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sábado, 29 de agosto de 2015

A BUSCA DOS GUARANI PELA "TERRA SEM MAL": UMA INVENÇÃO DA ETNOGRAFIA? (Um Estudo Sobre os Guarani do Paraguai Colonial - Séculos XVI e XVII).

A BUSCA DOS GUARANI PELA TERRA SEM MAL: UMA INVENÇÃO DA ETNOGRAFIA? (Um Estudo Sobre os Guarani do Paraguai Colonial - Séculos XVI e XVII).



Uma versão mais completa desse texto, com notas explicativas e referências bibliográficas, foi publicada na Revista Interseções (Revista de Estudos Interdisciplinares), da UERJ.





Introdução: a “terra sem mal” e a metafísica religiosa dos guarani modernos (séculos XIX e XX).

A busca dos povos guarani pela “terra sem mal” é, desde os trabalhos de Curt Unkel (Nimeundaju), um dos temas mais fascinantes e dramáticos da etno-história dos povos tupi-guarani. Encerra, a um só tempo, uma recusa profunda e melancólica do mundo, face à sua existência na terra imperfeita (não divina) e às pressões da sociedade que os cerca, e a projeção de um ideal que se mostrou inalcançável. Ideal de fundo cosmológico, catalizador de um desejo coletivo que se traduz num nomadismo existencial em busca da imortalidade. As migrações em busca da “terra sem mal”, no século XX, são fundadas numa profunda metafísica religiosa. Os guarani são seres do devir, orientados por um discurso mitocosmológico que se realiza numa escatologia apocalíptica, desejável e inevitável, embora sempre adiável.

Em 1921 Nimuendaju surpreendeu um grupo m’bya próximo da cidade de São Paulo em meio a uma migração em busca da “terra sem mal”, supostamente situada no leste, além do mar. Nimeundaju seguiu com o grupo durante três dias até alcançar a Praia Grande, a sudeste de Santos. Chegaram à noite, sob forte chuva, e não conseguiram avistar o mar. “Mas, pela manhã, registrou o etnólogo, a chuva parou e o sol se levantou radiante e esplendoroso do mar. Ensimesmados e mudos, os paraguaios estavam a meu lado sobre a duna. Visivelmente, toda a situação lhes parecia extremamente lúgubre. Eles haviam, aparentemente, imaginado o mar de forma totalmente diversa e, sobretudo, não tão terrivelmente grande. Sua confiança tinha sofrido um golpe violento. Eles se mostraram bastante abatidos, especialmente à noite, e o canto de pajelança a Tupãcý, que eu aguardava com grande expectativa, não progredia, embora eu também tivesse trazido o meu maracá e procurasse ajudar com todas as minhas forças” (Nimuendaju).

Essa extraordinária experiência mudou profundamente a maneira como Curt Unkel via os guarani, e mudou sensivelmente a maneira como os etnólogos passariam a vê-los daí para frente.

Os guarani do início século XX, que se deslocavam em busca do paraíso terrestre, surpreendidos por Nimuendaju em plena migração, já não eram mais como os guarani dos tempos coloniais. A colonização, a evangelização, a formação dos estados nacionais e a dramática redução de seus territórios alteraram sensivelmente o “modo de ser” desses povos. Práticas antigas foram abandonadas e elementos da tradição cristã, antes ignorados, foram incorporados ao repertório de crenças e valores dos guarani modernos. A busca pela “terra sem mal” no século XX talvez seja a melhor expressão das profundas mudanças pelas quais estes povos passaram desde os tempos das conquistas portuguesas e espanholas, sejam elas militares ou jesuíticas, na América do Sul.

 No século XXI - a uma distância considerável dos grupos com os quais Nimuendaju teve contato entre 1907 e 1921 - as demandas e o modo como guarani lidam com o mundo a sua volta já não são mais os mesmos. A dinâmica e o “modo de ser” destes povos acompanham, por vezes tragicamente, as mudanças do mundo que os cerca. Neste sentido, diria que hoje a “terra sem mal” não é mais o paraíso cosmológico a ser alcançado pela visão e condução infalível de um Pajé. A terra mítica que os guarani buscaram no século XX pode ser equiparada neste início de novo século às terras a serem demarcadas (tekoha), por políticas públicas sensíveis ao drama histórico destes povos, quer no Mato Grosso, quer em Santa Catarina.

A “terra sem mal”, conforme indicam os estudos etno-históricos, é um tema central da cultura guarani do século XX. Poderíamos dizer o mesmo sobre os guarani dos tempos coloniais?  O texto que segue é uma resposta, breve e provisória, para esta pergunta. Embora as observações possam ser estendidas para povos guarani da América Portuguesa, dirijo a atenção para os guaranis que viviam na região denominada Paraguai, entre os séculos XVI e XVII.

A projeção etnográfica para os tempos coloniais.

Os trabalhos etnográficos e linguísticos desenvolvidos a partir do início do século XX têm possibilitado uma maior aproximação do “modo de ser” guarani. As pesquisas pioneiras de Curt Unkel (Nimuendaju) entre os apapocúva e os estudos mais sistemáticos de Alfred Métraux, Egon Schaden e Léon Cadogan, que cruzam pesquisas etnográficas com leituras mais apuradas das fontes coloniais, reuniram um volume extraordinário de informações e abriram inúmeras linhas de pesquisas sobre os guarani atuais e os do passado. A relativa conservação entre os guarani atuais de alguns traços fundamentais do seu “modo de ser”, como o “profundo senso de identidade” e o “discurso profético” (John Monteiro), tem facilitado os estudos comparativos e o preenchimento de lacunas existentes na documentação referentes aos séculos XVI e XVII. No entanto, alguns problemas metodológicos resultantes da projeção de informações colhidas entre os guarani modernos para explicar os guarani do passado vem sendo observados por etnólogos, etno-historiadores e arqueólogos. Em primeiro lugar, a não observância das grandes alterações provocadas pela conquista/colonização e pela evangelização no modo de vida dos povos indígenas. Em segundo lugar, os dados etnográficos colhidos no século XX determinam a leitura das fontes coloniais. O caso mais notável talvez seja o da busca pela “terra sem mal”.

Dos guarani, ou “carios”, descritos por Luís Ramírez e Ulrico Schmidl, na primeira metade do século XVI, aos guarani apapocúva etnografados por Nimuendaju vai uma grande distância. O ethos guerreiro e a antropofagia daqueles horticultores das cabeceiras do Paraguai estão muito distantes daquele povo místico que caminhava na direção do mar em busca da terra sem mal, guiado pelo velho pajé Guyrapaijú, que Curt Unkel encontrou em 1907 no oeste de São Paulo. Além disso, a brutal queda da densidade demográfica e a redução dramática da área de mobilidade, a desarticulação do complexo político e militar e as marcas profundas deixadas pelas experiências missionárias e reducionais, são algumas das mudanças de grande impacto que se colocam entre os guarani de Ramírez e Schmidl e os de Curt Unkel. As projeções retrospectivas, como demonstrou Anna Roosevelt para o caso da Amazônia, que projetam o presente etnográfico para os tempos da conquista, parecem desconsiderar essas mudanças. Supõe-se que “o padrão básico do modo de vida indígena” não sofreu alterações significativas (Anna Roosevelt). No entanto, como já salientou John Monteiro, dois aspectos centrais ao “modo de ser” guarani, como a guerra e o canibalismo, tão destacados nos cronistas do século XVI, desapareceram sob o efeito do cristianismo e da colonização.

Ao longo de quatro conturbados séculos, repletos de experiências trágicas, muita coisa se perdeu, muita coisa se adquiriu e outras tantas se mesclaram. Se a antropofagia ritual foi abandonada, as migrações realizadas de tempos em tempos se mantiveram como traço distintivo do guarani. Dois observadores, em épocas diferentes, registraram esse fenômeno. Ulrico Schimdl, um soldado alemão a serviço da coroa de Espanha, percebeu que “los sobredichos Carios migran más lejos que ninguna nación que está en esta tierra en Rio de la Plata (...)”. Nimuendaju encontrou os m’bya em 1921, num pântano às margens do Tietê, a treze quilômetros de São Paulo, em meio a uma dramática migração. Miseráveis e extenuados tentavam chegar ao mar para seguir viagem em direção ao leste. Não conseguindo demovê-los da jornada, o etnólogo juntou-se ao grupo. A chegada foi uma dura decepção. Os m’bya nunca haviam visto o mar. Diante da imensidão, o grupo se deparou com uma terrível realidade: o acesso a “terra onde não mais se morre” era bem mais difícil do que imaginavam. O guarani do século XVI migrava, o do começo do século XX continuou migrando. O impulso às migrações, supomos, manteve-se preservado, mas as motivações já não eram mais as mesmas.



