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sábado, 23 de março de 2013

RAUL, HOJE “EU TAMBÉM VOU RECLAMAR”.



RAUL, HOJE “EU TAMBÉM VOU RECLAMAR”.


Sou muito tranquilo, mas acordei hoje de manhã com uma vontade absurda de reclamar de alguma coisa. Sabe como é? Levantei cedo e fui até a cozinha, olhei para os lados, voltei de ré, sentei na sala, levantei, abri a porta que dá para o pátio, voltei para a sala, liguei a TV (os cachorros só me acompanhavam com os olhos), peguei uma revista. E nada. A vontade de reclamar não me abandonava. Acho que foi o efeito dos filmes de terror que encarei na madrugada. Liguei mecanicamente o computador, sem saber o que queria, e me deparei com uma foto de um rapaz, participando de um protesto, que segurava um cartaz com uma frase divertida sobre o “descobrimento do Brasil”. Finquei os olhos na foto e pensei: “Em outra situação eu simpatizaria contigo”. 

E assim começou este post...

O que dizer desta foto? À primeira vista, parece questionadora. Mas acho que não resiste a uma segunda mirada. A frase é criativa, provocadora. O perfil dos manifestantes me agrada. Mas não sei não. Tem uma coisa estranha nesta frase. Não acham? Aliás, duas coisas estranhas. Para ir direto ao ponto, temos um anacronismo e um equívoco em uma frase com oito palavras e um número.



Como forma de protesto, o efeito da frase funciona. Mas a frase de protesto, que questiona certa visão de história, pode também ser questionada, não é mesmo? Mas Paulo, o rapaz que segura o cartaz está usando de licença poética. É a necessária liberdade para transgredir as normas, de respirar sem aparelhos, e expressar-se livremente sem obedecer a gramática histórica. Eu sei, eu sei. Faço isso às vezes. É bom para escapar do redil canônico da área à qual estamos ligados. Mas essa maldita vontade de reclamar não me deixa em paz. E quando estou assim, fico paralisado. Se não reclamar de alguma coisa agora vou acabar sentado no sofá com o controle remoto na mão, feito um zumbi, procurando nada na tv. E o que eu tenho no momento é este cartaz. É isto ou isto.

Acredito nas boas intenções do rapaz. Afinal, salvar o mundo é um gesto nobre. Mas, repito, tem alguns problemas com a frase no cartaz. Parece querer inverter a tese de que Cabral descobriu o Brasil. Se for uma “brincadeira” com a velha versão oficial do descobrimento, eu entendo. O humor é desconcertante e derruba velharias e teimosias históricas. Mas se não for uma brincadeira, se o rapaz está levando a coisa a “sério”, e a expressão dele parece dizer isto, a situação se complica. Trocar uma versão histórica, digamos, tradicional, porém satisfatória e documentada,  por outra fantasiosa, e imprecisa, não me parece uma troca inteligente. Além disso, as historiografias brasileira e portuguesa nos oferecem novas versões, e não inversões duvidosas, sobre o tema do descobrimento.

Vamos “brincar” de historiador, entrar na onda, e protestar também? Posso, Raul?

1.       “Índios Brasileiros”, em 1500? É uma impossibilidade histórica. A razão é bastante simples. Parafraseando Edmundo O´Gorman, em 1500 o Brasil simplesmente não existia. Então não poderiam existir “índios brasileiros”, certo? O mesmo argumento me leva a dizer que Cabral nunca descobriu o Brasil, de acordo? Ah, Paulo, mas isso é rigoroso demais. Não, não é não. Isso se chama pensar historicamente. E um pouco de rigor, às vezes, ajuda a colocar as coisas no lugar. Além disso, estou no meu momento reclamão. Vamos em frente?

