NOLLYWOOD
CONTRA-ATACA: A Invasão Extraterrestre do Mundo Não Vai Começar Nos Estados
Unidos.
“Renascimento
africano”, expressão cunhada pelo historiador e antropólogo senegalês Cheikh
Anta Diop e popularizada nos últimos anos por Thabo Mbeki, é um conceito que
nos ajuda a compreender o caminho do desenvolvimento tecnológico, científico e
econômico que algumas nações africanas vêm trilhando nas duas últimas décadas.
A noção de “renascimento” indica a superação das enormes dificuldades que se apresentam
ao continente e a busca de alternativas próprias, para além dos modelos
ocidentais, fundadas na riqueza étnica e na valorização das culturas locais. Se
prestarmos atenção ao cinema produzido na Nigéria e em Gana, os dois polos mais
expressivos do cinema africano atual, a ideia de um “renascimento” cultural
baseado na cultura local salta aos olhos. O cinema nigeriano, o caso mais bem
sucedido, é visto hoje como o setor mais dinâmico da economia e um dos pilares do
desenvolvimento nacional. Emprega milhares de nigerianos, gera lucros
excepcionais e alcança o mercado dos países vizinhos.
País
mais populoso da África, a Nigéria é para nós um continente ainda desconhecido.
O que sabemos sobre a Nigéria e os nigerianos para além do que nos dizem as
pautas seletivas dos sites e noticiários internacionais? Ou mais
especificamente, o que sabemos sobre a produção cinematográfica nigeriana, uma
das maiores do mundo? Quase nada. Excetuando os raros ciclos de filmes
africanos organizados no Brasil, os filmes nigerianos estão fora do alcance, e
do gosto (?), do mercado de consumo de cinema dos brasileiros e da maioria dos “cinéfilos”.
A
Nigéria é um dos trinta países mais pobres do mundo e um dos mais intolerantes
em relação à religião e a sexualidade. É a contraface obscura do
“renascimento”. Desde a redemocratização em 1999 o país vive as voltas com a
intolerância religiosa entre cristãos e muçulmanos. Os massacres se sucedem com
inacreditável brutalidade, com cenas de espancamentos, chacinas, decapitações e
cristãos queimados dentro das igrejas. Quase sempre as justificativas apontam
para supostas blasfêmias contra o corão e o profeta Maomé. A perseguição aos
gays também tem marcado o país e projetado uma imagem internacional assustadora.
O amor entre pessoas do mesmo sexo é ilegal no país desde os tempos da
colonização inglesa, mas no começo deste ano uma nova lei, aprovada pelo
presidente Goodluck Jonathan, e apoiada pela maioria da população, piorou o que
já estava ruim. A lei proíbe uniões civis do mesmo sexo e determina quatorze
anos de prisão para quem casar ou viver em união de fato. A lei também atinge
quem estiver ligado a clubes ou associações homossexuais. Nestes casos prevê-se
dez anos de cadeia. Recentemente o país tornou-se o centro da atenção mundial
por conta do sequestro de mais de duzentas meninas de uma escola em Chibok, pelo grupo extremista islâmico Boko
Haram.
Mas
a Nigéria não é só isso. A pobreza e a intolerância são humanamente
devastadoras, mas não podem ser definidoras exclusivas da identidade
internacional do país. Um fenômeno
desconhecido por nós brasileiros, e pelo ocidente de um modo geral, tem chamado
cada vez mais atenção para a Nigéria. A produção cinematográfica é a segunda
maior do mundo, ficando atrás apenas de Bollywood, na Índia. Hollywood ficou
recentemente com o terceiro lugar. Um relatório da UNESCO de 2009 já apontava
que a indústria de cinema da Nigéria ultrapassara Hollywood. Nos últimos anos o
polo cinematográfico nigeriano cresceu vertiginosamente. Em 2006, Nollywood, como é chamado o conjunto da
produção cinematográfica, superou a poderosa indústria
norte-americana. Enquanto Hollywood rodou 485 filmes, Nollywood rodou 872.
Bollywood produziu 1.091 filmes. (Uma matéria na Le Monde Diplomatique, de
2009, apontava que a produção de filmes na Nigéria era a maior do mundo,
alcançando uma produção de até 1500 filmes por ano). Vale lembrar que em Gana a
produção de filmes também atingiu um patamar formidável, e já vem sendo, há
alguns anos, chamada de Gollywood.
A
trajetória do cinema nigeriano recente é dividida em três momentos:
-
de 1992 a 1998, período que pode ser
identificado como a gênese, é denominado “The Beggining” ou “Classiscs VHS”;
- de 1999 a 2007 temos o “Boom”;
- o período que vai de 2008 até hoje é chamado de “Nollywood
Now” ou “New Nollywood”.