Estes deslocamentos constantes dos guarani no espaço suscitaram diversas interpretações. A mais célebre delas é a da busca pela “terra sem mal”, um caso emblemático de “projeção etnográfica”. A busca, nos tempos pré-coloniais, por uma terra boa, não cultivada, uma terra econômica, foi associada, no século XX, com a busca profética da “terra sem mal”. Foi Nimuendaju quem relacionou pela primeira vez o material etnográfico, recolhido por ele próprio, entre os guarani da primeira metade do século XX com os relatos dos cronistas e missionários dos séculos XVI e XVII sobre os tupi do litoral brasileiro e os guarani do Paraguai. Nimuendaju levantou duas suposições que se mostrariam de enorme fertilidade entre os etnólogos: a da persistência das migrações, dos tempos coloniais ao século XX, e o papel propulsor da religião nas migrações. As migrações tinham como objetivo final alcançar o yvýmarãey que, para a maioria dos pajés guarani que contatou, situava-se no leste, além do mar (Nimuendaju). A busca pela “terra sem mal”, ou yvýmarãey, fazia parte do universo religioso tupi-guarani antes da chegada dos conquistadores. Foi em busca deste paraíso da abundância que saíram, segundo Nimuendaju, dos Andes e se dirigiram ao litoral do Atlântico e a bacia do Prata:

Os fatos históricos só fazem confirmar o que os próprios índios sempre me asseguraram: a marcha para leste dos Guarani não se deveu à pressão de tribos inimigas; tampouco à esperança de encontrar melhores condições de vida do outro lado do Paraná; ou ainda ao desejo de se unir mais intimamente à civilização – mas exclusivamente ao medo da destruição do mundo e à espera de ingressar da terra sem Mal.

A ameaça do fim do mundo, o cataclismo mítico das narrativas que Nimuendaju ouviu entre os apapocúva, era o impulso fundamental que os impelia à “fuga para a Terra sem Mal” em busca da “salvação”. As Lendas da Criação e Destruição do Mundo, publicada em 1914, trouxe a público a cosmologia e a escatológica guarani. Revelou também o drama cósmico de um povo que vivia a certeza do fim do mundo, do dia em que a terra iria desmoronar e a espécie humana seria devorada por Jaguarový, o Jaguar Azul. O mito de Guyrapotý, o pajé legendário que reuniu os guarani e os conduziu em direção ao mar, era o fundamento das migrações místicas. Diversos pajés, inspirados na bem sucedida migração de Guyrapotý, teriam conduzido, embora sem os efeitos esperados, os povos guarani no século XX em direção ao leste. A crença na “terra sem mal” teria sobrevivido à conquista, ao colonialismo e a cristianização, e se mantido intacta entre grupos de guarani remanescentes.

A busca pela “terra sem mal”, a grande descoberta etnológica de Nimuendaju, tornou-se um dos temas mais importantes da etnologia e da antropologia indígenas. De qualquer maneira, devemos observar que, apesar da força dos argumentos e da autoridade do etnólogo que conviveu de maneira singular entre os guarani, a ideia mais geral de que a busca pela “terra sem mal” tem como “mola propulsora” não a expansão bélica mas a religião foi apresentada como “suposição”. Daí para frente o tema ganhou vida própria e tornou-se, nos meios acadêmicos, o fundamento da religiosidade guarani, um “dado objetivo” que, na avaliação de Cristina Pompa, dispensa o exame das fontes. Nimuendaju tornou-se a própria fonte.

Alfred Métraux, na trilha aberta por Nimuendaju, relacionou os dados etnográficos com as fontes coloniais num estudo clássico sobre as migrações tupi-guarani. “Gracias a los mitos y a las tradiciones recogidas em nuestra época, reconhece o antropólogo suíço, sucesos oscuros, consignados em las narraciones de viajeros y misioneros de los siglos XVI y XVII, adquieren hoy su verdadeira significación.”. Partindo dos dados recolhidos por Nimuendaju entre os apapocúva e comparando-os com as informações dos cronistas coloniais – Nóbrega, Thevet, Abbeville, Cardim, Yves d’Evreux, para a costa brasileira, e Barco Centenera, Montoya, Lozano, Techo e José Guevara, para o Paraguai – Métraux chegou a conclusão de que o mito da terra sem mal não só era parte fundamental da estrutura religiosa dos guarani do século XVI, como se conservou intacto entre os do século XX, como demonstrou Nimuendaju. Estes fenômenos ocorreram tanto na costa brasileira como no Paraguai, pois os tupi e os guarani “participaban de una misma tradición cultural (...)”. O “antiguo Paraguay, habitado por los índios guaraníes”, foi durante séculos a terra de eleição dos messias e profetas indígenas. Em nenhuma região do mundo, informa Métraux, ocorreram tantos movimentos de libertação mística.

A mitologia de algumas tribos tupi-guarani “deja constancia de una tierra maravillosa, llamada “La Tierra sin Mal”, a la cual el antepasado o el héroe civilizador se retiro después de haber creado el mundo y traído a los hombres los conocimientos esenciales para su supervivência.” (Métraux). A terra sem mal, da qual os apapocúva tinham “una imagen muy precisa”, não era somente um lugar de abundância e delícias, era também um refúgio eterno que estava à espera dos homens quando Nanderikey retirasse uma das estacas que escora a terra e precipitasse o fim do mundo. Profetas e messias eram os arautos deste paraíso e se apresentavam “como los salvadores de su pueblo”. Para garantir adeptos para as suas prédicas, que antecipavam as migrações, reivindicavam a qualidade de deus e de emissário divinos. Os heróis civilizadores, benfeitores celebrados nas narrativas míticas, serviam de modelos para os messias indígenas. A crença no retorno destes heróis estava fortemente enraizada na tradição guarani, o que amplificava os apelos dos messias (Métraux).

As tradições míticas e as migrações na direção da terra sem mal são vistos por Métraux como um messianismo genuinamente indígena, mas o impacto da colonização, e toda sorte de privações e sofrimentos que se abateram sobre aos indígenas, exacerbaram entre eles o desejo de evadir-se para um mundo “de reposo eterno e immotalidad.” A tese de Métraux é que fermentadas sob determinadas circunstâncias históricas de crise estes movimentos tendem a se multiplicar. A ameaça de esfacelamento da ordem tradicional, verificada em vários momentos e em “diversos países”, leva a agitação messiânica, que é a “expresión de la desesperación, más o menos conciente.” O desespero predispunha os indígenas a ouvirem os messias e as suas prédicas sobre o advento de uma idade de ouro. A fuga para a terra sem mal era a solução oferecida por esses “profetas”.

Sobre a natureza pura ou sincrética desses movimentos, Métraux fez a seguinte ponderação:

Si el mesianismo guarani y tupinamba era debido a causas internas, sería, sin embargo, poco inteligente ignorar los factores externos que han creado certamente un clima propicio a la predicación mesiánica. Algunos movimentos han tenido un caráter sincrético; otros, a pesar de ciertos prestamos del catolicismo, expresaban creencias y valores puramente indígenas.


Assim, na América do Sul, sacudida pelo colonialismo, se encontra, segundo Métraux, o esquema clássico do messianismo: a crença num profeta ou homem-deus, o desenvolvimento de uma ação que tende a apressar o advento da idade de ouro, a reação social e cultural contra a civilização branca e, frequentemente, a formação de uma nova religião sincrética. Os “mesías” guarani citados por Métraux foram Oberá, Yaguariguay, Guiravera, Juan Cuara e Ñezú. Baseado nas narrativas de Barco Centenera, Lozano, Montoya, Techo e Guevara, Métraux descreve essas personagens e as linhas gerais dos movimentos por elas liderados. Oberá, que se dizia filho de Deus, pregava a destruição dos cristãos e prometia liberdade a todos; Rodrigo Yaguariguay se fazia adorar como Deus e a sua mulher como Virgem Maria, imitava os ritos cristãos e organizou uma revolta contra os espanhóis; Juan Cuara era um pajé do Guairá que reunia os índios para a resistência; Ñezú era venerado como um Deus, abrigava índios fugitivos das reduções e sua autoridade provinha da eloqüência e da reputação de grande feiticeiro; Guiravera se proclamava Deus e organizou a resistência contra os jesuítas.

Ao debruçarmo-nos sobre a documentação referente às rebeliões lideradas por esses chefes indígenas, verificamos que o que existe em comum entre esses movimentos é o fato de que foram liderados por chefes religiosos que se sublevaram contra a autoridade espanhola e jesuítica, e mesclaram temas indígenas e cristãos. Esse é o único traço messiânico, por assim dizer, encontrado nesses movimentos. Em nenhum deles, por outro lado, encontramos uma convocação ou um apelo à imigração, quanto mais uma fuga para a “terra sem mal”. Mas pelo fato dos guarani e os tupinambá participarem de uma mesma tradição cultural, e entre os tupinambá existirem evidencias de migrações, Métraux deduziu nas revoltas guarani um chamado à imigração e à restauração de uma idade de ouro.



