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quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

SEU PASSADO O ESPERA: José Genuíno, o coveiro da cidadania, condena a si próprio doze anos antes.



SEU PASSADO O ESPERA: José Genuíno, o coveiro da cidadania, condena a si próprio doze anos antes.

José Genuíno escreveu em 2000 um artigo irretocável sobre os efeitos desastrosos da corrupção para a democracia. De paladino da democracia e da cidadania, Genuíno converteu-se exatamente naquilo que condenou com maestria. Ao ler o artigo de Genuíno compreendi o alcance do conselho certeiro que Olívio Dutra lhe deu (“Eu penso que a conduta corajosa que deveria ser tomada seria a renúncia”. Entrevista  do ex-governador Olívio Dutra concedida ao jornalista Tales Armiliato, durante o programa Dito e Feito Informação da Rádio São Francisco SAT integrante da RedeSul de Rádio).

Francis Ford Coppola dirigiu Kathleen Turner em 1986 num grande filme chamado “Peggy Sue - seu passado a espera”. Turner interpretou uma mulher de meia idade que, a beira do divórcio, sofre um desmaio e acorda no passado. Ao se reencontrar consigo mesma, teve a chance de refazer suas escolhas e mudar o rumo de sua vida. Infelizmente José Genuíno não terá esta chance. Peggy Sue teve a felicidade de encontrar Coppola no seu caminho. Genuíno não teve a mesma sorte, mas quem sabe Olívio Dutra pode devolver ao deputado o que Coppola devolveu a Peggy Sue.

Abaixo o artigo na íntegra. Vale a pena ler.


A corrupção e morte da cidadania.
José Genoíno

 (Publicado no "Estado de S. Paulo" em 29 abr. 2000)

Na teoria republicana clássica sempre se teve como certo que a corrupção era a principal causa da decadência das repúblicas e de sua transformação em regimes tirânicos ou monárquicos. Nas democracias modernas, em nome ao combate à corrupção alguns regimes de força foram implantados. 

Hoje o problema não está no fato de a corrupção poder proporcionar o fim da democracia, mas na convivência que ela estabelece com a democracia. Uma democracia doente, porque a corrupção representa uma violação das relações de convivência civil, social, econômica e política, fundadas na eqüidade, na justiça, na transparência e na legalidade. Em suma, a corrupção fere de morte a cidadania. Num país tomado pela corrupção, como o Brasil, o cidadão se sente desmoralizado porque se sabe roubado e impotente. 

O cidadão sabe-se impotente porque não tem a quem recorrer. Descobre que os representantes traem a confiabilidade do seu voto, que as autoridades ou são corruptas ou omissas e indiferentes à corrupção, que os próprios políticos honestos são impotentes e que a estrutura do poder é inerentemente corruptora. Dessa impotência se firmam as noções de que "nada adianta" e de que no fundo "são todos iguais". A fixação desses sentimentos representa o fim da cidadania, pois ela se baseia na participação ativa do indivíduo na luta por direitos e na cobrança e fiscalização do poder. Quanto mais agonizante a cidadania, mais ativa se torna a corrupção. Nas condições da cidadania agonizante, o corrupto sente-se à vontade para se justificar e até para solicitar o aval eleitoral para continuar na vida política. 

Em 16/4, o "Estado de São Paulo" publicou entrevistas sobre a corrupção no País com os chefes dos três poderes - o presidente da República, o presidente da Câmara dos Deputados e o presidente do Supremo Tribunal Federal -. As entrevistas causaram espanto a muitas pessoas, pois são o retrato fiel da indiferença das autoridades pela corrupção. Os chefes dos poderes se limitaram a constatar a ineficiência das instituições e a declarar-se perplexos e enojados com tanta corrupção. Não é isso que se espera de quem tem o poder de agir e de acionar os instrumentos de combate aos corruptos. 

O poder no Brasil não só não age, mas protege os corruptos. Todos sabem que o problema da corrupção não se reduz apenas a uma escolha entre o honesto e o desonesto. A estrutura do poder público é corruptora. Em paralelo, a estrutura fiscalizadora - como o Banco Central, a Receita e a Polícia Federal e a esfera judicial e processual - favorece a impunidade, o que, na prática, se traduz em proteção, mesmo que involuntária, da corrupção. Mas se a corrupção, sua proteção e a impunidade se tornaram estruturais, a verdade é também que, em última instância, há uma vontade explícita de manter intacta a estrutura corruptora. 

Essa vontade se manifesta de várias formas. A principal é a falta de iniciativa das autoridades constituídas. Outra ocorre pelo bloqueio das mudanças institucionais e legais que visam a ampliar e aperfeiçoar os instrumentos de combate à corrupção. Veja-se que no Congresso se tentou aprovar o fim da imunidade parlamentar para crimes comuns, a limitação do sigilo bancário e fiscal para detentores de cargos públicos, medidas de combate à elisão e à sonegação fiscal, medidas de combate à evasão ilegal e à lavagem de dinheiro, envolvendo até mesmo as famosas contas CC-5, mudanças moralizadoras da Lei Eleitoral, etc. Essas medidas foram sistematicamente derrotadas pela maioria governista, com o apoio de chefes dos poderes superiores. Em contrapartida, a Câmara aprovou o princípio que consagra o nepotismo; a Lei da Mordaça, que dificulta a investigação judicial; ampliou-se o foro especial para julgamento de autoridades e transferiu-se para foro especial o julgamento de delitos previstos na lei de improbidade administrativa, tornando-a ineficaz. Já o comando do Poder Judiciário não pode limitar-se a constatar o anacronismo do Código de Processo Civil e Criminal. Precisa propor sua reforma. 