Vários náufragos foram encontrados pelos “índios” nas costas da América Portuguesa. Não vou entrar na discussão sobre o conceito de “índio”, mas neste caso seria admissível falar de uma descoberta por parte dos índios. Vários grupos indígenas de fato encontraram espanhóis e portugueses naufragados, perdidos no mar. Algumas vezes os acolherem bem. Outras não. Vários tripulantes da expedição francesa que explorava a costa da atual Bahia, por volta de 1510, que sobreviveram ao naufrágio e conseguiram alcançar a praia foram mortos pelos tupinambá. Diogo Álvares Correia, o Caramuru, sobreviveu porque impressionou os índios ao atirar num pássaro com uma arma de fogo (um mosquete). Neste caso, os índios descobriram o poder da arma de fogo. Diogo Álvares Correia foi apelidado de “pau que cospe fogo” (Caramuru). São tantas as descobertas. Pequenas e grandes descobertas. Mas o pessoal parece que implica mesmo é com a descoberta do Cabral. Por quê? O problema não é Cabral, mas certa visão histórica sobre o Brasil. O navegador português foi, na verdade, o nome eleito pela historiografia apologista da colonização portuguesa para fixar uma origem para o Brasil. Questionar a descoberta de Cabral é questionar uma interpretação do Brasil que embalou a formação do estado nacional e a construção de uma identidade nacional europeia. Eu sei disso. Mas não basta inverter as coisas, seus reclamões.

2.       Cabral Perdido no Mar? Com dez naus e três caravelas, além de contar com marinheiros experientes, a frota de Cabral era a mais bem equipada a zarpar de Portugal. Não. Cabral tinha endereço certo. Viajava com as instruções de Vasco da Gama, com informações detalhadas sobre o percurso. Duarte Pacheco, o cosmógrafo que acompanhou Vasco da Gama às índias dois anos antes, estava na esquadra de Cabral. Existe uma suspeita bastante razoável de que Duarte Pacheco tenha refeito a rota da viagem de Vasco da Gama, antes de embarcar com Cabral, com o intuito de explorar a "quarta parte", o quadrante oeste do Atlântico Sul. Mas não existe documentação que comprove definitivamente a realização dessa viagem. A Coroa portuguesa, e a espanhola, mantinham uma política de sigilo nos empreendimentos marítimos.

A rota era conhecida. De Lisboa a Calicute, com a “volta do mar” no meio do caminho, não tinha erro. O desvio para “achar” as terras de cuja existência se suspeitava desde a viagem de 1488 fazia parte dos planos da expedição. A ausência de surpresa na carta do contador Pero Vaz, como se eles já esperassem encontrar as terras, é um dos fortes indícios a favor desta tese.


3.       Se vamos falar de “descobrimento”, vamos ser justos. A iniciativa foi portuguesa, eles atravessaram o mar e foram ao encontro das terras que Vasco da Gama suspeitava existir. Não vejo problemas com o termo descobrimento. Descobrir, para simplificar as coisas, quer dizer “encontrar o que era desconhecido”. Francisco Adolfo de Varnhagen, em 1850, já dizia que os portugueses, em 1500, estavam vendo a exuberância da costa do futuro Brasil pela primeira vez. Este era o sentido de descoberta para Varnhagen. Acho que, neste ponto, ele foi certeiro.

Alguns questionam afirmando que Cabral e Colombo não foram os primeiros a encontrar ou topar com estas terras. E não foram mesmo. Mas a questão não é essa. O importante a considerar foram os efeitos sociológicos das viagens destes dois navegadores. Os que chegaram aqui antes deles não registraram o feito, não o tornaram público. As viagens de Cabral e Colombo não apenas foram registradas e conhecidas em toda a Europa, como resultaram em outras viagens que deram início a ocupação e colonização das terras descobertas. Ouve, portanto, um descobrimento que resultou num movimento em larga escala de ocupação das terras até então desconhecidas.

Alguém poderia objetar dizendo que lá no século XV para o XVI não se usava a palavra descobrimento. Não creio que isso seja um problema. Se usarmos a palavra para dizer que os portugueses encontraram o que até então desconheciam, mesmo que suspeitassem, não tem problema. Nós usamos signos e conceitos do presente para pensar o passado.

Entendo a causa que está por trás do cartaz. Mas não é desta maneira que os ditos “índios” vão tornar-se, de acordo com o velho jargão dos historiadores, “sujeitos da história”, nem do ponto de vista historiográfico, nem social. Não é o “nosso” voluntarismo, combinado com uma visão romântica sobre os “índios”, e muito menos frases de efeito (duvidoso), que vão resolver alguma coisa. O que poderíamos fazer? Não tenho a menor ideia. Nós continuamos sem entender os “índios”. Quanto mais leio sobre eles, mais aprendo sobre os historiadores, os antropólogos e os etno-historiadores.