Associado ao tema da “terra sem mal”, e inseparável dela, desenvolveu-se entre os etnólogos e etno-historiadores no século XX o conceito de messianismo tupi-guarani. Desde os estudos pioneiros de Alfred Métraux na década de 1920, o qualificativo messiânico vem sendo atribuído aos movimentos de resistência protagonizados pelos guarani contra, segundo a imaginação acadêmica, o poder colonial. Métraux lançou no debate etnológico o tema do messianismo, mas foi Maria Isaura Queiroz que lhe emprestou os contornos teóricos mais acabados num admirável estudo sobre as manifestações do messianismo no mundo. Acompanhando a trajetória dos termos messias e messianismo Maria Isaura os identifica na tradição bíblica e nas lutas do povo de Israel. A conotação definitiva de messianismo, como a promessa de uma idade de ouro que estaria ainda por vir como reparadora das injustiças e sofrimentos deste mundo, só se formaria após o cativeiro da Babilônia. Mas o que realmente interessa a autora é o emprego deste conceito nos estudos históricos e sociológicos para designar, sob o qualificativo messiânico, movimentos e lideres religiosos que carregaram promessas de redenção. Maria Isaura encontra em Max Weber uma definição de messias: um líder essencialmente carismático e dotado de poderes extraordinários.

Cristina Pompa ao fazer um balanço dos estudos clássicos sobre a terra sem mal e o messianismo atribuído aos tupi e guarani salienta as “preocupações totalizantes” de Maria Isaura ao tentar inserir os movimentos tupi-guarani num quadro geral sobre o messianismo no mundo. Seguindo uma classificação weberiana do “tipo ideal” a socióloga, segundo Pompa, arrolaria num único rótulo, e a partir de um único horizonte mitológico, os movimentos indígenas, “abstraído de qualquer contexto histórico e lançado no universo abstrato do presente sociológico”. Se lermos com atenção a apresentação que Roger Bastide faz do estudo e de algumas análises de Maria Isaura, veremos que a abordagem sociológica da autora não é tão inflexível e homogeneizadora como sugere Pompa. A obra busca, é verdade, abarcar os movimentos de várias épocas e lugares numa “sociologia do messianismo”, mas é também suficientemente flexível para não lançar os movimentos que destoam do modelo no leito de Procusto. Destaco um ponto. No capítulo sobre os “movimentos messiânicos em tribos primitivas” Maria Isaura diagnostica uma “efervescência religiosa” na costa brasileira. Identifica os movimentos migratórios “registrados por cronistas e jesuítas”, seguindo as ideias de Métraux, como movimentos em busca da “terra sem mal”, do paraíso nativo - e neste ponto estou de acordo com as críticas certeiras de Cristina Pompa no que se refere à leitura forçada dos cronistas e jesuítas –, mas não estende a mesma análise aos guarani do Paraguai. Com percepção aguçada, de quem leu a documentação, não hesitou em apontar a singularidade dos movimentos guarani: eram contra o crescente poder dos jesuítas, “e não uma fuga para Terra sem Males”.

Hélène Clastres é um caso a parte. O mito da “terra sem mal” deve a ela, sem dúvida, sua entronização na academia e sua popularidade. “Terra sem Mal” é uma obra tão empolgante quanto imprecisa. Acumula um conjunto de belas interpretações que algumas vezes se esvaziam em abstrações forçadas e deslocadas. Diversos pesquisadores apontaram os exageros e as derrapadas da etnóloga, mas a beleza, o estilo conciso e a originalidade da obra são evidentes. Ao mesmo tempo em que procura uma história indígena autêntica, subordina esta história à comprovação de uma teoria. Hélène anuncia na introdução que pretende mudar o “enfoque da história dessas culturas”. Ao contrário de Nimuendaju e Egon Schaden, que reconstroem o “passado dos tupis-guaranis a partir do que hoje se sabe, ou se acredita saber, sobre sua religião (...), assumimos a postura inversa e optamos por retomar a história a partir dos seus primórdios.” O fio condutor de Hélène é a terra sem mal, “um tema muito antigo, cuja presença já era atestada no século XVI entre todos os tupis-guaranis”, e que se verificou também entre os guarani do século XX. Apesar de afirmar que o núcleo da vida religiosa dos tupi-guarani gravitava em torno da “terra sem mal”, Hélène estabelece uma importante distinção entre os tupi e os guarani:

Se a religião dos tupis-guaranis foi mal compreendida, é que se confundiram, a nosso ver, sob o termo único de “messianismo”, movimentos na realidade profundamente diferentes, uns exclusivamente religiosos e que a partir de agora denominaremos proféticos (a procura da terra sem mal), e outros unicamente políticos (a resistência aos espanhóis e aos portugueses), movimentos cujo único ponto comum era terem caraís por atores principais.

De fato, não existem registros de migrações entre os guarani, nos séculos XVI e XVII, em busca da “terra sem mal”. O que não quer dizer que os movimentos/rebeliões tenham sido “unicamente políticos”. Como veremos mais adiante, os levantes indígenas também tiveram um forte conteúdo religioso, e foram orientados não apenas contra espanhóis e portugueses, mas também, principalmente aqueles liderados pelos pajés, contra os missionários. Mas se as revoltas dos guarani não tinham como objetivo a terra sem mal, o que estaria em jogo? Para Hélène Clastres as revoltas dirigidas pelos caraís representavam, naquele momento, a oposição política aos caciques.

Mesmo não encontrando evidências sobre a terra sem mal, Hélène sustenta que a busca por este paraíso da abundância e da imortalidade era o eixo fundamental das crenças dos guarani. No século XIX foram registradas migrações de “várias tribos”, desde o Mato Grosso, “à procura da Terra sem Mal”. Estas migrações, livres de todo sincretismo, deduziu Hélène, eram sinais inequívocos de que a tradição religiosa se manteve intacta: “uma tradição religiosa que nem os maiores abalos conseguiram enfraquecer.” Hélène fez exatamente aquilo que criticou em Nimuendaju e Schaden, ou seja, reconstruiu o “passado dos tupis-guaranis a partir do que hoje se sabe, ou se acredita saber, sobre sua religião”. 

Parafraseando Roger Bastide, o modelo dos movimentos messiânicos é o leito de Procusto dos pajés e caciques guarani que se ergueram contra a presença dos jesuítas em suas terras. Um dos ingredientes fundamentais do messianismo, aplicado aos movimentos indígenas sul-americanos, é a busca da “terra sem mal”. Contrariando o modelo, os pajés guarani nunca mencionaram ou prometeram nada que mesmo remotamente lembrasse o suposto paraíso nativo. Outro aspecto indispensável, apresentado por Egon Schaden, é a existência de uma comunidade que responda ao chamado do Messias, o “portador do ideal coletivo”, e deposite em suas mãos a esperança de restauração da antiga ordem desintegrada pelo “branco invasor”. Novamente os movimentos indígenas do Paraguai mostram-se escorregadios. De um modo geral, os levantes promovidos pelos pajés ou pelos caciques contrários a evangelização não mobilizam a comunidade com promessas redentoras. Na maioria dos casos os pajés estavam acuados e marginalizados, e usavam de ameaças para ter o apoio dos índios contra os padres.

As rebeliões desencadeadas por Guiravera e Ñezú, por exemplo, não cabem na fórmula messiânica. Para encaixá-las nesta categoria devemos aparar algumas sobras incômodas, que acabam por mutilar sua originalidade. Mas é possível sim identificar alguns aspectos do modelo messiânico em alguns movimentos. Guirabera, por exemplo, se passava por Deus e incitava os índios contra os missionários. Oberá, por sua vez, afirmava sua origem divina e se proclamava salvador de seu povo. Essas são características do que se convencionou chamar messianismo, mas isso não é suficiente para caracterizá-los como messiânicos. Falta-lhes o elemento central: a crença da comunidade na figura do redentor que colocará um termo no estado de degeneração em que as coisas se encontram e instituirá uma nova ordem de justiça e de felicidade. As revoltas dos pajés guarani, no Paraguai dos séculos XVI e XVII, não correspondiam a essas expectativas. Destaca-se, no caso famoso de Guiravera, o lado anti-colonial e místico do movimento, o lado romântico, diria, mas esquece-se com facilidade que o pajé queria comer padre Montoya, e que comeu um de seus ajudantes. Enfatiza-se que Yaguacaporo liderou um “movimento de libertação mística”, e não estou afirmando que isto não ocorreu, mas esquece-se que o pajé ameaçava os índios com figuras medonhas que sairiam de seus esconderijos e se lançariam vorazmente sobre eles.

Nas fontes da América espanhola dá época da conquista e do período colonial a busca por vestígios da “terra sem mal” é tarefa frustrante. Não há registros sobre o suposto paraíso guarani em nenhum dos relatos referentes à conquista do Paraguai e, o que parece ainda mais intrigante, não há nenhuma referência na extensa documentação jesuítica. Hélène Clastres reconheceu esta ausência.