De
acordo com o mito de origem de Nollywood, tudo começou em 1992 com as primeiras
cópias caseiras realizadas em formato VHS. Um sujeito chamado Kenneth Nnebue
tinha um grande estoque de fitas VHS em branco, vindas de Taiwan, para vender. Para
alavancar as vendas, decidiu gravar alguma coisa nas fitas para torna-las mais
atraentes. O filme escolhido foi "Living in Bondage",
um clássico do cinema nigeriano, de 1992, sobre um homem que mata
ritualisticamente a mulher por dinheiro, mas passa a ser assombrado pelo
espírito da falecida. O negócio deu certo. O filme foi um sucesso popular. Nnebue
vendeu mais de 750,000 cópias e despertou uma legião de imitadores, que lhe
seguiram os passos. Do mercado informal e improvisado de VHS, recheado com
filmes voltados para o gosto local, nascia Nollywood. Em poucos anos o negócio
se transformou num fenômeno de vendas e de produção, alcançando até as áreas
rurais mais pobres do país.
Link
para assistir “Living in Bondage”:
https://www.youtube.com/watch?v=pu_8a_OLiBg
O
curioso é que este fenômeno cinematográfico está acontecendo num pais que
praticamente extinguiu as salas de cinema há mais de vinte anos. A explicação é
simples: na década de 1980 a violência e a crise econômica que assolavam o país
afastaram o público das salas de cinema. Era mais seguro ver filmes em casa. O
meio encontrado para driblar as dificuldades foi a produção de home vídeos.
Toda produção cinematográfica nigeriana é de home vídeos e 90% da produção não
é oficial ou legalizada. O fenômeno acontece no mercado informal sem qualquer
tipo de incentivo do governo. Segundo dados de 2006, o cinema nigeriano
empregava, entre produção e distribuição, cerca de um milhão de pessoas. Era,
depois da agricultura, o setor que mais gerava emprego no país.
Os filmes são produções
artesanais, com equipamentos baratos, a custos muito baixos, voltados para o
gosto local. Custam em média entre 10 e 20 mil dólares e os atores, quase
sempre amadores, faturam algo em torno de 300 dólares por filme. Os filmes são
rodados e comercializados, em média, em uma semana. Custam alguns dólares (três
dólares, segundo algumas fontes) e vendem algo em torne de 20 mil cópias (os
grandes sucessos ultrapassam esta marca). Portanto, não esperem dos filmes de
Nollywood superproduções com acabamento técnico apurado, narrativas
sofisticadas, montagens de cair o queixo e roteiros fodões.
Apesar dos baixos custos de
produção e do amadorismo, os lucros alcançados pelo cinema nigeriano são
impressionantes. Em 2011 foram movimentados cerca 250 milhões de dólares.
Sucessos caseiros, os filmes nigerianos começam também a conquistar os mercados
dos países vizinhos (Gana, Quênia, Uganda,
Gâmbia, Níger, Camarões, Benin, Zâmbia, Togo o Sudão). Na África do Sul, a MultiChoice, uma empresa de televisão via satélite,
oferece um canal exclusivo para os filmes nigerianos, que também são transmitidos
para Botsuana, Zimbábue, Suazilândia,
Namíbia. E a coisa não para por aí. Nollywood vem despertando o interesse
fora da África. A Zenithfilms, uma empresa britânica que distribui a
programação da Nigéria para as companhias aéreas, anunciou que vai lançar um
novo canal, chamado de Nollywood filmes, na British Sky Broadcasting Group (BSkyB) a famosa operadora de televisão britânica controlada por Rupert
Murdoch (dados de 2006, da The Economist).
O
sucesso e a ascensão relampado de Nollywood se devem a uma conjunção de
fatores. De um lado, o empreendedorismo local associado à tecnologia digital,
de outro, a sacada de fazer filmes em vídeo visando o gosto local, numa época de
escassez de salas de cinemas (Em 2013 havia apenas 12 salas de cinema no país).
The Day They Came.
