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domingo, 16 de junho de 2013

FASCISMO ON LINE: Uma Cartografia do Fascismo à Brasileira nas Redes Sociais.



FASCISMO ON LINE: Uma Cartografia do Fascismo à Brasileira nas Redes Sociais.







Já escrevi sobre o tema chamando a atenção para a quantidade de movimentos auto identificados como de direita e simpatizantes do regime militar que vêm, nos últimos três anos, ocupando espaço no ambiente virtual com linguagem bastante agressiva e apelos ostensivos em favor de uma intervenção militar no Brasil. A cada dia vão surgindo novas páginas no facebook, novas denominações ou variações de legendas já existentes, e as menções aos militares vão se tornando mais frequentes e mais explicitas. Incapazes de se organizar no mundo real, estes movimentos encontraram nas redes sociais um ambiente ideal para despejar seu ódio, seus preconceitos e agredir a língua portuguesa. Os posts são muito mal escritos e apelativos. O que antes parecia uma manifestação folclórica do conservadorismo atávico de parte da classe média, ganha dimensões mais sérias e começa a preocupar. No começo estes movimentos se diziam contra a corrupção e contra a esquerda e o PT (“Alerta Brasil”, “OCC” e os “20 do Masp”). Até aí tudo bem. Bem vindos à democracia. Porém, nos últimos meses, ou desde o começo de 2013 para ser mais exato, os movimentos à direita radicalizaram, saíram do armário e passaram a defender abertamente uma intervenção das Forças Armadas. Uma coisa é gritar fora PT e marchar contra o que consideram a corrupção da esquerda. Coisa bem diferente é conclamar as Forças Armadas para um golpe de estado contra um governo eleito democraticamente.




O repertório destes movimentos é praticamente o mesmo que nos anos 60 mobilizava setores da classe média, da TFP, das forças armadas e das elites udenistas contra o governo do presidente João Goulart. São pastiches anacrônicos e estúpidos daquilo que de politicamente pior havia na década de1960. Os novos “indignados” antiesquerdistas, concentrados agora nas redes sociais, ressuscitaram surpreendentemente a ideia esdrúxula do perigo da ditadura comunista que estaria sendo gestada pelo PT (A ignorância política dessa gente só rivaliza com a qualidade dos textos, que eu reputaria tranquilamente como politicamente infantis. Mas se levarmos em conta o público a quem os textos se destinam...). Ressuscitaram também o tema do perigo da “cubanização do Brasil”, usado contra o governo Jango, como reação à proposta do governo Dilma de trazer seis mil médicos cubanos ao Brasil. Os membros desses movimentos agem como se estivessem no auge da guerra fria. Combatem nas trevas da própria ignorância as bandeiras que nem mesmo a esquerda mais defende. 



Não é difícil identificar o perfil sócio profissional dos animadores destes movimentos. Eles se revelam nas redes sociais. Correndo o risco de cometer generalizações, diria que são militares e profissionais liberais de diferentes áreas (marketing, empresários, advogados, profissionais da saúde, promotores, professores, arquitetos, etc.) que, genericamente, se declaram cristãos (católicos), defensores da família, se posicionam contra o aborto, contra o casamento gay, defendem a redução da menoridade e são contra o desarmamento, se dizem anti esquerdistas e, acima de tudo, odeiam o PT (Não estou dizendo que as pessoas tem que pensar deste ou daquele jeito. Cada um defende aquilo que considera justo e correto. Certo? Estou apenas tentando mapear o perfil dos membros destes grupos). Tudo bem odiar o PT. Os petistas são sectários e também destilam  ódio contra os seus adversários ideológicos (ver a filósofa petista que odeia a classe média). Não vamos cair nesta conversa de vitimização do PT que circula por aí. Meu ponto é outro. Os atuais movimentos ultradireitistas são antidemocráticos e golpistas. Pedem abertamente uma intervenção militar para destituir um governo legitimamente eleito. E o que é pior: se dizem defensores dos valores democráticos. Querem salvar a democracia da ameaça “vermelha” e consideram os militares golpistas de 64 como verdadeiros heróis nacionais. Entenderam?



Para conhecimento, apresento um catálogo provisório dos movimentos que estão mais em evidência no momento (criados entre dezembro de 2011 e junho e 2013):




ALERTA BRASIL (criado em 15 de dezembro de 2011). 