Se a “terra sem mal” fazia parte do universo religioso-cosmológico dos guarani e sua busca motivou as migrações lideradas pelos pajés, que os conduziram a região inter-fluvial do Paraguai e Paraná, porque ela não é mencionada em nenhum momento nas narrativas da conquista, especialmente nas jesuíticas? A “terra sem mal” não só nunca foi mencionada, como não foi usada pelos jesuítas para fins de conversão. Se ela ocupava um lugar de destaque na cosmologia guarani, como sugerem etnólogos e etno-historiadores, seria de se imaginar que os jesuítas a incorporassem ao seu repertório de temas catequéticos, ou para desmistificá-la, ou para aproveitá-la como estratégia de conversão, associando-a a equivalentes simbólicos como, por exemplo, o tema do paraíso cristão. A “terra sem mal”, adaptada à linguagem da conversão, poderia resultar em úteis paralelos com o paraíso, o éden, o céu, temas recorrentes na predicação do cristianismo entre os guarani.

A etnologia no século XX traduziu a expressão yvýmarane’ý, encontrada no “Tesoro de lalengua Guarani”de Montoya, publicada em 1639, por “terra sem mal”. Em Montoya, como já foi assinalado por Meliá, a expressão significa “suelo intacto que no há sido edificado”. Esse era o sentido da expressão na época da conquista. A tradução encontrada em Montoya não autoriza sua equivalência por “terra sem mal”. No século XX, porém, Nimuendaju encontrou entre os grupos guarani que contatou a expressão yvýmarãey com o significado de “terra sem mal”, o paraíso onde desejavam ingressar. Tudo leva a crer que ocorreu uma alteração semântica. O mais provável é que as prédicas dos missionários sobre a existência de um paraíso podem ter se fundido as buscas pela terra boa e intacta, sobretudo quando esta terra começou a tornar-se cada vez menos acessível. A desmontagem do complexo político-militar guarani, o cerco à liberdade de movimento, o encontro com a mística cristã e a marginalização desses povos após a dispersão das missões e a criação dos estados nacionais, alteraram profundamente o seu modo de ser. Parece plausível, dadas essas condições, a hipótese de que a busca pela terra boa, não cultivada, cada vez mais distante, teria se transformado na busca por um lugar místico, cujo acesso seria possível graças ao poder mágico dos pajés. Bartomeu Meliá, distanciando-se dos modelos generalizantes e adotando uma visão histórica, mais próxima dos documentos coloniais, associou originalmente a mudança semântica de yvýmarane’ý com a história colonial:

La história semântica de yvýmarane’ý, de suelo virgen hasta “Tierra sin Mal” probablemente no está desligada de la história colonial que los guarani hás tenido que soportar. Em la busqueda de um suelo donde poder vivirse modo de ser auténtico, los guarani pueden Haber hecho cristalizar tanto sus antiguas aspiraciones religiosas quanto la conciencia de los nuevos conflictos históricos. Yvýmarane’ý se convertia en “tierra sin Mal, tierra física, como em su acepción antigua, y a la vez tierra mística, después de tanta migración frustrada.


Não pode passar despercebido também que em nenhum dos cronistas da primeira metade do século XVI – Luís Ramírez, Ulrico Schimdl, Cabeza de Vaca e mesmo Ruy Diaz de Guzmán - os “hechiceros”, ou os “messias indígenas”, foram mencionados com algum relevo. Essas figuras que atormentaram os missionários e povoaram as narrativas jesuíticas como grandes inimigos da evangelização não figuram nestes relatos dos primeiros contatos da conquista espanhola. Um dado realmente curioso se levarmos em conta as hipóteses de Métraux e os vaticínios de Hélène Clastres sobre as migrações místicas lideradas pelos “messias”, que vinham desde os tempos anteriores à conquista, em busca da “terra sem mal’.

A “terra sem mal” foi durante décadas um dos mais fascinantes temas relacionados às culturas tupi e guarani, tanto da costa brasílica quanto do Paraguai, dos séculos XVI e XVII. Os estudos mais recentes e as pesquisas com a documentação colonial têm, no entanto, levantado sérias dúvidas sobre a existência dessa espécie de paraíso dos povos tupi e guarani. Cristina Pompa, recentemente, relendo a documentação colonial, levantou sérios questionamentos sobre a existência do paraíso tupi-guarani no que diz respeito à América portuguesa. No caso do Paraguai colonial, como procuramos demonstrar, também não existe registros sobre a “terra sem mal” na documentação jesuítica nem nos relatos dos cronistas dos primeiros tempos da conquista. As descobertas etnográficas de Nimuendaju sobre a “terra sem mal” entre os guarani, que contatou no início do século XX, foram aceitas e projetadas para os povos tupi e guarani contatados pelos europeus nos séculos XVI e XVII. A documentação colonial foi lida a luz da etnografia com vistas a comprovar a tese da persistência dos movimentos migratórios em busca do paraíso terrestre entre os guarani, desde os tempos anteriores as conquistas europeias.

Talvez não seja exagero supor que o tema da “terra sem mal” fosse tão estranho a um guarani do século XVI e XVII quanto o canibalismo é para um guarani do século XX.


Bibliografia.

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UNKEL, Curt Nimuendajú. As lendas da criação e destruição do mundo como fundamento da religião dos Apapucúva-Guarani. São Paulo: Hucitec-EDUSP, 1987.
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O messianismo no Brasil e no mundo. São Paulo: Alfa-Omega, 1976.
SCHMIDL, Ulrico. Derrotero y viaje al Rio de Plata y Paraguay. Asunción: Ediciones NAPA, 1983. Disponível na Biblioteca Virtual Del Paraguay.


segunda-feira, 13 de julho de 2015

“INFÂNCIA ROUBADA”: SEQUESTRO E TORTURA DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES NA DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA.

“INFÂNCIA ROUBADA”: SEQUESTRO E TORTURA DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES NA DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA.



A situação política do país é delicada. Velhos fantasmas voltam a assombrar nossa jovem democracia. Como há cinquenta anos, pessoas que se dizem defensoras da família e dos valores cristãos saem às ruas para pedir abertamente uma intervenção militar. Não duvido das “boas intenções”, afinal, elas querem o que consideram o melhor para o país, não é mesmo. Mas sabem elas o que realmente significa uma intervenção militar? A meu ver, estas pessoas têm uma perspectiva idealizada e estreita do passado que querem de volta e uma visão delirante do presente.

Precisamos de uma intervenção urgente, mas não dos militares. A intervenção que o país precisa é a dos pesquisadores, dos historiadores, dos sociólogos, dos antropólogos, dos filósofos, dos cientistas sociais. Não do tipo classista, partidária e autoritária que fez Marilena Chauí, declarando ódio à classe média. Precisamos de uma intervenção democrática, humanista, inteligível, capaz de estabelecer um diálogo com a sociedade e esclarecer (não apenas para os seus pares ou para pontuar no lattes) sobre os perigos que rondam nossa democracia. Esclarecer sobre o passado recente, tão vivo entre nós, significa confrontar visões mistificadoras sobre o regime militar presentes no senso comum.



A Comissão da Verdade, embora desprestigiada e desacreditada por opositores do governo que a constituiu, vem prestando um importante trabalho investigativo sobre a violação dos direitos humanos no Brasil. Um dos trabalhos mais importantes da Comissão é tirar o véu do esquecimento sobre o passado recente (décadas de 1960 e 1970) e dar voz às vítimas da ditadura que nunca foram ouvidas. Trazer a tona os testemunhos de pessoas que, mesmo não sendo militantes políticos, sofreram sob a ditadura, é uma das melhores maneiras de esclarecer o passado e exorcizar o fantasma da intervenção militar. Lembremos aos autoproclamados defensores da família brasileira, que querem os militares de volta, que muitas das pessoas que sofreram agressões, físicas e simbólicas, eram crianças e adolescentes que tinham entre 1 e 16 anos de idade.

O livro lançado em 2014, organizado pela Comissão da Verdade de São Paulo, intitulado “Infância Roubada”, traz relatos de 40 pessoas, que tem hoje entre 40 e 60 anos, que foram na década de 1970 presas com os pais. Os relatos são estarrecedores e revelam a face mais brutal da ditadura. Taxadas de “miniterroristas”, ou acusadas de serem filhos de terroristas, dezenas de crianças foram presas e sofreram diversas formas de violência. Muitas delas tornaram-se adultos com enormes dificuldades de socialização. Nestes casos, a ditadura mutilou brutalmente laços familiares, interrompeu a infância e produziu traumas individuais e familiares profundos.

As formas de violência praticadas contra as crianças, reveladas pelos depoimentos, podem ser agrupadas da seguinte maneira:

Tortura no ventre da mãe.

Várias mulheres, militantes e esposas de militantes, foram torturadas durante a gestação. As torturas provocaram hemorragias e, na maioria dos casos, abortos forçados. A estudante Regina Maria Toscano, de 23 anos, foi torturada grávida com choques elétricos, inclusive na vagina, e perdeu a criança. Em alguns casos, mulheres como Dinalva Oliveira Teixeira, foram torturadas grávidas e assassinadas.