A mais
recente e curiosa produção do cinema nigeriano é o filme de ficção científica “The
day they came”. O enredo é simples, manjado, mas... Um
homem abre a porta da casa e sai para fumar um cigarro na rua. Parece ser um
dia como outro qualquer. Sons familiares e cotidianos como o canto de um galo e
o latido de cachorros ao longe sugerem tranquilidade. A normalidade de súbito é
rompida por ruídos estranhos que inesperadamente rasgam o véu plácido da manhã
de domingo. Em segundos o homem se vê em meio a uma invasão de gigantescos
robôs alienígenas e naves espaciais que disparam com poderosas armas de laser
pulverizando o mundo a sua volta. O homem não é Tom Cruise nem Will Smith, e a
ação não se passa em New York ou em alguma cidade norte-americana. A invasão
alienígena começou na periferia de Lagos, na Nigéria. É este o argumento do
curta-metragem “The day they came”, produzido em 2014 pela “Ficsion film”, uma
promissora produtora de filmes nigeriana. O curta, de 3 minutos, que brinca com
o enredo de “Guerra dos Mundos”, é o primeiro de uma série de episódios que
ainda estão por vir. Aguardemos. A ficção científica nigeriana esta só
começando. Os efeitos especiais são soluções caseiras precárias, quase
risíveis, se comparados com a tecnologia dos efeitos de Hollywood, mas alguma
coisa está acontecendo por lá.
(Link
para quem quiser conferir: http://www.youtube.com/watch?v=SSKwKJtezU0).
O filme, em
parte, é uma reação, ou uma resposta cinematográfica, às imagens degradantes dos
nigerianos apresentadas no filme “District 9”. O filme, de 2009, dirigido pelo
sul-africano Neill Blomkamp,
é uma coprodução Estados Unidos-África do Sul, Canadá e Nova Zelândia, que custou
30 milhões de dólares. Foi filmado como um pseudo documentário que narra a
história de alienígenas que por problemas técnicos ficaram presos no nosso
planeta. A nave enguiçada paira sobre Johanesburgo. Os alienígenas, resgatados
com vida do interior da nave, foram instalados numa espécie de campo de
refugiados. O lugar, cercado com muros altos e apartado da cidade, logo adquiriu
aspecto de favala. Os Ets, ilhados e discriminados, vivem em conflitos com a
populaçõa local, que não aceita a presença das criaturas com desgradável aspecto
de camarão. O filme é uma alegoria do apartheid. Os Ets vivem isolados,
cercados, são vistos com preconceito e comem comida de animais. Na favela vivem
também os imigrantes nigerianos, que formam uma gang criminosa que atua no
submundo de Johanesburgo traficando armas, explorando a prostituição e a feitiçaria.
São eles que fornecem comida de gato, apreciada pelos alienígenas, em troca das
poderosas armas extraterrestres. O líder dos nigerianos é um sujeito de aspecto
amedrontador chamado Obesandjo que busca obstinadamente, por meio da
feitiçaria, se apossar da tecnologia dos Ets.
O modo como os nigerianos foram retratados provocou uma
onda de indignação e revoltas (Uma página no facebook, chamada “Distrito 9 odeia a nigéria”,
foi criada para canalisar os protestos).
A reação oficial
do governo nigeriano foi contundente. As autoridades consideraram que o filme ofendia
e denegria o país. A Silverbird Cinemas, maior distribuidora de filmes da
Nigéria, teve que suspender a circulação do filme, obedecendo à decisão do
governo (No entanto, a decisão de proibir o longa só fez aumentar
o interesse do público. Milhares de cópias da produção foram baixadas da
internet). Já a ministra de Informação e Comunicação, Dora
Akunyli, exigiu da Sony Pictures um pedido oficil de desculpas por apresentar
os nigerianos como “canibais, criminosos e prostitutas”. Dora indignou-se
também pela referência ao sobrenome do ex-presidente nigeriano – Obasanjo – ser
usado como apelido do chefe dos criminosos nigerianos no filme e convocou a
população a “resistir a qualquer tentativa de apresentar os nigerianos como
crimonosos”. “O filme, afirmou a ministra, mostra mulheres nigerianas
mantendo relações sexuais com não humanos.”
O
escritor nigeriano-americano Nnedi Okorafor assistiu ao filme a irritou-se com
o que considerou um estereótipo abismal dos nigerianos. Em resposta começou a
escrever um romance de ficção intitulado “Lagos”, que narra uma invasão
alienígena na cidade de Lagos. Nas palavras do escritor: “Trata-se de uma
invasão alienígena na cidade de Lagos e como os Lagosians de todas as esferas
da vida lidam com isso. Eu
comecei a escrevê-lo como um roteiro para o diretor de Nollywood Tchidi
Chikere. Ele e eu estávamos profundamente irritados
com o filme Sul Africano de ficção científica District 9, de estereótipo
abismal dos nigerianos.
Quando comecei a escrevê-lo, rapidamente se tornou algo diferente de uma
resposta ao Distrito 9; tornou-se a sua própria história com a sua
própria alma.”
“The day
they came”, inspirado no romance de Okorafor, é, portanto, parte de uma reação
nacional a “Distrito 9”. Mas não é só isso. É a primeira produção nigeriana relevante
no campo da ficção científica que, a sua maneira, e a partir de sua deficiência
técnica, retira dos Estados Unidos o protagonismo exclusivo nesta área. Claro, “The
day they came” não tem como competir com o vertiginoso “Independence Day”, e
não é esta a ideia. O que conta é a iniciativa e a ousadia de narrar uma
invasão alienígena da perspectiva africana.