Alerta Brasil foi criado em 2011 com a “missão de fiscalizar, informar, divulgar e combater a corrupção de forma pacífica e democrática.” Apesar de se apresentar como um movimento anticorrupção, o que predomina nos posts na página do facebook são ataques ao PT e a esquerda. 


Os 20 BRASILEIROS DO MASP (criado em 15 de janeiro de 2012).
Na página do facebook aparece a seguinte “Descrição”:
“Os 20 do MASP: protesto organizado por um grupo de pessoas que ganhou notoriedade pública ao protestar contra atos de corrupção supostamente cometidos pelo ex-presidente luiz Inácio Lula da Silva em 13 de janeiro de 2013.
O encontro, marcado via redes sociais, tinha como um dos lemas "Mexeu com o Brasil, mexeu comigo. Por um Brasil sem LULA/PT" e associando o ex-presidente Lula ao processo do mensalão”.





OCC: ORGANIZAÇÃO DE COMBATE À CORRUPÇÃO (5 de junho de 2012).
O movimento se apresenta como uma organização não governamental.
Descrição:
“A OCC ALERTA BRASIL é um Instituto de orientação da cidadania, da democracia, da promoção do desenvolvimento econômico e social e de outros valores”.
“Sua missão é desenvolver e aplicar projetos de combate à corrupção dirigida à população em geral, prevenir, fiscalizar, informar, divulgar e combater a corrupção na administração pública direta e indireta, em todos os níveis da federação, de forma pacífica e democrática”.




ENDIREITA BRASIL (criado em 7 de setembro de 2012).
Descrição:
O Instituto Endireita Brasil tem por objetivos: o estudo e a pesquisa da realidade brasileira e internacional, a doutrinação, a educação e formação políticas, a propugnação pelo valor da política conservadora e de direita, a orientação da cidadania, o direito à defesa, os direitos humanos do cidadão de bem, a defesa da soberania nacional, a manutenção da família constituída por marido e mulher, a promoção do desenvolvimento econômico sustentável e social com ênfase na iniciativa privada, a defesa dos valores éticos e morais, a luta intransigente contra a corrupção e a impunidade e a realização de campanhas de mobilização popular nas ruas e virtuais na Internet



2.000.000 DE BRASILEIROS UNIDOS PELO BRASIL (criado em 15 de fevereiro de 2013).
Descrição:
“Grupo criado para unir todos os brasileiros indignados com os mandos e desmandos dos nossos governantes. Aqui estamos lutando por uma AMPLA REFORMA POLÍTICA NO BRASIL, ditada pelo POVO... seremos do tamanho do Brasil e não poderemos mais ser ignorados !!!

Vamos tentar reunir todos os grupos de combate a corrupção com o objetivo de lutar por uma AMPLA REFORMA POLÍTICA, junte-se a nós. Vamos criar juntos, o maior grupo do Brasil.

Participe e adicione seus amigos, não temos nada a perder e muito a ganhar.

Apoiamos essa Luta”.
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Do Anti Esquerdismo ao Golpismo Descarado:
Os movimentos apresentados abaixo, cridos em 2013, são os que mais abertamente defendem a ditadura militar e pedem por um golpe de estado no Brasil. Representam a radicalização dos movimentos destacados acima.





31 DE MARÇO (criado em 9 de março de 2013).
O movimento é uma homenagem ao dia do golpe militar de 1964.
Descrição:
“Na condição de risco que o País se encontra, agora, todo dia será 31 de março.
Vitória sempre, das gloriosas Forças Armadas e Auxiliares sobre o comunismo.
Eles que venham. Por aqui não passarão”.

 












INTERVENÇÃO MILITAR JÁ (criado em 7 de junho de 2013).

Descrição:
“Só um golpe militar vai livrar o Brasil do comunismo, os militares vão limpar Brasília e salvar o país das garras do PT”.












sexta-feira, 14 de junho de 2013

O CALEIDOSCÓPIO SEMÂNTICO DOS PROTESTOS CONTRA O AUMENTO DAS PASSAGENS DE ÔNIBUS.



O CALEIDOSCÓPIO SEMÂNTICO DOS PROTESTOS CONTRA O AUMENTO DAS PASSAGENS DE ÔNIBUS.


Vou dar uma de Foucault (do livro Eu, Pierre Rivière), abrir mão da interpretação, e mostrar a explosão discursiva em torno dos acontecimentos. Pensem num caleidoscópio como metáfora das possibilidades prismáticas. Foucault não estava em cima do muro. Estava engajado num grupo de informações sobre as prisões, que propunha dar voz aos presos. Denunciava-se o silenciamento a que os presos eram submetidos. 