Hoje a sociedade já percebeu que a corrupção estrutural está albergada na falta de vontade de mudar e de punir e na vontade explícita de proteger. A racionalidade do cidadão não consegue compreender o porquê e o como de o processo de impeachment, o escândalo do Orçamento, a falência dos Bancos Nacional e Econômico, o desvio milionário do TRT de São Paulo, a corrupção da Prefeitura da capital paulista e de tantos outros casos de corrupção não resultarem em nenhuma prisão dos principais envolvidos. E porque a razão não consegue compreender essa medonha impunidade, o cidadão sente-se desmoralizado. A corrupção assume a condição de normalidade da vida política do País. A degradação e a ineficiência do poder público atingiram tão elevado grau que não se pode mais acreditar que, apesar de lentas, as mudanças virão. 

Chegamos a um ponto em que somente uma profunda cirurgia cívico-política pode conferir ao Brasil condições democráticas e éticas de convívio social, econômico e político.

José Genoíno é deputado federal (PT-SP)

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

DEMONIZADORES QUE ACUSAM DEMONIZADORES: haja América para tantos demônios.



DEMONIZADORES QUE ACUSAM DEMONIZADORES: haja América para tantos demônios.

Algumas palavras, ou conceitos, que já existiam, (re)aparecem em determinados contextos e adquirem status de chave mestra. Demonização é o conceito do momento. Demoniza-se tudo. E todos, vítimas e demonizadores, acusam a demonização. No campo da política a noção de demonização conquistou carta de cidadania e atende a diferentes demandas. Direita e esquerda incorporaram o conceito aos seus vocabulários e praticam a demonização com a destreza dos velhos inquisidores, e a denunciam com a mesma habilidade. Demonizar, no léxico político contemporâneo, é sempre a atitude do outro.

Demonização é uma expressão derivada de um campo do conhecimento conhecido como demonologia. As origens da demonologia remontam a Santo Agostinho, que deu forma concreta ao demônio imaterial do velho testamento. Ao longo da idade média a demonologia foi se desenvolvendo e sistematizando um conjunto de saberes com a produção de obras importantes como o “Fornicarium”, de Nider, e o “Malues Maleficarum”, de Sprenger e Kramer. No século XVI o conhecimento sobre o diabo alcançou o requinte com as obras “Démonomanie”, de Jean Bodin, e “Daemonologie”, de Jaime VI Stuart (ver o livro Inferno Atlântico, de Laura de Mello e Souza). Todo este repertório de crenças e tratados demonológicos atravessou o oceano com os conquistadores, principalmente com as ordens religiosas, e desempenhou um papel central na conquista do Novo Mundo. A demonologia, portanto, chegou cedo à América, e logo fez carreira. Encontrou aqui um terreno fértil para se desenvolver e deu frutos locais bastante interessantes (Vou tratar do tema num outro texto). 

O conceito, nos últimos anos, deixou de transitar no universo restrito dos especialistas e alcançou novos horizontes semânticos. A demonologia propriamente dita, como campo de conhecimento, tornou-se assunto de um pequeno grupo de especialistas. A demonização, filha dileta da demonologia, ao contrário, escapou do círculo dos iniciados, conquistou corações e mentes, e tornou-se prática corrente. Poderíamos dizer que demonizar é atribuir a alguém ou a algo qualidades e intenções perversas, malignas e diabólicas, sem que isso necessariamente diga respeito ao diabo. É o ato ou o efeito de associar algo ou alguém a um suposto mal. 

Vamos ao ponto?
A ocorrência mais recente de demonização, ou a denúncia dela, e logo popularizada nas redes sociais, foi no dia 6 de janeiro de 2013. Em sua coluna no The Clinic On Line o ensaísta uruguaio Eduardo Galeano publicou um pequeno texto intitulado “La demonización de Chávez”. Reproduzo abaixo:

“Hugo Chávez es un demonio. ¿Por qué? Porque alfabetizó a 2 millones de venezolanos que no sabían leer ni escribir, aunque vivían en un país que tiene la riqueza natural más importante del mundo, que es el petróleo.
Yo viví en ese país algunos años y conocí muy bien lo que era. La llaman la “Venezuela Saudita” por el petróleo. Tenían 2 millones de niños que no podían ir a las escuelas porque no tenían documentos. Ahí llegó un gobierno, ese gobierno diabólico, demoníaco, que hace cosas elementales, como decir “Los niños deben ser aceptados en las escuelas con o sin documentos”. Y ahí se cayó el mundo: eso es una prueba de que Chávez es un malvado malvadísimo.
Ya que tiene esa riqueza, y gracias a que por la guerra de Iraq el petróleo se cotiza muy alto, él quiere aprovechar eso con fines solidarios. Quiere ayudar a los países suramericanos, principalmente Cuba. Cuba manda médicos, él paga con petróleo. Pero esos médicos también fueron fuente de escándalos. Están diciendo que los médicos venezolanos estaban furiosos por la presencia de esos intrusos trabajando en esos barrios pobres.
En la época en que yo vivía allá como corresponsal de Prensa Latina, nunca vi un médico. Ahora sí hay médicos. La presencia de los médicos cubanos es otra evidencia de que Chávez está en la Tierra de visita, porque pertenece al infierno. Entonces, cuando se lee las noticias, se debe traducir todo. El demonismo tiene ese origen, para justificar la máquina diabólica de la muerte.”

Galeano sabe usar as palavras. É dono de um estilo inconfundível e cativante. Denuncia a satanização de Chávez pela mídia oposicionista e, ao mesmo tempo, proclama o humanismo e a admirável obra social de Chávez na Venezuela. O escritor persegue neste pequeno texto o mesmo estilo irônico que o consagrou em “As veias abertas da América Latina”. 