O
cinema nigeriano, quase desconhecido fora da África, não é um cinema para
satisfazer as exigências de quem foi educado pelo padrão hollywoodiano e se
contenta com o que vem da terra do Tio Sam. Os Estados Unidos fazem o pior e o
melhor cinema do mundo, mas o mundo dos filmes não se esgota nos Estados
Unidos. Para compreendermos o cinema nigeriano, e o cinema africano de um modo
geral, não podemos compará-lo com o cinema hollywoodiano. É preciso conhecer as
particularidades do fazer cinematográfico na África. Os filmes norte-americanos
servem de inspiração para parte das produções nigerianas, que os adaptam ao
gosto popular, a estética e as condições técnicas locais. Filmes de zumbis (Witchdoctor of the Living
Dead), de terror (House of Horror), de ficção científica (The day they
came), super-heróis (Oya: Rise of the Orisha) e thriller
policial (October 1), são
alguns exemplos dos empréstimos fílmicos tomados de Hollywood. Nestes casos,
pratica-se verdadeira antropofagia cinematográfica. Temas e gêneros característicos
do cinema norte-americano, consumidos globalmente, são retrabalhados pelos
cineastas nigerianos, com atores, idiomas e cores locais, e adaptados ao paladar
e a sensibilidade do público. Na releitura nollywoodiana das temáticas hollywoodianas
os super-heróis são os orixás, os zumbis estão associados às práticas mágicas e
a invasão extraterrestre não vai começar nos Estados Unidos.
Mas
na maior parte, os filmes narram histórias sobre situações comuns da vida e do
imaginário popular, como a prostituição, a corrupção, os amores mal resolvidos,
a feitiçaria, a ganância, os medos. São temas nos quais o público se reconhece.
Parece-me que vem desta identificação a explicação para a gigantesca expansão
da indústria do home vídeo nigeriana. As
situações dramáticas, cômicas e assustadoras interpretadas por atores
nigerianos, carregam mensagens que levam o expectador à reflexão. Na fórmula nollywoodiana
o conteúdo é mais importante que a forma. Isso explica em parte o descuido com
os aspectos técnicos, a simplicidade dos enredos, o apelo ao dramalhão e a falta
de sutilezas estéticas. Mas foi assim, com interpretações bastante amadoras, com
efeitos especiais precários e enredos considerados pobres que os filmes
conquistaram o público, abriram espaço e consolidaram um mercado muito lucrativo.
Os críticos, com alguma razão, dizem que tudo não passa de um fenômeno
comercial, visando apenas o lucro fácil, sem nenhuma preocupação com a
qualidade, com a estética e com a tradição autoral do cinema africano. Por esta
razão, os filmes nigerianos não teriam condições de participar de festivais e
mostras africanas e internacionais de cinema. Por outro lado, sustentam os
defensores do home vídeo, os filmes são voltados não para o gosto internacional
e refinado de cinema, mas para o gosto popular, e são amplamente consumidos no
mercado local e regional.
O
governo nigeriano, interessado na projeção do país, resolveu apostar no cinema
e aprovou em 2010 uma linha de crédito de 200 milhões
de dólares. O primeiro cineasta a receber o incentivo foi Abulu, um
nigeriano que vive no Harlem e está empenhado na produção de filmes com mais qualidade.
Abulo recebeu 250 mil dólares para rodar um filme chamado “Dr Bello”,
que narra a história de um oncologista afro-americano que tenta salvar um paciente
com a ajuda de um médico nigeriano. O apoio do governo representa um esforço
para produzir filmes com mais qualidade técnica, capazes de serem exibidos em
salas de cinema no mundo todo, e derrubar o estigma da precariedade, do improviso
e da baixa qualidade que acompanha o cinema nigeriano. Abulu contou com astros
renomados em Nolywood, como Genevieve Nnaji e
Stephanie Okereke e convidou os atores hollywoodianos Isaiah Washington (da
série "Grey's Anatomy") e Vivica A. Fox (de "Independence
Day"). (Folha de São Paulo, 8 de outubro de 2012 ). O filme pode ser visto
no canal YouTube. Assistam e tirem suas próprias conclusões.
Gostem
ou não, Nollywood esta aí. É uma nova maneira de fazer cinema. Num mundo cada
vez mais marcado pelo gosto padronizado por filmes, e pelo confinamento do
cinema nas hiper-salas de shopping centers, a novidade que vem da Nigéria é, no
mínimo, provocante.
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