A frase do cartaz é também o nome de um movimento em favor das causas indígenas. Eles têm uma página do facebook.
 


Pronto, reclamei. Estou mais aliviado. Vou fazer um chimarrão e ouvir Raul: “Eu vou lhe desdizer, aquilo tudo que eu lhe disse antes”.

sexta-feira, 22 de março de 2013

A REVOLUÇÃO COMO MITO (o ópio dos intelectuais).



A REVOLUÇÃO COMO MITO (o ópio dos intelectuais).


Ferreira Gullar está em forma. É um crítico atento dos autoritarismos de esquerda e de direita. Usa o calibre poético e a invulgar veia literária para desmascarar os falsos messias da liberdade dos povos. Afiado, como sempre, desmontou o mito da “revolução bolivariana”. O texto do poeta, que reproduzo mais abaixo, mesmo com possíveis imprecisões, é necessário e urgente. É um manifesto contra o delírio “bolivariano” que ronda a América do Sul. Claro, a postura do poeta desagrada muita gente. Max Altman, por exemplo, que não aceita que um escritor que durante décadas militou no campo da esquerda seja agora um crítico das esquerdas, tentou desacreditá-lo mostrando-o como uma espécie de lacaio da velha direita. Destaquei um parágrafo do texto de Altman:

 “Como necessitam ser bem recebidos pelos novos correligionários, mostram-se crescentemente mais realistas que o rei. Ou seja, homens com uma história de esquerda passam a defender algumas das teses mais caras à direita. Mudar de lado não é um ato gratuito. Há que se pagar pedágio sempre – e ele é caro e exigente -, demonstrando por atos e palavras que são leais à nova trincheira e aos seus valores. É o caso de Arnaldo Jabor, Roberto Freire, Marcelo Madureira, Alberto Goldman e tantos outros. E do poeta e cronista Ferreira Gullar.” (Max Altman: “Há sim uma revolução na Venezuela, Ferreira Gullar”).

Quem disse para o Sr. Altman que Gullar é agora um homem de direita, que precisa ser recebido pelos “novos correligionários”? Gostaria que o Sr. Altman demonstrasse, com alguns exemplos, que Gullar “mudou de lado”. Gullar, como podemos ler em algumas entrevistas, é crítico da direita e da esquerda. Chamá-lo de direitista é um insulto à inteligência. Textos como este servem apenas para abastecer a militância, que o reproduz vertiginosamente na rede, e desfazer nas redes sociais os efeitos da critica de Gullar. Como são parecidos, nos métodos, com a velha direita. Vamos em frente. Quem disse ao Sr, Altman que Gullar defende teses de direita? Mostre-me uma. Apenas uma. Que tipo de pedágio Gullar paga? Que tipo de fidelidade ele presta? Textos difamatórios como este não podem ser levados a sério. Foi exatamente está impostura, esta “ignomínia” (devolvo a palavra que Altman usou para se referir a Gullar), dos intelectuais de esquerda que me fez desejar estar bem longe deles. Não tenho a menor dúvida, estou com Ferreira Gullar. Estou do lado da independência e da honestidade intelectual.

O texto de Gullar é um alerta. O processo de mitificação do herói revolucionário, que em nome do povo humilde e marginalizado enfrentou a tirania das oligarquias, esta em curso. Prestemos atenção aos textos e aos gestos mistificadores. 

O poeta sugere, ao final do texto, e eu insisto: “Não resta dúvida, estamos em Macondo.”

Está mais do que na hora de revermos os enredos e as narrativas construídas sobre as “revoluções”. As narrativas histórias elaboradas de um ponto de vista liberal ou conservador - a história vista de cima, ou tradicional, como se diz - já foram desmontadas e dissecadas. Está na hora de questionarmos também a história escrita, pretensamente, de uma perspectiva popular, ou das classes populares. Os enredos das revoluções, do passado e do presente, seguem uma fórmula clássica, e gasta, que precisa ser interrogada. O elogio das revoluções, e dos seus líderes, foi flagrantemente eletivo. Muita sujeira foi jogada para baixo do tapete. Fez-se vista grossa para inacreditáveis atrocidades. A sugestão poderia ser uma nova versão da história a contrapelo, só que desta vez aplicada à historiografia de esquerda. Vamos escovar a história das revoluções a contrapelo para ver o que as narrativas apologéticas esconderam?