É evidente que ninguém demonizaria Chávez por ele ter erradicado o analfabetismo da Venezuela (e erradicou?). A questão não é essa. Galeano manobra com as palavras porque na verdade o que ele quer é revelar a maldade que se insinua nas críticas à Chávez. Demônios são os seus opositores. É isso o que o texto nos diz nas entrelinhas. Galeano pratica a demonização as avessas. Quem seria tão malvado ao ponto de criticar um governo que coloca as crianças nas escolas e traz médicos para o povo? 

Galeano já havia abordado o tema da demonização do líder bolivariano numa entrevista concedida ao El País em setembro de 2010. Reproduzo abaixo o trecho que interessa.

Pergunta. El presidente venezolano, Hugo Chávez, es uno de los que andan enzarzados con la prensa ¿Tenemos veredicto con él?
Resposta. Hay una demonización de Chávez. Antes Cuba era la mala de la película, ahora ya no tanto. Pero siempre hay algún malo. Sin malo, la película no se puede hacer. Y si no hay gente peligrosa, ¿qué hacemos con los gastos militares? El mundo tiene que defenderse. El mundo tiene una economía de guerra funcionando y necesita enemigos. Si no existen los fabrica. No siempre los diablos son diablos y los ángeles, ángeles. Es un escándalo que hoy, cada minuto, se dediquen tres millones de dólares en gastos militares, nombre artístico de los gastos criminales. Y eso necesita enemigos. En el teatro del bien y del mal, a veces son intercambiables como pasó con Sadam Husein, un santo de Occidente que se convirtió en Satanás.

Chávez, na visão de Galeano, é demonizado por poderosos adversários que precisam de inimigos para sustentar máquinas de guerra. Imagino que esteja se referindo aos Estados Unidos. A oposição que Chávez enfrenta na América do Sul seria um simples epifenômeno dos interesses situados em Washington. É a mesma argumentação de “As veias abertas...”. O inimigo é sempre externo (Já tratei deste tema num texto aqui no blog intitulado “A revolução jesuítica na ilha socialista”). Eu, por exemplo, que não partilho dos ideais bolivarianos, sou um pequeno demonizador guiado, mesmo sem o saber, pela demonologia yanquee. 

A mídia liberal na América do Sul, sem dúvida alguma, demoniza Chávez. Mas a recíproca não é verdadeira? A demonização e a troca de insultos entre o chavismo e a mídia são uma via de mão dupla.
E Chávez? A imagem do líder máximo dos bolivarianos que emerge dos textos de Galeano é a de um homem, ou de um super-homem, que tomou para si a responsabilidade de salvar seu povo das garras do imperialismo e conduzi-lo no caminho da redenção social. Chávez é o herói social, que enfrenta destemido o imperialismo satânico e suas coortes oligárquicas. 

Saindo um pouco do campo da mitificação e da glorificação, vamos relembrar uma faceta do presidente venezuelano que Galeano parece ter esquecido. Chávez é um campeão da demonização. A antiga “arte” de farejar demônios encontrou nele um devotado neófito. Vou relembrar apenas um exemplo. Em setembro de 2006, na 61ª Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), em Nova York, chamou o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, de diabo. A frase ficou famosa: "O diabo está em casa. O diabo veio aqui ontem. Ainda cheira a enxofre hoje". Bush havia discursado no mesmo local um dia antes.  Chávez fez o discurso segurando na mão o livro do linguista norte americano Noam Chomsky. Atacar o diabo com arma caseira parece surtir mais efeito. Além do que, o cinema já ensinou, todo exorcismo deve ser realizado tendo uma bíblia em mãos.

Bush, a encarnação do mal para Chávez, é outro campeão da demonização. Será que estas coisas se atraem? Durante o tempo em que esteve na casa branca usou e abusou do recurso da demonização. Relembro o exemplo do “eixo do mal”. Bush articulou o discurso e definiu o “eixo do mal” pela primeira vez em janeiro 2002 no seu discurso do Estado da União. No discurso, ao se referir aos países adversários dos EUA que desenvolviam programas nucleares, a definição de “eixo do mal” foi apresentada da seguinte maneira:

“O nosso objectivo é prevenir os regimes que apoiam o terror de ameaçarem a América ou os nossos amigos e aliados com armas e destruição massiva. Alguns destes regimes têm estado bastante quietos desde o 11 de Setembro. Mas sabemos a sua verdadeira natureza. A Coreia de Norte é um regime armado com mísseis e armas de destruição massiva, enquanto esfomeia os seus cidadãos.
O Irão persegue agressivamente estes armados e exporta terror, enquanto uns poucos não eleitos reprimem a vontade dos iranianos pela liberdade.
O Iraque continua a mostrar a sua hostilidade por toda a América e a apoiar o terror. O regime iraquiano planeou fabricar anthrax, gás de nervos e bombas nucleares para matar milhares dos seus próprios cidadãos - deixando os corpos de mães amontados por cima dos seus filhos mortos. Este é um regime que acordou na existência de inspectores internacionais [no seu país] - e depois deportou-os. Este é um regime que tem algo a esconder do mundo civilizado.
Estados como estes, e os seus aliados terroristas, constituem um eixo do mal, armados para ameaçarem a paz no mundo. Por procurarem armas de destruição massiva, estes regimes são um perigo grave e crescente. Eles podem dar estas armas a terroristas, dando-lhes os meios para combinarem os seus planos. Eles podem atacar os nossos aliados ou tentar chantagear os Estados Unidos. Em qualquer um destes casos, o preço da indiferença seria catastrófico.”

