vivido num tempo distante as figuras santificadas não têm inimigos ou detratores vivos. As imagens que temos dos santos são idealizações cultivadas ao longo de séculos. Suas qualidades e virtudes são ampliadas pelos fieis e elevadas a uma condição heroica. O santo, como um ideal, está muito distante do homem ou da mulher que um dia ele foi. O caso de Chávez é diferente. Era um líder político, e como tal conquistou uma legião de adversários, inimigos, antipatizantes, desafetos e detratores, dentro e fora da Venezuela. A morte recente e a imediata santificação podem tornar a imagem “santa” do Comandante objeto de escárnio, ódio e ridicularização. Guerra santa à vista na Venezuela.


Imagens da Devoção.





Capela erguida por devotos no bairro chavista “23 de enero” em homenagem ao “santo”. O lugar converteu-se numa espécie de santuário improvisado para receber peregrinos de todo o país. O lugar oficial de culto à memória do chefe é o “Museo de La Revolución Bolivariana”. Mas o “povo” resolveu improvisar e construiu o seu próprio lugar de celebração, sem os textos explicativos e a frieza racionalista dos Museus. O povo não vai venerar o “santo” num Museu. Não é o lugar adequado. Santo Agostinho já dizia: “Para estes santos lugares (os santuários) é reconduzido, com veneração e honras, qualquer objeto que reconheçam pertencer-lhes”. Como o santuário de La Higuera erguido em homenagem ao Che, é bem provável que o mesmo aconteça com Chávez no “23 de enero”. A capela é só o começo. Será que em março de 2014 teremos romarias ao bairro chavista?





Imagem do interior da Capela (“Dios con nosotros! Quién contra nosotros?”). Ao lado de Chávez a imagem do Nazareno de San Pablo, uma representação de Jesus Cristo carregando a cruz para o calvário, venerado na basílica de Santa Tereza, em Caracas. A imagem tem profunda admiração popular e suas raízes remontam aos tempos coloniais.










Devota no interior da capela acendendo vela e fazendo orações ao “santo”.