O roteiro das ditas revoluções em nome da liberdade e da igualdade é conhecido. Primeiro identifica-se um passado de opressão com o qual pretendem romper. Inscrevem este passado na ordem histórica da superação e o decretam, com sofisticadas elucubrações teóricas, como em fase terminal. Elegem nesta fase em vias de superação os tiranos e os inimigos do povo. Depois, acionando os princípios de liberdade e igualdade, esforçam-se para mobilizar o que chamam de “massas” para dar o golpe final na ordem moribunda. As "massas", depois de cumprirem seu papel “revolucionário”, são afastadas da cena (Ou contidas com benefícios do estado-pai). Cabe agora aos iluminados construir o novo regime. O passado deixado para traz recebe pejorativamente o nome de antigo regime (ou passado oligárquico). Tudo e todos os que são identificados com o passado passam a ser vistos como inimigos do povo e da revolução (Hoje o inimigo é a mídia, e a dita revolução, dizem, não será televisionada). Esta qualificação autoriza os mais insanos atos de violência e covardia (o “paredón” cubano ou os abusos do poder discricionário). O mais surpreendente: os tiranos encontram nos intelectuais uma disposição “científica” para declarar a legitimidade das suas ações. Não se trata de negar a importância das lutas sociais, nem de negar, no caso da América Latina, um passado de exploração e opressão. O que não se pode aceitar é a instrumentalização deste passado para a instauração de novas formas de autoritarismo e de exploração política do “povo”, em nome do “povo”. Alguém se lembra da advertência de Bakunin, lá na Primeira Internacional? 

“Assim, sob qualquer ângulo que se esteja situado para considerar esta questão, chega-se ao mesmo resultado execrável: o governo da imensa maioria das massas populares se faz por uma minoria privilegiada. Esta minoria, porém, dizem os marxistas, compor-se-á de operários. Sim, com certeza, de antigos operários, mas que, tão logo se tornem governantes ou representantes do povo, cessarão de ser operários e por-se-ão a observar o mundo proletário de cima do Estado; não mais representarão o povo, mas a si mesmos e suas pretensões de governá-lo. Quem duvida disso não conhece a natureza humana.”

Embora pareça, Bakunin não tinha uma bola de cristal. Ele simplesmente desconfiava dos autoproclamados defensores e representantes desta abstração chamada “povo”. Ele nunca acreditou nas sanguessugas sociais que parasitam o corpo das ditas classes populares.

Mas afinal, o que é uma revolução? Aconteceu ou está acontecendo uma revolução na América do Sul? O texto abaixo oferece um bom ponto de partida para uma reflexão.

Trecho do texto que Ferreira Gullar publicou no dia 17 de março na Folha de São Paulo sobre a “revolução bolivariana”. Abaixo, o texto na íntegra.

“Chávez intitulou seu regime de "revolução bolivariana", embora não tivesse feito qualquer revolução. O que fez, na verdade, foi dar comida e casa aos mais necessitados, o que, ao contrário de levar à revolução, leva à aceitação do regime pelos que poderiam se revoltar. Daí a necessidade de haver um inimigo, que ameace tomar o que eles ganharam. E o líder -Chávez-- está ali para defendê-los.”