Tortura dos pais na presença dos filhos.

Algumas crianças presenciaram a tortura e a morte dos pais. Antonio Lucena foi assassinado na frente dos filhos de 3 e 6 anos, enquanto o filho mais velho, de 18 anos, era torturado no DOI-CODI de São Paulo.

Tortura física e molestação de crianças.

Várias crianças foram submetidas a sessões de tortura como estratégia para forçar os pais a revelar o paradeiro dos seus companheiros. Gino Ghilardini, de 8 anos, foi torturado junto com a mãe para forçar o pai, Luis Ghilardini, comunista assassinado sob torturas no DOI-CODI/RJ, a entregar os companheiros. Em depoimento à Comissão da Verdade, Gino disse que ouvia o “pai ali perto gemendo, (...) escutava, mas não podia fazer nada”. 

O gaúcho Ivan Seixas foi preso aos 16 anos e torturado, enquanto ouvia os gritos do seu pai na sala ao lado.

Banimento de crianças.

Crianças foram presas com os pais, fichadas como subversivas e consideradas perigosas à segurança nacional. Foram banidas e cresceram no exterior. Damaris Lucena, esposa de Antonio Lucena, foi presa, torturada e banida do país juntamente com os filhos pequenos.

(Para uma visão mais detalhada dos diversos casos investigados, ver: INFÂNCIA ROUBADA: crianças atingidas pela ditadura militar no Brasil).



 Na Argentina o tratamento dado às crianças, embora igualmente inaceitável, foi outro. Diferentemente dos militares brasileiros, os argentinos viam as crianças como inocentes, que podiam ser moldadas e educadas de acordo com as expectativas oficiais. Por isso, os filhos(as) dos presos políticos eram entregues para militares ou simpatizantes do regime para adoção (aproximadamente 500 crianças foram separadas dos pais entre 1976 e 1983 na Argentina). Os militares brasileiros, pelo que se depreende dos seus atos, entendiam que o comunismo estava no sangue das crianças. Era uma doença transmitida por herança genética. Se na argentina as mães grávidas eram tratadas com algum cuidado até o nascimento da criança, aqui as mães eram torturadas com os filhos no ventre. Foi o que aconteceu com Hecilda, uma das depoentes do livro, torturada grávida na presença do marido. Antes do filho nascer, um militar teria dito a ela que “filho dessa raça não deve nascer”. O sujeito, e o regime que o investia de tal poder, julgavam ter o direito sobre a vida e a morte. Imbuídos de um peculiar messianismo de caserna, atávico em alguns seguimentos das forças armadas desde a proclamação da república, os heroicos militares praticavam uma intervenção saneadora no presente para salvar o futuro do suposto perigo comunista.

A forma como as crianças foram tratadas, sugere que os militares as viam como perigosas, potencialmente criminosas, e pretendiam realmente cortar o mal pela raiz. Ou era isso, ou eles eram assustadoramente sádicos e perversos! Não descartaria, em alguns casos, um misto das duas coisas. Apostando na hipótese do perigo infantil, somos levados a crer que os militares supunham ser o comunismo um problema congênito, e que a intervenção na infância interromperia a cadeia da transmissão da genética comunista. Lombrosianos tardios, os militares criminalizaram a infância, mutilaram a inocência, e produziram um monumento, feito de violência e covardia, em memória da ditadura. 

É lamentável assistir, com incômoda sensação de impotência, a ressureição de um passado obscuro e violento, requintado de maneira charlatanesca e (re)apresentado como solução messiânica para os problemas do país. Problemas, diga-se de passagem, em grande parte fruto da desinformação e da imaginação conspiratória. Igualmente lamentável é constatar que as chances de sensibilização dos sujeitos que querem os militares de volta são quase nulas. São forças cegas e surdas, como abstrações erráticas, que marcham pelas ruas do Brasil, tão seguras de si próprias que não se abrem sequer ao diálogo. É impossível dialogar com abstrações (Camus). Li na net alguns comentários referentes às matérias sobre o livro “Infância Roubada” que são representativos e parecem traduzir perfeitamente bem o universo mental desta parcela da população brasileira. Alguns afirmam que tudo não passa de invenção da esquerda, e que a Comissão da Verdade é revanchista e só investiga os militares. Outros dizem ter pena das crianças que vivem nas ditaduras Cubana e Venezuelana, das quais o governo do PT é cúmplice.  Outros insinuam que estão usando as crianças para atacar os militares e defender o governo Dilma. Os mais exaltados dizem que os depoentes estão mentindo e pousando de vítimas para conseguir uma aposentadoria do governo. Para a maioria é tudo mentira. De um jeito ou de outro, os comentários tentam desqualificar e invalidar os testemunhos e os trabalhos da Comissão da Verdade, vista por eles como um antro de comunistas. Os argumentos são simplórios, as comparações são débeis, mas eles estão aí, opinando, e expondo, em português sofrível, suas certezas inabaláveis! Mas não é este o principal problema. Devemos estar atentos para o uso político que certos grupos bastante articulados fazem destas manifestações fanáticas, como se fez em 64, para avançar com teses antidemocráticas e justificar manobras políticas oportunistas.


Mas o que mais preocupa, como lamentou Albert Camus em 1946, é “a boa vontade de toda a gente. Todos pensam que a verdade que possuem é a que convém à felicidade dos homens”. A conjunção das boas vontades levou, no tempo de Camus, ao terror da segunda guerra. A boa vontade dos militares e dos cidadãos de bem, que se diziam defensores da família, da moral e dos bons costumes, e que queriam ver o Brasil livre da ameaça comunista, a qualquer preço, arrastou o nosso país para uma ditadura covarde que não poupou nem as crianças. Mas todos eram movidos pela boa vontade. Todos queriam um Brasil melhor.

Para onde a soma das boas vontades que explode hoje em verde e amarelo pelas ruas, com apelos sinceros pelo retorno dos militares, vai nos conduzir? Escutem as crianças de ontem. Elas carregam os segredos do futuro.




sexta-feira, 10 de julho de 2015

O JESUÍTA LASCIVO DE ANAÏS NIN: um conto erótico freudiano sobre os colégios jesuíticos do Brasil colonial.

O JESUÍTA LASCIVO DE ANAÏS NIN: um conto erótico freudiano sobre os colégios jesuíticos do Brasil colonial.

Para Vivian, que me ensinou a ler Anaïs Nin.




Anaïs Nin, à sua maneira, abriu uma janela erótica para os tempos coloniais ao explorar, no conto O Internato, um ambiente de sedução, desejo e sexualidade nos colégios jesuíticos do Brasil antigo. Quem já não imaginou que por trás da aparência austera e severa dos jesuítas e das tradicionais escolas frequentadas por meninos de famílias de boa linhagem, o sexo pulsava, gritava, enrijecia? Se nas narrativas históricas e hagiográficas, protagonizadas por Nóbrega, Anchieta, Vieira, Benci e Antonil, os jesuítas são sujeitos históricos assexuados ligados à colonização, a educação e a evangelização, na ficção erótica de Anaïs eles perdem a aura de santidade e o escudo protetor da ordem de santo Inácio e se convertem em homens comuns, tentados pelo desejo, pela beleza e pelo frescor dos corpos dos meninos deixados sob sua orientação.

O conto foi escrito no início da década 1940, quando Anaïs Nin, incentivada por Henry Miller, escrevia pequenas histórias eróticas para um cliente desconhecido, a um dólar a página, para sobreviver. O que poderia parecer uma promiscuidade literária (escrever histórias eróticas por dinheiro para satisfazer os caprichos de um cliente misterioso) foi, na verdade, uma oportunidade para Anaïs pensar as particularidades de uma escrita feminina sobre o sexo, numa época em que só os homens escreviam sobre o assunto. O exercício lhe permitiu também jogar com as descobertas psicanalíticas nos domínios da sexualidade, explorando, por vezes de maneira caricatural e exagerada (rabelaisiana eu diria), diversas parafilias e narrativas de experiências sexuais que circulavam ao seu redor. Anaïs era entusiasta das teorias freudianas sobre a sexualidade e fora assistente e amante de Otto Rank, discípulo de Freud. A psicanálise, diluída nas entrelinhas, já que o cliente dispensava análises e poesia, atravessa os contos de ponta a ponta.