Eu ando de ônibus. Pago caro. Espero nas paradas. Nem sempre viajo sentado e acho que os donos das empresas choram de barriga cheia. Mas desta vez vou ceder a palavra e trazer nove pontos de vista sobre os protestos. Meu objetivo? Digamos que eu gosto muito da ideia do livro do Foucault sobre Pierre Rivière...

NOVE OLHARES.

1.MOVIMENTO ESTUDANTIL POPULAR REVOLUCIONÁRIO (Lideranças estudantis).
O Enunciado:
Estudantes e trabalhadores na luta contra o aumento das passagens de Ônibus.

Na página do MEPR lemos um “manifesto” intitulado “Só a Luta Combativa e Radicalizada Irá Barrar o Aumento das passagens”.

Trecho do manifesto:
“Em diversas capitais do Brasil, a rebelião contra o aumento das passagens já está nas ruas. Apesar da repressão brutal por parte da polícia e da campanha de difamação movida pela imprensa reacionária, a juventude e os trabalhadores tem se somado de forma crescente às mobilizações. O aumento do susto de vida, somado /á situação calamitosa dos serviços públicos oferecidos por este estado podre, e ainda o escárnio contra o povo que é a realização desses megaeventos e os diversos crimes cometidos em sua decorrência,l chegaram a uma situação insuportável. No caso das empresas de ônibus, merecem o ódio da população, por anos de serviços maus e caros”.


2.FERNANDO HADDAD (O Prefeito)
O Enunciado:
O aumento das passagens é justo e será mantido, apesar dos protestos.

Fernando Haddad comentou na noite do dia 13 os protestos contra o aumentos das passagens de ônibus. Disse respeitar os manifestantes, mas que não vai mudar o percentual de aumento nas passagens em São Paulo. Leiam trechos da declaração.

O aumento estava previsto e foi abaixo da inflação...

“Havíamos nos comprometido a dar um reajuste muito abaixo da inflação. Se fosse dada a inflação, o valor da tarifa seria muito maior do que foi dado no momento. Então, o valor será mantido porque já está muito abaixo da inflação acumulada”.

Da recusa do diálogo...

“No primeiro dia abrimos as portas, e o diálogo foi recusado por parte dos manifestantes. E, depois, todos conhecem a história”.  “Não vejo coordenação nesse movimento. Eles próprios dizem: eles não se coordenam, não há lideranças, não há responsáveis. Ninguém se apresenta como responsável pelo que está acontecendo”.


3.MARCO ANTONIO VILLA (O historiador)
O Enunciado:
“Fascismo e Oportunismo Político”.

O historiador Marco Antonio Villa escreveu um texto breve  acusando a inconsistência e o oportunismo que cerca o movimento.

Destaco algumas frases:

- não é o que pode ser chamado de movimento social, sociologicamente falando;
- tem uma prática típica de grupos fascistas, são eleitoralmente inexpressivos;
- como a eterna crítica ao capitalismo – que vive uma “crise terminal”, falam isso desde o final do século XIX – não se materializa na “revolução”, necessitam construir um móvel de luta para não perder o apoio das “suas bases”;
- a passagem de ônibus virou um eficaz instrumento para as lideranças desses grupelhos dar satisfação às suas inquietas “bases”, cansadas de ouvir discursos revolucionários, negadores da democracia (chamada depreciativamente de “burguesa”), sem que tivessem o que chamam de prática revolucionária;
- o desemprego e a crise econômica – presentes na Europa – aqui são irrelevantes, portanto a “mobilização” tem de buscar outro móvel de luta;
- O “movimento” está desesperadamente procurando um cadáver;
- E como bem disse um comentário, este movimento não vale vinte centavos.


4.ÉLIO GASPARI (O Jornalista)
O Enunciado:
A PM iniciou a violência.

“Quem acompanhou a manifestação contra o aumento das tarifas de ônibus ao longo dos dois quilômetros que vão do Teatro Municipal à esquina da Consolação com a rua Maria Antônia pode assegurar: os distúrbios desta quinta-feira começaram às 19h10m, pela ação da polícia, mais precisamente por um grupo de uns vinte homens da tropa de choque, com suas fardas cinzentas, que, a olho nu, chegaram com esse propósito”


5.LUISCARLOS AZENHA (O Jornalista II)
Enunciado:
Foi Brutal, mas foi didático para a Classe Média. E o PT em cima do muro.