A REVOLUÇÃO QUE NÃO HOUVE.
Ferreira Gullar

Hugo Chávez foi, sem qualquer dúvida, um líder carismático que aliava, em sua atuação, a audácia e a esperteza política. Desde cedo, a ambição de poder determinou suas ações, que o levaram da conspiração nos quartéis às manobras populistas características de seu projeto de governo.
Sempre soube o que deveria fazer. Compreendeu, desde logo, que teria de atender às necessidades de grande parte da população que, ignorada pela oligarquia venezuelana, vivia na miséria.
Ganhar a confiança dessa gente, atendê-la em suas carências, era a providência eticamente correta e, ao mesmo tempo, o caminho certo para tornar-se um líder de imbatível popularidade. Mas, para isso, teria que enfrentar os poderosos e obter o respaldo das forças armadas, às quais, aliás, pertencia. Foi o que fez e ganhou a parada.
Outro traço característico de Hugo Chávez era o pouco respeito às normas democráticas. Se é verdade que ele chegou ao poder pelo voto e pelo voto nele se manteve, é certo também que se valeu do prestígio popular e de alguns erros dos opositores para controlar os diferentes poderes da nação venezuelana, impor sua vontade e consolidar o poder discricionário.
Nesse sentido, o que ocorreu na Venezuela é um exemplo de como o regime democrático, dependendo do nível econômico e cultural da população de um país, pode abrir caminho para um governo autoritário que, dependendo da vontade do líder, anulará a ação política dos adversários, como o fez Hugo Chávez.
Ele não só fechou emissoras de televisão como criou as Milícias Bolivarianas, que, a exemplo da conhecida juventude nazista, inviabilizava pela força as manifestações políticas dos adversários do governo.
Para culminar, fez mudarem a Constituição para tornar possível sua reeleição sem limites. Aliás, é uma característica dos regimes ditos revolucionários não admitir a alternância no poder. Está subentendido que sua presença no governo garante a justiça social com a simples exclusão da classe exploradora e, portanto, como são o povo no poder, não há por que sair dele.
Chávez intitulou seu regime de "revolução bolivariana", embora não tivesse feito qualquer revolução. O que fez, na verdade, foi dar comida e casa aos mais necessitados, o que, ao contrário de levar à revolução, leva à aceitação do regime pelos que poderiam se revoltar. Daí a necessidade de haver um inimigo, que ameace tomar o que eles ganharam. E o líder --Chávez-- está ali para defendê-los.
O azar dele foi o câncer que o acometeu e que ele tentou encobrir. Quando já não pôde mais, lançou mão da teoria conspiratória, segundo a qual seu câncer foi obra dos norte-americanos. Como isso ocorreu, nem Nicolás Maduro nem Evo Morales se atrevem a explicar.
De qualquer modo, tinha que se curar e foi tratar-se em Cuba, claro, para que ninguém soubesse da gravidade da doença, que o obrigaria a deixar o governo. Sucede que o câncer não cedeu à onipotência do líder, obrigando-o a ausentar-se da Venezuela e da chefia do governo, por meses seguidos. O povo venezuelano, naturalmente, desejava saber o que se passava com o seu presidente, mas nada lhe era dito.
No entanto, Chávez deveria disputar eleições em 2012 para manter-se no governo e, por isso, voltou à Venezuela dizendo-se curado. Foi reeleito, mas teve que voltar às pressas à UTI em Havana. Daí em diante, mais do que nunca, o sigilo foi total: está vivo? Está morto? Vai voltar? Não vai voltar? Pela primeira vez, alguém governou um país de dentro de uma UTI.
Chega a data em que teria que tomar posse, mas continuava em Cuba. Contra a Constituição, Nicolás Maduro, que ele nomeara seu vice-presidente, assume o governo, embora já não gozasse, de fato, da condição de vice-presidente, já que o mandato do próprio Chávez terminara.
Mas, na Venezuela de hoje, a lei e a lógica não valem. Por isso mesmo, o próprio Tribunal Supremo de Justiça --de maioria chavista, claro-- legitimou a fraude, e a farsa prosseguiu até a morte de Chávez; morte essa que ninguém sabe quando, de fato, ocorreu.
Durante o enterro, Nicolás Maduro anunciou que Chávez seria embalsamado e exposto para sempre à visitação pública, como Lênin e Mao Tse-tung. Um líder revolucionário de uma revolução que não houve. Não resta dúvida, estamos em Macondo.


sexta-feira, 15 de março de 2013

A TRAVESSURA SEMIÓTICA DE RENÉ MAGRITTE E OS LIMITES (?) DA CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO HISTÓRICO.



A TRAVESSURA SEMIÓTICA DE RENÉ MAGRITTE E OS LIMITES (?) DA CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO HISTÓRICO.