O discurso de Bush, embora claramente demonizador, vinha envolvido pela defesa de um ideal de civilização e de luta contra o terror, no imediato pós 11 de setembro. Chávez não foi nada sutil, partiu logo para a demonização pessoal. O curioso é que enquanto Chávez demonizava Bush, os Estados Unidos eram os grandes parceiros comerciais da Venezuela. Se por um lado, o líder bolivariano construiu sua imagem internacional atacando os Estados Unidos e o imperialismo (em 2005, fechou oitenta lanchonetes da rede McDonald's e quatro fábricas da Coca-Cola que operavam em território venezuelano), por outro, os Estados unidos são os maiores compradores do petróleo venezuelano. O chavismo parece conviver bem com o fato de ter um superávit comercial de quase 30 bilhões de dólares com o país cujo governo ele condena e demoniza. Neste caso, a demonização de Bush seria apenas um jogo de cena para projetar uma imagem internacional e despistar os graves problemas internos da Venezuela?

Depois de discursar na ONU e exercitar a demonização, Chávez foi se encontrar com aquele que para os Estados Unidos, e para Bush em particular, é o demônio em pessoa, Mahmoud Ahmadinejad. Chávez, Bush e Ahmadinejad, reunidos na mesma frase, e unidos pelo mesmo discurso. Juro que foi coincidência. Ou terá sido obra do capeta? O diabo também tem as suas afinidades eletivas? hehehe
Eduardo Galeano, que hoje denuncia a demonização, também a praticou sem papas na língua. “As veias abertas da América Latina” é, em certo sentido, a mais completa demonização dos conquistadores e colonizadores da América que já se fez. É uma espécie de manual de demonologia para exorcizar as forças malignas que se apossaram do continente há quinhentos anos. Não me entendam mal. O livro é extraordinário e tremendamente sedutor. Foi uma das leituras que me aproximou definitivamente do campo da história. Mas é preciso fazer a crítica. É o dever do ofício e o prazer do novíssimo blogueiro. Numa linguagem cáustica Galeano denunciou a rapinagem e a exploração praticada na América Latina pelos conquistadores, desde a descoberta do continente. O livro foi escrito no início da década de 1970, período marcado por turbulências políticas, ditaduras militares e lutas contra a ação imperialista dos Estados Unidos na América Latina. Nos dois continentes – Europa e América – desdobrou-se uma profunda revisão historiográfica da descoberta e conquista da América. A historiografia e os ensaios históricos deste período foram marcados pelas lutas sociais, políticas, e por uma forte carga de denúncia das violências e explorações que assolaram a América ao longo dos seus 500 anos. Era como se fazer a denúncia das atrocidades praticadas pelas potências coloniais contra os povos americanos no passado surtisse um efeito de denúncia contra o imperialismo e as ditaduras do presente. E de certa maneira isto funcionou. Toda uma geração, inclusive eu, foi mobilizada e educada pela história-denúncia das décadas de 1960 e 1970. A história era acionada como instrumento de luta pela democratização e como tribunal em favor dos povos oprimidos. O desvelamento das ligações da igreja com o colonialismo ibérico desmascarava também a cumplicidade da igreja conservadora do século XX com os poderes militares e imperialistas.

Não é minha intenção diminuir a importância da obra e muito menos negar as teses de Eduardo Galeano, mesmo porque elas se verificam em diversas situações. Pretendo apenas nuançar e relativizar alguns pontos, e ressaltar o traço demonológico.
Se, ao expor as veias abertas da América, Galeano fez um julgamento moral dos espanhóis, o quadro que ele desenha da violência praticada pelos conquistadores talvez tenha mais a ver com o momento político em que ele escrevia do que com a América de 500 anos atrás. Na sua narrativa os conquistadores de ontem - os espanhóis sedentos de ouro - convertem-se nos exploradores de hoje – os inescrupulosos imperialistas yankees. De Cortez a Nixon, numa vasta continuidade, a exploração da América apenas trocou de mãos e de geografia. Vítima eterna dos saqueadores atemporais, o destino da América está selado: perder e fracassar.

“Nossa comarca do mundo, que hoje chamamos de América Latina, foi precoce: especializou-se em perder desde os remotos tempos em que os europeus do Renascimento se abalançaram pelo mar e fincaram os dentes em sua garganta. Passaram os séculos, e a América Latina aperfeiçoou suas funções.

Para os que concebem a história como uma disputa, o atraso e a miséria da América latina são o resultado de seu fracasso. Perdemos; outros ganharam. Mas acontece que aqueles que ganharam, ganharam graças ao que nós perdemos.”

A América que emerge dos textos condenatórios da conquista assemelha-se uma entidade homogênea e a-histórica, dilacerada por séculos de espoliação. Forja-se uma identidade continental sob o signo da derrota e da famigerada conquista e exploração europeia. Denunciar as arbitrariedades, a exploração e a brutalidade dos conquistadores, evidentemente, é de suma importância, e Galeano foi muito bem sucedido no seu empreendimento. Mas não é suficiente. A prática da violência, física ou cultural, se dá dentro de um quadro de referências históricas, religiosas e morais, característico de cada época, sem o qual a violência torna-se gratuita e igual em toda parte. Sem a devida contextualização, saímos do campo da construção histórica para adentramos no terreno da demonologia.

