“BELA, RECATADA E DO LAR”: A EXALTAÇÃO DOS ATRIBUTOS DE MARCELA COMO ELOGIO
ANTECIPADO DA PROVÁVEL ADMINISTRAÇÃO DE MICHEL TEMER.
Na década de 1960 as revistas
femininas traziam campanhas publicitárias de marcas de sabão em pó que
prometiam remover as sujeiras mais pesadas. Donas de casa, felizes e recatadas,
exibiam sorridentes as marcas de sabão.
Onde eu quero chegar com isso?
Vamos lá
.
Antecipando-se ao resultado do
processo de impeachment, a revista veja
publicou uma matéria sobre Marcela Temer, esposa do já aclamado presidente
Michel Temer, chamando-a de “quase primeira-dama”. O advérbio “quase”, tomando
o texto no seu conjunto, e considerando onde foi publicado, traduz o desejo e a
ansiedade pela posse (É como se dissessem: “estamos quase lá”). A matéria, assinada por Juliana Linhares,
destaca, em tom elogioso, as qualidades de Marcela e a sorte de Temer pela esposa
que tem. Os atributos sublinhados pela jornalista – beleza, recato e “do lar” –
remetem ao ideal feminino da primeira metade do século XX, que perdurou até a
década de 1960. O texto cheira a coisa velha, ultrapassada, na contramão das
conquistas femininas das últimas décadas, e soa como bajulação à proclamada e
badalada futura primeira-dama. A primeira impressão é que estamos lendo uma
daquelas revistas femininas da década de 1950, escrita por homens. As
qualidades destacadas em Marcela, e as palavras escolhidas para enuncia-las,
são as mesmas que identificavam o ideal feminino no Brasil de cem anos atrás.
Marcela, segundo o cabeleireiro Marco
Antonio de Biaggi, citado na matéria, pode vir a ser a “nossa” Grace Kelly: é
“educadíssima” e, a exemplo do que faz Athina Onassis, deixa os seguranças do
lado de fora quando vai ao salão de beleza. Biaggi está se referindo
provavelmente à Grace Kelly do tempo em que foi princesa em Mônaco. A atriz
abandonou a carreira em hollywood para se tornar princesa. É uma alusão à moça
que deixou de lado o sonho de miss e
a carreira na área do direito para se dedicar ao casamento, ao lar e a carreira
de Michel Temer?
Não duvido das qualidades da
moça. Nas raras aparições públicas sempre esbanjou simpatia e elegância. Também
não se discute o direito que ela tem de levar a vida que quiser. Alias, o
direito das mulheres de viverem como bem entenderem é uma das grandes
conquistas das lutas feministas. Se Marcela é de fato uma moça recatada e
escolheu a vida de esposa dedicada ao lar, o problema é só dela. Que seja
feliz. O que se questiona são as intenções da jornalista e da revista com a
publicação de uma matéria elogiosa ao casal Temer, que exalta as qualidades da
esposa e do marido, que, de maneira bastante controvertida, pode vir a ser o
presidente do Brasil. O país está dividido. O nome de Temer, pelo que podemos
ver nas manifestações pelo Brasil a fora, não agrada a maioria (Agrada a
maioria do congresso nacional e a imprensa engajada na destituição de Dilma).
Num momento como esse, uma publicação com este teor, e com cheiro de conservadorismo
naftalina, é um deboche.
Embora a matéria seja sobre a
“quase primeira-dama”, a frase de abertura é: “Marcela Temer é uma mulher de
sorte”. Michel Temer é atencioso e, em meio ao turbilhão político de Brasília,
lhe dá repetidas provas de que “a paixão não arrefeceu”, diz a jornalista.
Surpreende a dedicada esposa com jantares sofisticados, em lugares caros e
badalados. O elogio a Temer é escancarado, embora disfarçado na atenção e na
dedicação à esposa. Lidos a contrapelo, os elogios à Marcela, e do seu
garantido sucesso como primeira-dama, fazem parte da construção da legitimidade
antecipada da presidência de Michel Temer. O casal perfeito e harmonioso – ela
jovem, bela e recatada, ele maduro, protetor e dedicado -, contrasta com o
clima de divórcio político e solidão presidencial que reina em Brasília. O
Brasil é um país de sorte. É isso o que matéria quer dizer? Como a sortuda
Marcela, o Brasil tem sorte pelo futuro político que se desenha sob o comando
do atencioso Michel Temer? É a maneira que a revista e a jornalista encontraram
para elogiar Temer, já que politicamente sua figura apagada e suspeita não
desperta interesse e não inspira confiança.
Com a queda iminente de Dilma, o
Brasil vai voltar a ter a instituição da primeira-dama. Não qualquer
primeira-dama. Teremos uma Grace Kelly desfilando no palácio da Alvorada, a
viver o conto de fadas da política. Parece que Marcela se preparou para isso a
vida inteira. Foi a impressão que tive quando li a matéria. Devorou manuais de
primeira-dama, se educou nas revistas femininas das décadas de 1950 e 1960 e
cultivou um estilo “do lar” e “recatado” para desempenhar bem o papel da mulher
por trás do grande homem. Faltava uma oportunidade para realizar o sonho, uma
vez que o marido jamais chegaria à presidência pela via do voto. O impeachment de Dilma é o passaporte de
Marcela para o reinado à sombra do marido presidente. Temer é tão dedicado à
esposa (conforme Juliana Linhares) que não é de duvidar que ele tenha
conspirado contra Dilma só para oferecer à Marcela o título de primeira dama
como “prova de que a paixão não arrefeceu” (O pior de tudo é que se eu não
disser que isso é uma IRONIA, tem gente que vai acreditar).
Será que os desmancha-prazeres
vão estragar o sonho da princesa de viver no palácio de nome Alvorada? Será que
vão ter coragem de entrar com um pedido de impeachment
contra Temer? Seria muita maldade! Michel Temer foi citado 21 vezes numa
planilha da Camargo Corrêa, referentes ao período de 1996 e 1998 (as quantias
somam 345 mil). As investigações da Operação Castelo de Areia, como ficou
conhecida, não foram adiante. Numa investigação da lava-jato, de 2014, Temer
foi citado novamente em novas planilhas da Camargo Corrêa. O seu nome estava
associado a dois pagamentos de 40 mil dólares referentes a um projeto de
pavimentação em Araçatuba e a duplicação de uma rodovia em Praia Grande. E em
2015, na delação premiada de Júlio Camargo, foi relacionado ao lado de Cunha e
Renan Calheiros ao lobista Fernando Baiano, operador das cotas destinadas ao
PMDB. É difícil achar uma planilha de caixa dois que não tenha o nome de Temer.
O sujeito é badalado nas delações premiadas, suspeito de corrupção ativa e
passiva e investigado pelo STF sobre cobrança de propina no porto de Santos.
Mas isso lá é motivo para abortar a escalada da “nossa” Grace Kelly ao palácio
da Alvorada? (Perdão pelo uso da palavra aborto. Não combina com os atributos
da mulher ideal. Foi um descuido).
A matéria de Juliana Linhares é um
salvo-conduto para a posse tranquila de Michel Temer. As qualidades da esposa
ideal - como aquela marca de sabão em pó dos anos 60 (RINSO) - são as propriedades
para remover as pesadas manchas da corrupção na biografia do peemedebista. A
comprovada ficha suja do marido conspirador é amenizada pelos dotes e virtudes
da esposa perfeita. Marcela Temer é o capital político e simbólico do
inexpressivo Michel Temer.
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