O post não trata de filosofia nem de estética da arte. São rápidos apontamentos de um historiador inspirado em alguns quadros de René Magritte. Nada mais.


Perspicácia (1936).

O olhar fixo e compenetrado do artista para capturar, quem sabe, a forma, o volume e a essência do “objeto” que pretende pintar contrastando com a figura que toma forma na tela é a melhor tradução da expressão “dar asas à imaginação”, com o perdão da obviedade do trocadilho. O que esta diante dos olhos não o satisfaz. O ovo (a realidade diante do pintor) é apenas o motivo, não um objeto a ser fielmente retratado. 

“Perspicácia” é uma reflexão metalinguística sobre o trabalho do artista, sobre a arte de ultrapassar o aparente e trazer a tona o que está oculto. O pintor é um interprete, um semeador de sonhos e de (su)realidades, não um satisfeito retratador de realidades estanques. Seu olhar dirigi-se para o além do ovo, para o vir a ser.  

Magritte joga com a realidade e a imaginação, mas não para opô-las como esferas antagônicas e irredutíveis. O ovo, a realidade a sua frente, é uma possibilidade, não uma certeza, é um ponto de partida, não um fim a ser alcançado/retratado. Eis o sentido de perspicácia. O pintor nos convida a ver a realidade como potência, como movimento, como construção subjetiva, não como um dado objetivo que existe independente das nossas construções linguísticas, estéticas, científicas, religiosas. A perspicácia está em ver a realidade como um estímulo à imaginação, não como prisão da criatividade. É estar aberto para o inesperado. 

O tema de “Perspicácia” é bastante sugestivo para iniciar uma conversa sobre a controvertida relação do historiador com a realidade. Vamos pegar carona na super-realidade de Magritte e ver onde ela nos leva? 

René Magritte é daqueles raros pintores que desconcertam. Figuras e objetos enigmáticos, como rochas pesadas suspensas como se fossem plumas, noite e dia numa mesma cena, figuras reais em contextos oníricos e surreais, são algumas das situações ilusórias criadas pelo pintor, que provocam reflexão.


Império das luzes (1954).

Chapéus de coco, guarda chuvas, pássaros, maças, cachimbos, portas e janelas, enfim, objetos familiares, que normalmente não chamariam nossa atenção, são deslocados dos seus lugares identificáveis e colocados em contextos inesperados. Este (re)manejamento dos objetos era característico do surrealismo. Buscava-se desestabilizar e confundir a percepção, embaralhar os sentidos e confundir a fronteira entre o real e a imaginação. Magritte foi um mestre nesta arte de jogar com objetos e contextos ou de descontextualizar objetos. Queria provocar o estranhamento, o deslocamento dos sentidos, estimular um olhar novo sobre os objetos que nos cercam e sacudir o lugar comum. Queria fazer os objetos gritar. Um simples gesto do dia a dia, como olhar-se no espelho, ganha novos significados: e se o espelho não retribuir o olhar? “O que conta precisamente, nos diz Magritte, é esse instante de pânico e não a explicação.”


Retrato de Edward James (1937)

Objetos reconhecíveis e perfeitamente identificáveis ganham novos e surpreendentes arranjos e adquirem novos significados. Rompe-se o mecanismo usual de significação e de representação. A obviedade e a naturalidade das coisas se desfazem e abre-se o caminho para outras formas de percepção. 


Magritte não era apenas um pintor. Era um pintor-filósofo. Ao invés de paisagens, cenas cotidianas e figuras humanas reconhecíveis, pintava ideias e temas filosóficos. “As férias de Hegel”, por exemplo, de 1958, lança um desafio dialético explorando um objeto comum usado de maneira incomum: um guarda chuva aberto sustentando um copo com água. Deixemos o próprio pintor explicar suas intenções: “Pensava que Hegel teria sido sensível a este objeto que tem duas funções opostas: ao mesmo tempo, não admitir água (repeli-la) e admiti-la (contê-la). Ele teria ficado satisfeito, creio, ou divertido (como se estivesse de férias).Um objeto comum como um guarda chuva, apartado de sua função original, transforma-se num problema filosófico. Magritte relaciona arte e filosofia, numa brincadeira dialética para divertir Hegel.