O conto desvela o cotidiano mundano de uma escola da Companhia de Jesus e o voyeurismo de um professor jesuíta (padre Dobo) de sangue indígena, olhos penetrantes e lábios licenciosos, que zelava pela boa educação dos meninos, vigiando seus corpos antes de dormir e policiando suas mentes no confessionário. Frequentemente os meninos notavam, inocentes ou maliciosos, uma saliência que teimava em aparecer sob a batina marrom do professor. A ereção vinha nas horas mais improváveis, lendo Cervantes, por exemplo, ou quando observava os meninos. Um deles em particular, loiro e “com olhos e pele de uma menina”, mexia com as saliências do padre.  A coleção particular de livros era um pretexto para Dobo ficar a sós com o menino preferido e mostrar-lhe as reproduções de cerâmica inca com homens se enfrentando. Em algumas representações “um membro comprido saia do meio de um homem e penetrava o outro por trás”. Embora Anaïs não dê detalhes, e nisto reside a eficácia erótica dos contos, a situação toda é poderosamente sugestiva. Como não imaginar o deleite e o prazer do padre acompanhando as reações do delicado menino às sugestões das imagens? Mas não era só este menino que despertava a lascívia do padre. Havia outro, rebelde, corpo esbelto, à semelhança de um “príncipe mouro”, que se recusava a dormir de camisola. Todas as noites, depois de se meter embaixo das cobertas, tirava secretamente a roupa e dormia nu. Padre Dobo, que fazia vigílias noturnas diárias para ver se os meninos não estavam se masturbando, quando chegava à cama do “príncipe mouro”, erguia as cobertas lentamente para espiar as feições do corpo. Se o garoto acordasse, o padre ralhava: “Vim ver se você estava dormindo sem o camisolão de novo”. Mas se não acordasse, olhava demoradamente o belo corpo adormecido.

Anaïs poderia eleger como protagonista do conto um dos padres seculares dos tempos coloniais, conhecidos pela “libertinagem” e pelo gosto por “sacanagens”. Não faltariam exemplos. Padre Nóbrega, já na chegada à colônia em 1549, escandalizou-se com o comportamento do clero “baiano” e “pernambucano”. Em carta a um companheiro, escreveu: “A evitar pecados esse clero não veio”. Os padres, não todos, viviam soltos, amancebados com as índias, tentando as mulheres casadas ou cometendo “tocamentos torpes” e “jogando as punhetas” com rapazes (Ver Ronaldo Vainfas. Confissões da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 1997). As crônicas coloniais e as cartas jesuíticas ofereceriam um variado banquete à Anaïs sobre a vida sexual do clero colonial. Todavia, criar uma história erótica com personagens de conhecida má reputação sexual talvez não fosse a melhor maneira de mexer com as fantasias eróticas do seu cliente. Por mais que o sujeito exigisse histórias cruas, sem adornos poéticos e filosofias, Anaïs não se satisfazia com obviedades e lugares comuns. Emprestava certa delicadeza, um toque feminino e muita inventividade, segundo ela própria, às suas histórias. A sacada no conto foi erotizar a figura do jesuíta, cercada por uma aura de santidade, lendária pela rigidez moral e pela sublimação dos prazeres do corpo.

O jesuíta de Anais, diferentemente dos “donzelões intransigentes” e carolas pintados por Gilberto Freyre, é um homem com o sexo vivo, saliente por baixo da batina, e que usa o confessionário para estimular e se deliciar com as narrativas e sonhos eróticos dos meninos. Padre Dobo criou táticas para exercitar seu voyeurismo no interior de uma instituição moralmente rígida sem chamar muito a atenção. Usava o poder que o colégio lhe conferia como educador e as cerimônias e sacramentos católicos para tirar uma casquinha dos meninos e viver secretamente os seus desejos. Numa verdadeira subversão das práticas católicas, o confessionário se convertia em esconderijo e refúgio, espécie de cantinho escuro dos prazeres, para manter os segredos íntimos do padre longe do campo de visão dos seus pares.

Ao invés de expor abertamente as práticas do padre, Anaïs ofereceu sugestivas imagens para mexer com a imaginação do leitor. A descrição da cerimônia de lavação do pênis em água benta dos meninos que se masturbavam, por exemplo, é bastante econômica. Sabemos que era realizada à noite e em grande segredo. Não ficamos sabendo o que de fato acontecia, mas imaginamos muitas coisas. Estariam aí as sutilezas e particularidades do tratamento feminino e de uma “escrita feminina” (expressão de Henry Miller) sobre a sexualidade?


Anaïs espiou o passado colonial pelo buraco da fechadura e imaginou, freudianamente, suas intimidades secretas, proibidas. O final do conto é o desfecho exemplar de uma tese freudiana imaginada no interior de uma instituição disciplinar e controladora da sexualidade. Um grupo de dez meninos se perde no mato durante um passeio escolar e, sem mais nem menos, jogam o “delicado menino loiro” na grama, sem roupas, de barriga para baixo, e usam-no como uma “prostituta”. Embora o garoto gritasse e esperneasse, foi agarrado à força e todos satisfizeram suas vontades.  O desejo contido e reprimido pela educação jesuítica castradora explodiu em fúria. O desejo reprimido pela rígida formação católica, mas secretamente estimulado pelo padre durante as confissões, se manifestou de forma agressiva e violenta sobre o garoto com traços femininos.

A imaginação erótico-literária de Anaïs viu no Internato jesuítico muito mais do que um espaço educacional, guiado pelo Ratio Studiorum visando à formação cristã do homem, destinado aos meninos de boas famílias. O colégio, para além do ideal cristão e pedagógico, era também um espaço de voyeurismos, de olhares furtivos, desejantes, de paixões silenciosas, de aprendizagens paralelas, de descobertas sobre a sexualidade.

O jesuíta de pau duro inventado por Anaïs é a antítese perfeita de Nóbrega e Anchieta. É o ponto fora da curva da Companhia de Jesus. É o lado menos heroico, virtuoso e mais humano dos jesuítas. Imagino padre Dobo, verdadeiro soldado de Afrodite na Terra dos Papagaios, travando seus próprios combates entre os teimosos prazeres da carne e o opressor modelo de castidade e santidade de Inácio de Loyola e Francisco Xavier.

Olhando da perspectiva da Companhia de Jesus, padre Dobo era a erva daninha indesejada que comprometia a vinha de deus. Da perspectiva do padre, no entanto, ele estava no jardim das delícias (não o de Hieronymus Bosch), se alimentando da beleza e do frescor das delicadas flores que germinavam sob seus cuidados.

Vale lembrar que nos tempos coloniais a infância e a adolescência não tinham os mesmos significados que têm hoje. A infância, como objeto discursivo, ou a criança, como um ser social, portadora de direitos, simplesmente não existiam. O crime de pedofilia, que atormenta a igreja católica contemporaneamente, portanto, não se aplica aos deslizes morais do padre Dobo. Seus pecados, aos olhos da moral católica da época, eram outros.


sexta-feira, 29 de maio de 2015

“DITADURA MILITAR” OU “DITADURA CIVIL-MILITAR”? Mais que uma questão terminológica, a urgência do debate.

“DITADURA MILITAR” OU “DITADURA CIVIL-MILITAR”? Mais que uma questão terminológica, a urgência do debate.




Porque os civis nos chamavam de covardes. Eu fui chamado de covardes várias vezes. Fardado. Gente desconhecida na rua da Praia, que é a rua do Ouvidor em Porto Alegre. “Vocês são uns covardes. O que é que estão esperando?” Cansei de ouvir. “Estão esperando que o Stalin venha sentar aqui em Brasília”. Era nesse tom. “Quer dizer, nós fomos atrás do povo.”
(General Carlos Alberto da Fontoura. Depoimento de 1993 sobre o apoio dos civis ao golpe de 64).

Participamos da Revolução de 1964, identificados com os anseios nacionais de preservação das lnstituições democráticas, ameaçadas pela radicalização ideológica, greves, desordem social e corrupção generalizada. Quando a nossa redação foi invadida por tropas anti-revolucionárias, mantivemo-nos firmes em nossa posição. Prosseguimos apoiando o movimento vitorioso desde os primeiros momentos de correção de rumos até o atual processo de abertura, que se deverá consolidar com a posse do novo presidente. 
(Roberto Marinho. Editorial do Jornal O Globo, 1984).

Estava pensando cá com meus botões, na década de 70, era filha de pobre e consegui cursar um cursinho de pré-vestibular caríssimo e fazer 4 anos de faculdade numa universidade particular, por ter ficado como excedente no curso de Medicina da UFRJ. Como não quis prestar vestibular no ano seguinte, resolvi fazer Biologia na FTESM. O que hoje não me arrependo 1 minuto. Isso foi na ditadura militar. Paguei todas as mensalidades no dia certo, sem ter entrado em nenhum plano do governo. Ao levar meu diploma na mão, não devia um centavo. Hoje no "governo socialista", o pobre não consegue nem pagar o cursinho de pré-vestibular... As faculdades particulares "cheias de alunos"... que abandonam o curso no meio do caminho por falta de recurso para pagar seus créditos.
(Leila de Souza Bastos. Bióloga e professora. 2013).