O uso político da história para efeito de denúncia, objetivo do livro de Galeano, pode funcionar para mobilizar e legitimar as lutas contra a violência e opressão na América Latina, no entanto, esclarece muito pouco sobre as conquistas materiais e espirituais dos séculos XVI e XVII. Este tipo de uso da história acaba gerando esquemas interpretativos binários e maniqueístas que, geralmente, vitimizam as populações indígenas e as estigmatizam como oprimidas – assim como os trabalhadores modernos, herdeiros sociais do infortúnio histórico - e tiranizam os conquistadores - e os agentes imperialistas, herdeiros dos meios de produção e dos mecanismos de opressão. 

A demonização dos conquistadores, dos colonizadores e, posteriormente, dos agentes imperialistas era uma forma de julgamento histórico e de condenação dos supostos responsáveis pelo atraso do continente. Naquele contexto, o que chamamos hoje de demonização cumpria uma função específica, embora a palavra não estivesse na moda.
Não poderia deixar de mencionar o ato simbólico de Hugo Chávez ao entregar o livro de Galeano ao presidente Barack Obama na primeira sessão plenária da Cúpula das Américas, em Trinidad e Tobago. O gesto de Chávez, provocativo e carregado de simbolismo, renovou subitamente o interesse pelo livro, que é cultuado pelas esquerdas latino-americanas como uma obra fundamental para entender o subdesenvolvimento da América latina. As vendas do livro, segundo a Folha de São Paulo, dispararam. Em poucas horas o livro saltou da posição 60.280 para um dos mais vendidos no site de vendas da Amazon.com. Escrito no calor das lutas políticas da década de 1970, mais precisamente em 1971, as Veias Abertas, sugiro, é uma obra fundamental para entender o pensamento de setores da esquerda latino-americana dos anos 70 e dos dias de hoje, e não o passado colonial americano. O livro de Galeano e o gesto de Chávez, em que pesem as diferença entre eles, fazem uso do passado e da história para afiançar seus gestos e escolhas políticas.  

O presente de Chávez a Obama foi algum tipo de exorcismo bibliográfico? E se o Obama fosse dar um livro de presente a Chávez? Que livro seria? Arriscaria “O mundo pós americano”, de Fareed Zakaria. Não porque Obama estava lendo o livro quando foi eleito presidente dos EUA, mas porque o livro parece ser uma metanarrativa da era Obama. Chávez é mencionado duas ou três vezes no livro. E quando é mencionado, é para mostrar sua insignificância e anacronismo. Elegantemente, e sem exceder nos adjetivos, Zakaria associa Chávez às forças “insanas” – a palavra é dele – que andam na contra mão da história. Parece-me que esta é também a visão de Obama sobre Chávez.

A demonização serve a todos os gostos e atende a múltiplos propósitos. O demônio que se previna, pois se os insultos demonizantes forem tomados como critério para carimbar o passaporte para os seus domínios, o inferno vai transbordar.

sábado, 5 de janeiro de 2013

SEXO, DROGAS, ROCK AND ROLL E UM FUZIL.



SEXO, DROGAS, ROCK AND ROLL E UM FUZIL.




HAIR, a ópera psicodélica dirigida por Milos Forman que explodiu no final de década de 1970 no cinema, não tem mais lugar nos dias de hoje. Parece fazer parte de um mundo, ou de um tempo quase mítico, que não existe mais. O filme não envelheceu. Foi o mundo que ficou mais careta, conservador e violento. HAIR é a versão cinematográfica do musical homônimo escrito por James Rado e Gerome Ragni, que estreou na Broadway em 1968.

Além da crítica desconcertante e criativa contra a guerra do Vietnã, que literalmente colocou os militares para dançar, o filme norte americano faz uma sonora apologia às drogas. A crítica da guerra continua atual. Afinal, o culto as armas, a mentalidade belicista e os fantasmas das guerras desastrosas em que os EUA se meteram rondam a casa branca desde o fim da segunda guerra. As guerras do Iraque e do Afeganistão, e o apego quase religioso que boa parte dos estadunidenses tem às armas, ainda fazem do musical HAIR um filme atual e necessário. O elogio às drogas é que parece ter ficado para trás. Não faz mais sentido. Abordá-las hoje de uma forma poética, como forma de autoconhecimento e de atitude política, não combina com a brutalidade que cerca este universo. O barato ficou perigoso. Se, por um lado, o século XX assistiu a expansão do consumo de drogas e sua distribuição em escala mercantil, por outro, viu surgir o proibicionismo oficial e internacional. O comércio de drogas virou um negócio milionário e internacionalmente proibido.

Vamos relembrar o enredo de HAIR. Claude Bukowski (John Savage), um jovem inocente do interior dos EUA, no melhor estilo cowboy moderno, deixa sua casa para ir para Nova York alistar-se no exército. Sonha em servir à Pátria na guerra contra o Vietnã. De passagem por um Central Park transformado num palco psicodélico, Bukowski se depara com um grupo de hippies que vive por ali, completamente desapegado das instituições, do dinheiro e dos valores burgueses. O grupo composto por quatro figuraças (Berger, Hud, Woof e Jeannie) leva uma vida completamente diferente do mundo de onde o jovem cowboy veio. Os poucos dias que passa junto ao grupo faz a vida do rapaz virar de pernas para o ar. As experiências com maconha e LSD, e a descoberta de uma paixão instantânea por uma jovem de uma rica família nova-iorquina chamada Sheila (Beverly D´Angelo), transportam o aspirante a soldado para um universo até então desconhecido. 

Depois de alguns dias loucos, Bukowski parte para o exército. Vai para um campo de treinamento esperar pelo dia do embarque. Inesperadamente, Sheila e o grupo hippie aparecem no campo para visitá-lo. Numa sequência antológica Berger (Treat Williams) raspa a farta cabeleira, entra na fortaleza militar e fica no lugar de Bukowski, que vai ao encontro dos amigos e de Sheila. Fico por aqui. Não vou estragar a surpresa para aqueles que ainda não assistiram. 