As férias de Hegel (1958).

“A Traição das Imagens” é uma das pinturas mais significativas de Magritte. De dimensões pequenas, o quadro nos desafia com um enigma aparente. Somos confrontados com um belo e convincente cachimbo, de suaves contornos, ilusionísticamente pintado sobre um fundo neutro que realça a forma realista do desenho.

  
Abaixo do cachimbo, uma legenda escrita com “caligrafia de convento” (Foucault), nega a imagem acima representada: “Ceci n´est pas une pipe”. Um instante de desconcerto. Porque afinal a legenda nega a imagem? Ela a nega ou a afirma de outro modo? 

“A traição das imagens” é de 1928-9. Magritte foi muito censurado pela ousadia do quadro, por pintar uma imagem e em seguida negá-la. Foi mal compreendido. No entanto, se ele tivesse escrito que aquilo era um cachimbo, não estaria sendo totalmente verdadeiro. Anos mais tarde desafiou os críticos: “conseguem enchê-lo?”. Não, não conseguem, porque não é um cachimbo. É “apenas um desenho”, uma representação pictórica. E para quem ainda duvida talvez o mestre lançasse um desafio: tentem colocar fumo no cachimbo, tentem fumar.

Eis a “traição das imagens”, elas nos levam a ver e a crer em algo que não está ali. A travessura semiótica de Magritte nos faz duvidar das nossas percepções das coisas. O cachimbo salienta a distância intransponível e incontornável entre o objeto e sua representação.

O Cachimbo e a História.

O cachimbo de Magritte é o meu motivo. Se o pintor olhou para um ovo e desenhou um pássaro, porque não olhar para o cachimbo e refletir sobre o trabalho do historiador? Trazendo a advertência de Magritte para os domínios da história, diria que a representação/construção do passado é o cachimbo dos historiadores. Reconstruímos o passado de modo convincente, verossímil, desenhamos seus contornos e oferecemos uma imagem perfeitamente legível. Mas não é o passado. O cachimbo impôs-se ao pintor como forma reconhecível, da qual ele não pode esquivar-se. Da mesma forma, o passado impõe-se ao historiador como realidade da qual ele não pode fugir. Mas o que construímos não é o passado. Assim como no cachimbo pintado por Magritte não pode ser colocado fumo, a imagem que o historiador constrói do passado não tem cheiro, não tem espessura, não sua, não sente dor, não pode ser tocada.