A “ditadura militar”, ou “civil-militar”, está longe de ser um assunto do passado que deva ser esquecido. A memória e os efeitos da ditadura na sociedade e na cultura política brasileira estão mais vivos do que nunca e dividem as opiniões, acadêmica e socialmente. Os trabalhos da Comissão da Verdade e o desejo de retorno dos militares por parte de setores da sociedade brasileira, manifesto nas recentes manifestações de rua contra o governo, nos dão bem a medida da centralidade do tema no debate político atual. Não podemos ignorar que para uma parcela crescente deste fenômeno sociológico mal compreendido que chamamos de classe média brasileira, os militares que derrubaram o presidente João Goulart, sob a acusação de suposta esquerdização do governo, são verdadeiros heróis nacionais. Os admiradores dos militares já não têm mais vergonha de mostrar a cara, nas ruas e nas redes sociais, e exibir cartazes pedindo uma nova “intervenção militar”.


Na última década e meia, marcada pela ascensão de governos de esquerda no Brasil e na América do Sul, as ditaduras, como era de se esperar, ganharam ainda mais destaque nos debates políticos. Nesse contexto, no Brasil, surgiu a expressão “ditadura civil-militar”, empregada por acadêmicos, ativistas e, em menor escala, por jornalistas, para designar com mais precisão o golpe e a ditadura imposta ao Brasil em 1964. A expressão consagrada na literatura, nos meios jornalísticos, e de uso corrente na sociedade até então, era “ditadura militar”. Mas afinal, o que de importante a nova expressão traz e em que medida ela nos ajuda a entender melhor o golpe e a ditadura?

O historiador Daniel Aarão Reis Filho é um dos mais enfáticos defensores do uso da terminologia “civil-militar”. Segundo Aarão, em artigo publicado em 2012: “Tornou-se um lugar comum chamar o regime político existente entre 1964 e 1979 de “ditadura militar”. Trata-se de um exercício de memória, que se mantém graças a diferentes interesses, a hábitos adquiridos e à preguiça intelectual. O problema é que esta memória não contribui para a compreensão da história recente do país e da ditadura em particular. É inútil esconder a participação de amplos segmentos da população no golpe que instaurou a ditadura, em 1964. É como tapar o sol com a peneira”. 

Aarão destaca as marchas de dezenas de milhões de pessoas, “de todas as classes sociais”, em apoio e depois em comemoração ao golpe. Participaram das marchas “a maioria dos partidos, lideranças empresariais, políticas e religiosas, e entidades da sociedade civil, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros (CNBB), as direitas”. Entretanto, existe “a obsessão em caracterizar a ditadura como apenas militar”. Quem se favorece disso? A memória atual, que sustenta que a ditadura foi apenas militar interessa as entidades civis que apoiaram a ditadura. Se ela foi “apenas” militar, “todas elas passam para o campo das oposições”. “Desaparecem os civis que se beneficiaram do regime ditatorial. Os que financiaram a máquina repressiva. Os que celebraram os atos de exceção. O mesmo se pode dizer dos segmentos sociais que, em algum momento, apoiaram a ditadura. E dos que defendem a ideia não demonstrada, mas assumida como verdade, de que a maioria das pessoas sempre fora - e foi - contra a ditadura”. A preservação desta memória, conclui Aarão, limita a compreensão das complexas relações entre ditadura e sociedade.

O historiador Carlos Fico sustenta um ponto de vista semelhante. Num evento em 2012, numa mesa organizada pela Comissão da Verdade intitulada “Antecedentes, contexto e razões do golpe militar”, Fico afirmou que “o golpe não foi militar, mas civil-militar”. Num artigo publicado no jornal “O Globo” de 2014, voltou ao tema e avaliou que o maior avanço da historiografia recente consiste na busca de objetividade em relação à ditadura. Graças ao “distanciamento histórico”, as novas abordagens nos lembram, baseadas em novas fontes documentais e perspectivas regionais, que “setores significativos da sociedade apoiaram a derrubada de João Goulart”. Os novos estudos comprovam, por exemplo, que a insatisfação das classes médias urbanas não era apenas resultado da “manipulação propagandística”, e que alguns estudantes apoiaram o golpe. “Por tudo isso, o golpe de Estado, outrora chamado de “militar”, tem sido melhor designado como “civil militar”. Essa perspectiva, de acordo com o historiador, é essencial, porquese entendermos o golpe apenas como o episódio que iniciou uma ditadura brutal, correremos o risco de construir leitura romantizada, segundo a qual a sociedade foi vítima de militares desarvorados. Quando a historiografia mais ousada se contrapõe a essa leitura vitimizadora, ela não está propondo um “revisionismo reacionário” que buscaria eximir de culpa os golpistas. Apenas se trata da reafirmação de algo óbvio: não há fatos históricos simples. Entender porque uma solução autoritária foi de algum modo aceita naquele momento pode servir para exorcizarmos a sociedade brasileira do autoritarismo que tantas vezes vitimou a história de nossa República”.

A historiadora Denise Rollemberg, numa entrevista ao “IHU-on-line” em 2009, sobre os 40 anos da morte de Carlos Marighela, numa linha argumentativa próxima da de Fico e Aarão, observou que: “Segmentos importantes da sociedade, não só das classes média e média alta, mas setores populares receberam de uma forma muito alegre a instauração do regime e apoiou o regime durante um bom tempo. Esta ideia de que a sociedade brasileira resistiu contra a ditadura, que a ditadura é uma questão dos militares e não da sociedade, é uma construção, a partir do fim dos anos 1970, que é memória e não história. É importante perceber que a ditadura não foi militar, mas civil e militar. Isto deve ser pensado para compreender porque a luta armada ficou tão isolada. Foi porque a sociedade foi muito participante da ditadura”. 

Longe de ser uma unanimidade, o uso da expressão vem despertando acalorados debates envolvendo pesquisadores e pessoas que direta ou indiretamente estão ou estiveram envolvidas com a ditadura. Os que se opõe à nova conceituação afirmam que o uso do termo “civil” descaracteriza a “ditadura militar”, tanto conceitualmente como politicamente. O jornalista Pedro Pomar, num artigo publicado em 2012 no “Brasil de Fato”, afirmou, em tom de reprovação, que virou moda o uso da expressão “ditadura civil-militar” “para designar o regime instaurado em nosso país por meio do golpe militar de março-abril de 1964”. Pomar considera a expressão um “modismo equivocado”. Ao propor a designação “civil-militar” “com a finalidade de garantir que não seja esquecida a participação dos civis”, por mais nobre que sejam as intenções, “termina-se por obter efeito inverso, qual seja, o de diminuir a responsabilidade dos militares, além de confundir a sociedade brasileira, já familiarizada com a expressão Ditadura Militar para designar esse terrível período da nossa história.” Além disso, arremata Pomar, “o termo civil também serve para designar o regime como autoritário, brando, negociado etc. Como se não fosse uma ditadura”, adverte o historiador Lincoln Secco”.

Vale também registrar um comentário ao artigo de Daniel Aarão enviado ao jornal “O Globo” pelo historiador Renato Luís do Couto Neto e Lemos. A “revisão interpretativa” sobre a ditadura é vista pelo historiador como a “reinvenção da roda historiográfica”. A expressão ditadura civil-militar, ao contrário de esclarecer, “constitui um freio na elucidação do seu sentido histórico, porque dilui na vaga categoria “civil” o conteúdo classista do golpe e da ditadura, sobejamente conhecido”. A ênfase no “apoio civil” ao golpe e a ditadura, apresentada como “novidade historiográfica”, pode desestimular os jovens historiadores de buscar a fundo os “poderosos interesses classistas” que presidiram àqueles acontecimentos. “Em suma, concluiu Renato Lemos, jogar o foco da análise de um processo de cruenta disputa política numa sociedade civil metafísica, descarnada, sem conexões com classes e categorias sociais portadoras de projetos classistas é induzir o respeitável público à mistificação da história. Uma abordagem que falseia o estado atual do conhecimento e não o faz avançar um milímetro sequer”.



“Ditadura Civil-Militar” não é um “Modismo Historiográfico”.

As duas formas de se referir à ditadura têm as suas legitimidades e, sobretudo, traduzem momentos e contextos distintos da reflexão histórica sobre o tema. A expressão “ditadura militar”, de um lado, está intimamente ligada à resistência a ditadura e a luta pela redemocratização. O uso da expressão, como contraponto a ideia de “revolução” empregada nos círculos de apoio ao regime, consagrou-se como denúncia da tomada de poder pela força e da imposição de um regime construído à base da cassação das liberdades democráticas e que usou da violência para reprimir as forças de oposição. A expressão “ditadura civil-militar”, de outro lado, embora sem perder de vista o teor crítico e de denúncia da ditadura, está mais conectada com as demandas recentes da sociedade brasileira e a necessidade de rever os conceitos e ampliar o olhar dos pesquisadores, e da sociedade, sobre a natureza do golpe e do regime ditatorial. Mais do que a denúncia, e tentando ir além, a expressão traduz um esforço de entendimento sobre a ditadura, favorecido pelo maior distanciamento histórico.
A terminologia “civil-militar” pode não agradar a todos, como vimos, mas ela tem lá as suas pertinências. Todavia, não pretendo estimular uma disputa entre termos. Não se trata de afirmar esta ou aquela terminologia, mas ressaltar a importância do debate. É no debate político e historiográfico que podemos alargar nossa visão, ir além da memória e do discurso da resistência, e avançar na compreensão mais abrangente tanto do ponto de vista da arquitetura do golpe quanto da sustentação do regime.