A narrativa foi construída em torno dos temas centrais da contracultura: o pacifismo, o sexo descompromissado, o amor livre, as experiências religiosas e místicas, o uso de alucinógenos, além da curtição. Tudo isso embalado ao som de um rock de primeira linha (Tudo bem, eu sei que essa coisa que chamam de “rock” define tudo e não define nada. Parafraseando Paul Veyne, se tudo é rock, logo o rock não existe. O rock é um rótulo genérico e impreciso que abriga uma diversidade musical tão grande que o melhor mesmo seria abrir mão do conceito e partir para as especialidades e os subgêneros: rock and roll, progressivo, hard rock, rockabilly, indie rock, heavy metal, glam rock, punk rock, etc ). Generalizações à parte, a trilha sonora de HAIR é uma das melhores da história do cinema. As belas canções e as letras apimentadas, que expressam as ideias e valores da contracultura, conduzem a narrativa e confrontam a sociedade tecnocrática, conservadora e castradora que apoiava a intervenção no Vietnã. Os hippies são o oposto do mundo que os cerca. Vivem coletivamente, são solidários, vestem-se de maneira alternativa às exigências da moda e inspiram-se na filosofia, na estética e nos valores zen budistas, como contraponto às filosofias individualistas e materialistas dominantes no ocidente. Contrariando o racismo e a violência racial da época, HAIR celebra a comunhão étnica e proclama a delícia e a beleza de ser negro e de ser branco (Jeannie esta grávida, mas não sabe se de Hud, o negro, ou de Woof, o branco. Mas para ela tanto faz, os dois são lindos).  O grupo dança o tempo todo. São lindas coreografias, inspiradas no tai-chi-chuan, que jogam o corpo no ar com absoluta liberdade, e contrastam com a rigidez da marcha militar e a sobriedade marcial dos corpos alinhados e enfileirados no culto à ordem. Em HAIR o corpo fala, grita, pira, goza, gargalha anarquicamente, se expressa sem censuras, debocha e testa os seus limites. É uma ode ao corpo. Ao corpo livre das amarras da moda, das fardas, das instituições e de outros corpos. Longe da ideia platônica do corpo como prisão para a alma, em HAIR o corpo é o templo do prazer, da urgência do aqui e do agora. Corpo e alma, como que num transe e numa transa mística, apresentam-se em deliciosa harmonia e unidade. As sensações corpóreas, aguçadas pelos psicotrópicos, são o modo de exprimir a alma e expandi-la. A expressão corporal dionisíaca de HAIR é desafiadora. Contesta a ordem e choca o conservadorismo. Os cabelos longos, despenteados e desarrumados, reverenciados como símbolo da liberdade, da independência e do desprezo pelas convenções, contrastavam com os cabelos curtos, em estilo militar, usados na época. James Rado, um dos escritores do musical levado a Broadway em 1968, relembrou que usar cabelos compridos era “uma forma visível de consciência na expansão de seu consciente. Quanto maior era o cabelo, mais expansiva era a mente. Cabelos longos eram algo chocante e era um ato revolucionário deixá-los crescer. Era, realmente, como se fosse uma bandeira.”

No contexto em que HAIR estreava nos cinemas, 1979 para ser mais preciso, articulava-se nos EUA, sobretudo na administração Nixon, uma política de combate às drogas. Não foi uma coincidência. O uso de drogas combinado à crítica dos valores e dos costumes presentes na cultura hippie criava uma atmosfera política perigosamente contestatória. Numa das primeiras sequências do filme Berger lê em voz alta a convocação para o alistamento militar: Quem alterar, fraudar, destruir propositadamente, danificar propositadamente ou modificar de algum modo essa convocação, pode ser multado em até 10.000 dólares ou ser preso por até 5 anos. Após a leitura o grupo queima o documento e foge da polícia. A cena é emblemática.

Enquanto HAIR fazia grande sucesso nos cinemas, o estado contra-atacava. No decorrer da década de 1970, em resposta ao aumento do uso de drogas, tomou forma uma política norte americana de repressão aos psicotrópicos. Em 1971 foi dado um passo definitivo nesta direção com a ratificação do Convênio sobre substâncias psicotrópicas, marcada, segundo especialistas, por uma série de confusões semânticas, científicas, farmacêuticas e jurídicas a respeito de drogas naturais e drogas sintéticas. Dois anos depois o aparato interno de repressão às drogas foi fortalecido com a criação da Drug Enforcement Agency Administration, que passou a acumular as funções de repressão antidrogas dentro das suas fronteiras e no exterior. Internamente o combate às drogas seguiu a risca a crença liberal nas leis da oferta e da procura. Acreditava-se que a redução da circulação do produto por meio de intensa repressão faria baixar a oferta global e elevaria os custos para o consumidor. Os preços impraticáveis estimulariam os usuários a reduzir ou abandonar o consumo. Mas a “realidade” é escorregadia, e sempre dribla a teoria. A camisa de força liberal não contava com uma variável. Esqueciam os estrategistas que o custo de produção de um produto incide significativamente no seu preço final.
Fortalecidos após a segunda guerra mundial os EUA passaram a ter um papel decisivo e expansionista no sistema internacional, aumentando o seu ativismo no mundo. A conjuntura favorável permitiu que o modelo norte americano de combate às drogas assumisse contornos universais e se transformasse em verdadeira legislação internacional.  Por meio dos organismos internacionais este modelo e seus procedimentos impuseram-se no ocidente. No início da década de 1980, quando HAIR explodia nos cinemas na América Latina, a plataforma conservadora do governo Reagan, conduzida por um unilateralismo de viés messiânico, retomava o puritanismo moralista e lançava os EUA numa cruzada implacável contra as drogas. A política antidrogas subordinava-se então às diretrizes da política externa americana e o “problema das drogas”, criado por eles mesmos, passava a ser visto não como uma questão de saúde pública, mas como desajuste social. O que estava em jogo agora, segundo o discurso oficial, era a segurança nacional. Os estrategistas na área relacionaram o problema a fatores externos, e apontaram para a América Latina, que abrigava plantações de coca e maconha. Países como a Colômbia e a Bolívia tornaram-se alvo da política antidrogas da casa branca. A declaração do general norte americano Paul Gorman é a melhor expressão do perigo que as drogas oriundas do sul do continente representavam, segundo o discurso dominante, para os EUA: O povo norte-americano deve compreender muito bem, como o fez no passado, que nossa segurança e a de nossos filhos está ameaçada pelos complôs latinos da droga que, tragicamente, tem mais êxito subversivo nos EUA do que tudo o que vem de Moscou.  