“A classe média paulistana — inclusive aquela formada por repórteres da Folha e do Estadão — experimentou na própria pele o comportamento autoritário, brutal e descontrolado da Polícia Militar de Geraldo Alckmin, com a conivência do PT, de Fernando Haddad e do ministro da Justiça, que ofereceu o reforço da Força Nacional”.
“Incitado, ironicamente, pela própria mídia fã da ditabranda. A PM paulista demonstrou o zeitgeist de sua existência: bater, em nome da segurança nacional, nos mais frágeis. Suprimir a democracia. Barbarizar jornalistas e manifestantes. Usar as armas de que dispõe graças ao financiamento público para atacar o público que a financia”.
“O mais repugnante é ver gente supostamente ligada ao PT e à esquerda posicionada sobre o muro, aguardando um piscar de olhos das “lideranças” para lamentar ou aplaudir o comportamento dos manifestantes”.
“Como na ditadura militar. Vimos, também, o oportunismo de petistas, tomados por uma amnésia profunda sobre os primórdios do próprio partido, nos anos de chumbo em que a mesma PM atuou para abortar o PT e os movimentos sociais”.


6.REINALDO AZEVEDO (O Cronista)
Enunciado:
A Metafísica Petista e a Revolta dos Remelentos e dos Almofadinhas.

“Mas e os nossos “revolucionários”, saídos dos setores mais abastados da sociedade? O que quer essa gente? O Brasil passa, por acaso, por algum déficit democrático? A resposta até pode ser afirmativa, mas não é isso que está a levar os baderneiros para as ruas. O Brasil passa por alguma crise econômica grave? Há sinais importantes de deterioração da economia, mas também não é isso que mobiliza os incendiários. Tenho uma desconfiança: estamos assistindo ao desdobramento mais perverso deste misto que temos visto de estado-babá com estado prevaricador”.
“Não há mal-estar secreto nenhum  na “civilização brasileira” que explique o vandalismo. Há, isto sim, o casamento de dois atrasos: o estado-dependentismo e a impunidade. Grupos radicais resolveram adotar os métodos do MST, na certeza de que nada vai lhes acontecer. É MSNV: o Movimento dos Sem-Noção e Sem-Vergonha”.

7. ADÃO CLÓVIS MARTINS DOS SANTOS (O Sociólogo).
Enunciado:
Uma Nova Cultura de manifestações.

“Existe um caldo de uma nova cultura e prática de mobilização se formando. É claro que existem partidos, diretórios estudantis e sindicatos que também organizam e convocam, mas quem pauta esses protestos são os diferentes indivíduos, não as instituições”.
“Um dos grandes movimentos de Porto Alegre hoje é a luta pelo espaço público democrático e pelo direito de ir e vir. A palavra de ordem desses grupos é contra a apropriação privada de espaços públicos. Questionam uma cultura que deseja que os jovens sejam segregados e confinados em espaços fechados, sem fazer ruído.
“É uma reação a políticas que restringem o uso .do espaço urbano e a capacidade do cidadão em se locomover por ele”.


8.RENATO ROVAI (O Blogueiro)
Enunciado:
O AI-5 contra as Lutas Sociais.

“Os momentos históricos são diferentes, mas o que está acontecendo em São Paulo precisa ser discutido do tamanho que merece. Manifestantes não podem ser presos sob acusação de formação de quadrilha, crime inafiançável. Se isso vier a prevalecer, estaremos entrando num cenário de ditadura contra a luta social. Será um novo AI-5, o instrumento que faltava para a tão sonhada criminalização dos movimentos sociais que vem sendo arquitetada há tanto tempo pelas forças conservadoras do país. E que ganhou hoje o apoio, em editorial, da Folha e do Estado de S. Paulo.
Na última terça-feira foram 20 presos. Hoje, fala-se em mais de 60. Muitos deles jovens que carregavam apenas vinagre para se defender do já previsto ataque de bombas da Polícia Militar. Entre esses que carregavam vinagre, um fotógrafo da Carta Capital.
O jornalista da Carta Capital já foi solto, mas a grande maioria dos jovens ainda está amargando o gosto da cela. Quem não está sendo acusado de formação de quadrilha, pode obter a liberdade pagando 20 mil reais.
Ou seja, a partir de agora quem for para a rua lutar é bandido de alta periculosidade. E o pior disso tudo é que tem gente que se diz de esquerda que está aplaudindo essa ação nefasta”.