Longe de ser um “modismo” ou uma “manipulação terminológica”, como já foi sugerido, a expressão “ditadura civil-militar” aponta para um esforço de compreensão da ditadura para além do aspecto puramente militar. A terminologia “ditadura militar”, por certo, não negligencia a participação civil no golpe e na sustentação da ditadura. Da mesma forma, o acréscimo do termo “civil” não descaracteriza nem mascara o caráter militar da ditadura. Em certo sentido, consciente ou não, a expressão “ditadura militar” encerra uma visão vitimizadora da sociedade brasileira e das esquerdas, atribuindo aos militares a culpa pelo que ocorreu na época. Mesmo apontando para a cumplicidade de setores da classe média e de uma elite civil próxima dos militares, a expressão reduz semântica e sociologicamente a ditadura ao seu aspecto militar. A vitimização da sociedade e a vilanização dos militares em nada ajudam a entender as complexas relações entre ditadura e sociedade. Estas construções binárias tinham um caráter de denúncia e de condenação da ditadura, importante nas décadas de 1970-80, desvelando os crimes e os excessos cometidos pelos militares. Hoje, a uma distância confortável e segura daqueles tempos, e sem a ameaça de um retorno dos militares, precisamos ir além e entendermos a ditadura em todas as suas dimensões.



As críticas ao uso do termo “civil”, e o suposto efeito de abrandamento da ditadura, vêm de setores mais a esquerda, tradicionalmente avessos a revisões históricas, geralmente taxadas de reacionárias.
O uso do termo “civil” para adjetivar a ditadura, a meu ver, chama a atenção para um fenômeno que cada vez mais nos interessa: a atual idealização dos militares como os salvadores da pátria. Os sucessivos governos do PT, os escândalos de corrupção e o baixo desempenho da economia criaram um ambiente de crise de legitimidade do governo (Ainda que a noção de legitimidade seja bastante problemática). É em momentos como este, como bem observou Raoul Girardet, que se situam os apelos mais veementes ao herói salvador. No nosso caso, das forças armadas, a instituição salvadora. As reflexões de Girardet sobre a figura do salvador e os contextos de crise de legitimidade podem nos oferecer bons insights para pensar o que aconteceu no Brasil em 1964 e o que acontece hoje. A defesa que alguns movimentos e setores da sociedade brasileira fazem da intervenção restauradora e purificadora dos militares tem um apelo mítico. Os mitos políticos aparecem como respostas específicas de cada sociedade, ou de certos grupos sociais, a determinadas situações: rejeição global de um governo justa ou injustamente desacreditado, ruína financeira, desordem interna (Girardet), e eu acrescentaria, como característicos da sociedade brasileira, a corrupção e a ameaça de governos com tendências de esquerda. Nestes momentos, o ideal de regeneração moral e os apelos a um suposto passado de ordem e decência - a intervenção e o regime militar – aparecem como a solução para a desordem e a decadência do presente. A intervenção salvacionista das forças armadas, como em 64, verdadeira panaceia conservadora, operaria uma correção dos rumos e devolveria ao país a credibilidade, a confiança e a decência perdidas. Uma breve consulta nas páginas dos grupos pró-intervenção nas redes sociais, e nos comentários dos simpatizantes, é suficiente para identificar o apelo mítico à intervenção regeneradora dos militares.



As crescentes e inquietantes demonstrações públicas de apelo por uma “intervenção militar” vindas de diferentes setores da sociedade brasileira, e o silêncio cúmplice, e por vezes o apoio tácito, de parte da imprensa brasileira, nos obrigam a entender melhor o apoio popular e a participação de agentes civis no golpe de 64 e no regime ditatorial. A simpatia pela ditadura e por mecanismos autoritários de governo, ainda que alimentada pela desinformação, é um dado do presente que deve reorientar o olhar do historiador/pesquisador sobre o passado recente. A polarização política decorrente da ascensão da esquerda vem provocando verdadeiros combates pela memória. Leituras favoráveis à ditadura e aos militares, ainda que rasas e pobres heuristicamente, disputam com as narrativas da esquerda e dos historiadores. Gostando ou não, as narrativas pró-militares apresentam-se como contraponto conservador à chamada memória da resistência, em certo sentido mistificadora, emplacada pela esquerda desde o final dos anos 70. Personagens como Lamarca, Marighela e Dilma Rousseff, antes vistos como heróis por enfrentar a ditadura, são hoje atacados e chamados de terroristas. A violência praticada pelos miliares é relativizada e justificada como necessária para deter o avanço do comunismo e impedir a cubanização do Brasil.



Já existem estudos a respeito da participação de agentes civis e do apoio de setores da sociedade ao golpe de 64. O tema não é nenhuma novidade. Lembro, no livro do René Dreifuss “1964, a conquista do Estado”, de um capítulo dedicado ao complexo IPES/IBAD e ao envolvimento dos civis e de uma “elite orgânica” “na estratégia militar contra” o governo. A queda do governo de João Goulart, afirmou Dreifuss, “ocorreu como a culminância de um movimento civil-militar e não como um golpe das Forças Armadas contra João Goulart”. E ainda: “Apesar de a administração pós-1964 ser rotulada de ‘militar’ por muitos estudiosos de política brasileira, a predominância contínua de civis, os chamados técnicos, nos ministérios e órgãos administrativos tradicionalmente não-militares, é bastante notável”. Embora Dreifuss, no final da década de 1970, já apontasse a decisiva participação civil no golpe e nos governos militares, os estudos existentes sobre o tema são insuficientes e limitados. Precisamos de novas abordagens, iluminadas por novas fontes, orais e escritas, e que incorpore os documentos e as questões levantadas recentemente pela Comissão da Verdade.

Ao que parece, o fenômeno de apoio a uma nova “intervenção militar” não se limita à classe média elitizada imaginada pelos intelectuais de esquerda. O conceito de classe média é bastante impreciso e insuficiente para dar conta do Brasil de hoje. O uso que se faz é estereotipado e marcado, antes de tudo, por forte dose de pré-conceito, o que dificulta muito o entendimento sobre as aspirações e visões políticas dos setores identificados como de classe média. É preciso reavaliar os conceitos com os quais se examina este tema, sobretudo o de classe. Ao contrário do que sugeriu Renato Lemos, creio que é justamente a abordagem centrada na noção de classe que pode estreitar o olhar e limitar o entendimento das conexões dos militares com os setores da sociedade civil que apoiaram a ditadura. O conceito é redutor e já traz respostas apriorísticas. Tenho mapeado, na medida do possível, a origem social dos movimentos e dos simpatizantes, e percebido que a formação, o poder aquisitivo, a atuação profissional e a faixa etária são bastante amplas e diversas, e que não se restringe aos grandes centros urbanos do centro sul. Não adianta ficar teorizando sobre os movimentos pró-intervenção com base num conceito problemático, deslocado e anacrônico de classe média. Xingá-los de elitistas e ignorantes ajuda menos ainda. É preciso botar a mão na massa e percorrer, com instrumentos de pesquisas mais adequados, como entrevistas orais e netnografias (porque não?), a anatomia destes grupos, a origem social, profissional e a faixa etária dos participantes e simpatizantes. A netnografia, termo cunhado pelo pesquisador norte-americano da área do marketing Robert Kozinets, entendida como a adaptação dos procedimentos da etnografia ao ambiente virtual, pode ser de grande valia para conhecer mais de perto os grupos e comunidades virtuais de apoio ao retorno dos militares. O pesquisador, identificando-se ou não, entra nas comunidades e passa a conviver com os grupos por um determinado período para conhecer o perfil e a visão de mundo dos membros, e, a partir da observação participante, extrair as informações que lhe permita entender melhor suas motivações. As entrevistas orais com agentes militares e civis que participaram do golpe e da sustentação da ditadura, como já vêm sendo feito, podem oferecer novos ângulos de observação. O livro de entrevistas com militares que ocuparam cargos importantes durante a ditadura, organizado por Maria Celina D'Araújo, intitulado “Visões do Golpe”, é um bom exemplo.


A denominação “ditadura civil-militar”, se observada com atenção, insisto, não diz respeito somente ao passado ou a maneira como interpretamos o golpe de 64. Ela repercute as demandas políticas urgentes do nosso tempo e a necessidade de revermos nossos conceitos e categorias para entendermos melhor e lidarmos com mais maturidade com as ondas de conservadorismo autoritário que, sob certas circunstâncias, reaparecem no Brasil.




Roberto Marinho e o general Figueiredo. O empresário e o general, de braços dados, é a melhor tradução da expressão “ditadura civil-militar”.