A América Latina e a figura do narcotraficante convertem-se no X da questão do “problema das drogas”. Não custa lembrar que na era Reagan a pressão sobre os países latino americanos, com o aumento dos juros das dividas externas, foi massacrante. Reagan, explorando e reavivando a ideologia anticomunista, procurava associar o tráfico de drogas proveniente da América Latina a grupos comunistas e terroristas que atuavam na região e que conspiravam contra a saúde, a higiene, a moral, os valores, a segurança e o poderio norte-americano (Recomendo a leitura do artigo de Marcelo Santos intitulado “A política dos Estados Unidos de combate ao narcotráfico e o Plano Colômbia”). Por meio de eficiente propaganda, voltada para a população americana, e de insistentes discursos diplomáticos, que justificavam uma ação mais efetiva na América Latina, os Estados Unidos entraram de sola na luta contra o que então se denominava “narcoterrorismo” (Neologismo que denuncia uma cooperação e uma aliança estratégica entre o narcotráfico e os grupos armados de esquerda, identificados por Washington como terroristas). “Em 1982, foi aprovada a Defense Autorization Act, que permitiu o exército norte-americano participar da luta contra as drogas. Em abril de 1986, o governo Reagan incorporou à doutrina de segurança nacional a National Security Decision Directive (NSDD), que estabelecia a aliança entre terrorismo de esquerda e narcotráfico como uma ameaça letal para a segurança nacional dos EUA.” (Marcelo Santos). Neste contexto discursivo os plantadores de coca, os grupos e governos de esquerda sul americanos passavam a fazer parte de uma complexa e perigosa conspiração narcomarxista que pretendia atacar a integridade moral e atingir o poder dos Estados Unidos. “Com a reformulação da doutrina de segurança nacional, a administração Reagan aumentou a pressão sobre determinados governos latino-americanos no sentido de erradicar os plantios e reprimir o tráfico de drogas. Além de ameaças do uso da força, pressões políticas, econômicas e diplomáticas e o treinamento e apoio logístico de forças policiais e militares latino-americanas antidrogas, o governo dos EUA estabeleceu a Certificação. Através desse mecanismo, o Congresso norte americano passou a monitorar e avaliar os esforços antinarcóticos de cada um dos países latino-americanos, suspendendo a assistência econômica, impondo sanções comerciais e vetando empréstimos de organismos internacionais de crédito aos países que não estivessem de acordo com as suas diretrizes.” (Marcelo Santos).

Desnecessário dizer que a política continental de combate às drogas transformou-se num poderoso instrumento de pressão dos EUA sobre os países sul americanos. Em relação à figura do narcotraficante, que desponta no cenário das Américas da década de 1980, parece razoável supor que tenha sido, em parte, uma invenção direta da política de repressão às drogas do governo norte americano. O impressionante aumento do preço da cocaína nas ruas das cidades americanas, que multiplicou por mil, parece ter chamado a atenção dos traficantes. O tiro saiu pela culatra. A proibição estimulou o tráfico em grande escala. O mercado consumidor interno americano aguçou a ambição dos traficantes da América do Sul. O estatuto do proibicionismo, ao mesmo tempo em que separou as drogas lícitas e legais das ilícitas, criou um mecanismo de hipertrofia dos lucros (ver “As necessidades humanas e o proibicionismo das drogas no século XX”, de Henrique Carneiro). Fenômeno semelhante já havia acontecido nos EUA nas décadas de 1920 e 1930 com a Lei Seca. O comércio proibido de bebidas esta na origem de muitas das grandes fortunas norte americanas. No final do século XX o fenômeno volta a se repetir, desta vez com as drogas ilícitas, e em escala global. Existe, portanto, um nexo causal entre proibição e aumento dos lucros. A violência vem junta, como fenômeno associado.
A tensão e o jogo de interesses entre as diretrizes de Washington e o narcotráfico foram expostos em 1983 quando a Suprema Corte dos EUA, afinada com a política antidrogas, aprovou o pedido de extradição de Carlos Lehder, um dos primeiros narcotraficantes colombianos. Lehder foi um dos fundadores do cartel de Medelín e transportava cocaína legalmente para os Estados Unidos das Bahamas. Estava refugiado nos Llanos Orientales, de onde fez uma declaração de guerra aos EUA. Afirmou que a cocaína era a bomba atômica da América Latina e exortou os rebeldes colombianos a formarem um exército, patrocinado pelo dinheiro do tráfico, para lutar contra os americanos. E disse mais:
Em nossa luta contra o imperialismo norte-americano e a oligarquia colombiana, o fim justifica os meios. Se a coca se encontra na América Latina para ajudar-nos a acelerar nossa revolução, bem-vinda seja. Se os Ianques levam nossos melhores produtos e também querem coca, que paguem o preço que a América Latina exige. Nós necessitamos de dólares para nos modernizarmos. E agora que somos quinze milhões de latino-americanos nos EUA, o poder latino do imperialismo é insuplantável..... E vamos reforça-lo.
Nosso objetivo é anti-imperialista e anti-oligárquico. A revolução da América Latina poderia fazer-se graças a cocaína, porque acredito que a cocaína é a bomba atômica da América Latina.