Assim como jamais fumaremos no cachimbo de Magritte, porque sua realidade limita-se a tela, jamais sairemos do domínio do texto para alcançar a realidade do passado. A realidade do passado é inalcançável. O contexto do cachimbo é a tela. O contexto do historiador é o texto, ou um conjunto articulado de textos. Em certo sentido, o contexto criado pelo historiador é tão arbitrário quanto o contexto em que Magritte encerrou o seu cachimbo. Os conceitos e categorias do historiador com os quais ele articula o passado não eram conhecidos no passado. As experiências de vida de outras épocas são, portanto, reconstruídas a partir de signos que lhes são estranhos. Dificilmente as pessoas que viveram no passado se reconheceriam nas tramas e narrativas dos historiadores. Mas isso não chega ser um problema. A história é uma ciência do presente e para o presente. As narrativas históricas têm que fazer sentido para nós, leitores do presente, e não para quem viveu no passado e não está mais entre nós.
Sem pretender adentrar mais do que o necessário neste terreno espinhoso, manifesto um esforço de interpretação, coerente com o entendimento que tenho da história, que não estabelece uma diferenciação fundamental entre texto e contexto. Não parto do suposto de que exista uma realidade passada pré-textual a espera de ser revelada por um conjunto de textos que nos chegam do passado. O que comumente chamamos de contexto não diz respeito a um lugar, uma realidade essencial que exista para além dos documentos. Não se trata de negar a existência de uma realidade exterior ao texto. Negá-la é negar o próprio texto que a toma como referente. O que se enfatiza é o tipo de relação que mantemos com o passado. No fundo, é o problema epistemológico da história: o que podemos conhecer no passado que, afinal de contas, esta tão distante de nós? Este passado nos chega por meio de uma complexa rede de textos: memórias, cartas, livros, etc. Não temos acesso ao mundo que existiu para além destes vestígios textuais. Esforçamo-nos para entender e explicar o mundo fora do texto, produzindo outros textos. Mas o texto é a realidade na qual estamos sempre a desembarcar. Não podemos imaginar que o texto nos conduzirá a uma realidade exterior. Eis os limites da História, e a sua sedução. Abandonando a pretensão de abraçar a realidade em si, não abandonamos o desejo de explicação da realidade. Apenas redimensionamos a noção de realidade e o alcance do nosso olhar estrangeiro de quem literalmente lê o passado. Dominic La Capra, que transformou a cômoda realidade histórica num problema, sugeriu incisivamente que a crença da maioria dos historiadores na existência de um contexto como a força causal essencial é tributária de uma tradição metafísica ocidental da busca pelo puro ser. Na mesma linha dos estudos linguísticos e suas relações com a escrita da história, Hayden White desencadeou polêmicas apaixonadas ao questionar as fronteiras tradicionais que separam a história da literatura e da filosofia, e ao sugerir o papel decisivo da linguagem nas descrições dos historiadores da realidade histórica. Robert Darton, num inspiradíssimo ensaio sobre a presunção do historiador de querer brincar de Deus, perguntou com indisfarçável ironia: por mais que os historiadores gostem de metáforas como “escavar nos arquivos”, “quem acredita na descoberta e extração de pepitas de realidade?” O que estes autores questionam é a pretensão dos historiadores de descrever realidades passadas. Mas alto lá. Daí a afirmar que o texto é uma realidade que acaba em si mesma, ou de que o texto é “apenas a prova de si próprio”, vai uma enorme diferença. A contribuição da critica literária e dos estudos linguísticos é um divisor de águas nos estudos históricos. Passado o primeiro impacto desta virada linguística, e os exageros e as adesões apressadas que a acompanhou, o momento atual é de uma reflexão serena. Muito mais do que respostas, ficam as perguntas: afinal, sobre o que versam os historiadores? Estamos presos a uma rede interminável de textos dos quais somos reféns ilustres? Nossa epistemologia resume-se a um eterno exercício textual? Ou temos alguma coisa a dizer sobre o mundo, sobre o passado? Esta discussão não é perda de tempo, como bem sustentou Ginzburg, nem um mero exercício acadêmico entre as trincheiras racionalistas e pós-modernistas. É, antes de tudo, uma busca pelo valor da história, e dos historiadores.

A história não é um produto da imaginação poética, como sugeriu Hayden White, tampouco uma mera construção da linguagem. O conhecimento histórico, embora limitado ao texto, é construído a partir de uma realidade histórica da qual não podemos fugir. Embora nunca nos afastemos da realidade textual, é ela o nosso ponto de contato com a realidade da qual o texto é um produto. Diria até que o texto não é o nosso limite (como o ovo não o foi para Magritte), mas a nossa ilimitada possibilidade de reconstrução do passado. Os textos podem ser lidos, relidos, redescobertos e reinterpretados de diferentes maneiras. É isso que faz da história uma ciência do presente. Ler o passado é um verbo que só se conjuga no presente. O passado como ele foi não pode ser alcançado, embora nos esforcemos para chegar o mais perto possível. É o nosso cachimbo. Nosso belo, verossímil e ilusionístico cachimbo. É a perspicaz “traição” da história. A imaginação do pintor o permitiu driblar o realismo conformista e ver além do ovo. Sem imaginação – o exercício poético-científico de fazer dois tempos que não coexistem dialogarem - o trabalho do historiador se tornaria um registro obituário de realidades passadas. É como se o pintor olhasse para um ovo e pintasse, imaginem!, um ovo. Por isso, quanto mais os historiadores se aproximarem da literatura, da arte e da poesia, maiores serão as chances de quebrarem a casca do ovo disciplinar e usarem perspicazmente a imaginação a seu favor. Brincando um pouco com a ótima frase de Emmanuel Le Roy Ladurie (de que para fazer história é preciso de um pouco de marxismo e o máximo possível de ciência) diria que para escrever história é preciso de um pouco de ciência e o máximo possível de imaginação.