Lehder era um traficante politizado e bem informado. Fazia da coca um instrumento da revolução social e identificava o imperialismo e as oligarquias conservadoras sul americanas como os inimigos do desenvolvimento na região. Soube perceber que se articulasse um discurso anti-imperialista poderia conquistar as simpatias dos grupos de guerrilha de esquerda que pipocavam na América do Sul. Vem daí as ligações, ainda nebulosas, entre guerrilha e narcotráfico na Colômbia e no Perú. As FARCS e o grupo maoísta Sendero Luminoso, ao que tudo indica, foram sensíveis a apelos como o de Carlos Lehder. Precisamos de boas pesquisas sobre as relações entre o narcotráfico e os grupos guerrilheiros sul americanos. Existe alguma coisa disponível, mas estamos longe de um bom entendimento sobre este assunto.

De lá para cá muita coisa mudou, e mudou muito, no mundo das drogas. O surgimento da figura do traficante, que pouco a pouco foi se transformando num bandido temido, armado até os dentes, e disposto a tudo para manter seu império, mudou completamente o panorama. Mudança que foi da ligeira politização dos traficantes à bandidagem inescrupulosa. A repressão ao tráfico e o fortalecimento dos traficantes que passaram a construir impérios criminosos, protegidos com fuzis automáticos, afastou toda poesia, romantismo e o conteúdo político-contestatório que envolvia o uso de drogas. Havia um sentido maior por trás de toda aquela “loucura” e do uso abusivo dos psicotrópicos. HAIR representou nas telas a poética das drogas. Hoje o filme soa anacrônico.  Imaginem um homem distribuindo LSD como se fosse hóstia? No filme, a cena remete as relações entre alucinógenos e espiritualidade. Hoje não faria mais sentido. A simples referência ao imaginário religioso soaria ofensiva e sem propósito. As guerras entre traficantes e entre traficantes e polícia sepultou o lúdico e o poético. No Brasil, por exemplo, elevou a violência a um nível antes inimaginável. Nas três últimas décadas a violência associada ao tráfico das drogas tomou conta de cidades e de comunidades inteiras no Brasil e na América Latina.  O mundo das drogas carrega a marca da brutalidade, da selvageria, que em nada lembra a psicodelia libertária das décadas de 1960 e 1970. Isso nada tem a ver com os consumidores que, em geral, são contra a violência. O tráfico de drogas articulou uma indústria do crime que corre na direção oposta ao barato dos usuários. Mas infelizmente os dois caminhos se cruzam. O que um garoto que fuma o seu baseado no quarto para ouvir sua banda predileta tem a ver com a violência associada às drogas? Aparentemente nada. Mas se pensarmos no caminho que a droga faz para chegar até ele, descortinaremos o triste e amargo vínculo entre o traficante barra pesada e o consumidor pacífico. No percurso que possibilita a chegada das drogas aos usuários, as tragédias vão se sucedendo em escala crescente e assustadora. É forçoso reconhecer que o que coloca uma arma na mão do traficante é o dinheiro que o usuário paga para ter o seu barato garantido. Lamento. O barato ficou perigoso. Perdeu todo apelo libertário.  Era uma vez um grupo de hippies que vagava livremente pelo Central Park cantando e celebrando as drogas e o amor... A realidade atual nos mostra um garoto portando um fuzil e protegendo com a fidelidade de um cão a boca de fumo do seu patrão. E ele vai atirar sem pestanejar e não vai sentir remoro se a bala sem direção atingir uma garota no pátio de uma escola. 

Não estou desenvolvendo um argumento moralista, acusatório ou condenatório, em relação ao uso de drogas. Não mesmo. Cada um com o seu prazer. Mas, lamentavelmente, não podemos mais dissociar o prazer do usuário da violência que a repressão ao tráfico provoca. Não foi o usuário o causador da violência. Foi a repressão ao tráfico e a resposta dos traficantes que a deflagrou. O usuário ficou numa condição delicada em meio a uma guerra entre traficantes e polícia. O modelo norte americano de combate às drogas faliu. A violência aumentou. Insistir no que deu errado não perece o melhor caminho. Será que a descriminalização do usuário, por mais paradoxal que seja, proposta, por exemplo, por Fernando Henrique Cardoso, aponta para alguma alternativa? Creio que sim. Distingue juridicamente usuário de traficante e dá um passo importante na direção de um debate mais amplo e necessário sobre o tema. 

A alegoria zen e libertária da era de aquário embalada pelos psicotrópicos morreu. HAIR é um documento formidável sobre uma época, de paz e amor, ainda não patrolada pelo crime organizado e pela repressão estatal-policial às drogas ilícitas. O que temos agora é a escalada assustadora e intimidadora da violência. Mais do que simplesmente garantir a defesa do território, o fuzil é hoje o símbolo que melhor define o pesado mundo das drogas.