9. BRASIL DE FATO (O Jornal).
O Enunciado:
“Ação comandada pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB) reprimiu violentamente o quarto protesto contra o aumento da tarifa de ônibus, metrô e trens”.

“Pessoas desmaiando, gritaria, centenas de homens e mulheres presos e feridos gravemente, inclusive idosos e crianças. Essas foram algumas das marcas deixadas nesta quinta-feira (13) pela Polícia Militar durante o quarto protesto pacífico pela redução das tarifas do transporte público em São Paulo (SP)”.
“Se a ação da Polícia Militar, a mando de Geraldo Alckmin, pretendia abafar de vez o movimento naquele momento, não houve sucesso. Uma parte dos manifestantes atirou pedras em defesa legítima contra os PMs, e outra se dividiu em vários grupos pelo centro da cidade, entoando palavras de ordem e de forma pacífica”.



domingo, 2 de junho de 2013

A DESCOBERTA ARQUEOLÓGICA NA ANTIGA JAMESTOWN E A EXUMAÇÃO PREMATURA E TENDENCIOSA DOS “OSSOS DO SOCIALISMO”. Tem um esqueleto barulhento no armário da revista Veja.



A DESCOBERTA ARQUEOLÓGICA NA ANTIGA JAMESTOWN E A EXUMAÇÃO PREMATURA E TENDENCIOSA DOS “OSSOS DO SOCIALISMO”. Tem um esqueleto barulhento no armário da revista Veja.




Uma descoberta arqueológica recente nos Estados Unidos lança novas luzes sobre os primeiros anos da colonização inglesa na América do Norte. Arqueólogos encontraram no sitio histórico da antiga Jamestown os ossos de uma menina de aproximadamente 14 anos. As evidências revelam que a jovem inglesa, batizada pelos pesquisadores de Jane, foi desmembrada para ser devorada por colonos famintos. Havia dúvidas até então entre os historiadores se de fato a prática do canibalismo realmente ocorreu na colônia. Os arqueólogos responsáveis pela descoberta garantem que esta é a primeira evidência direta de canibalismo na Virgínia. Os avanços no campo da arqueologia e da antropologia física forense têm muito a acrescentar à reconstrução do passado colonial. A ossada de Jane foi descoberta pelos arqueólogos e estudada por Douglas Owsley, antropólogo forense do Instituto Smithsonian. A antropologia forense é uma área da antropologia especializada na identificação de ossadas humanas. Com o auxílio de criminalistas e médicos forenses os antropólogos conseguem, em certos casos, reconstruir a causa da morte examinando as lesões nos ossos. Por meio desta técnica bastante apurada Owsley conseguiu determinar que o esqueleto pertencia a uma mulher de ascendência inglesa, de aproximadamente 14 anos. Os cortes no queixo, no rosto, na testa e na tíbia são, para o antropólogo, sinais claros de canibalismo. A intenção era remover a pele do rosto e o cérebro para comer. Quem fez os cortes não era exatamente um especialista. A investigação demonstrou que o “açougueiro” de Jamestown agiu com hesitação e absoluta falta de experiência.  Foi movido pelo desespero.

Enquanto nos Estados Unidos a antropologia forense cada vez mais especializada e precisa ajuda na reconstrução de parte do passado, por aqui certos jornalistas descaradamente tendenciosos parecem cada vez mais especializados na “arte” da mutilação do passado para canibalizar o presente. São movidos pelo desespero?

O jornalista Duda Teixeira publicou na última edição da revista Veja um artigo sobre a descoberta da ossada da jovem inglesa. O que poderia ser um bom texto informativo sobre a descoberta arqueológica e as possibilidades de um reposicionamento dos estudos históricos descambou para um discurso anticomunista vulgar e panfletário. O jornalista usou o tema para sugerir que o socialismo tem uma história de fracassos que antecede as experiências do século XX. O sujeito tira conclusões apressadas, mal intencionadas, desvia da discussão principal da descoberta e estabelece relações improváveis entre o “modelo de produção” implantado pelos colonos (supostamente coletivista) e a ocorrência do canibalismo. Deixemos que ele mesmo nos diga: “Jane foi devorada por seus pares como consequência do fracasso do modelo de produção coletiva implantado nos primeiros anos da colonização dos Estados Unidos. A propriedade era comunitária, e o fruto do trabalho era dividido igualmente entre todos. Era, portanto, uma experiência que antecipava os princípios básicos do comunismo. Deu no que deu.” 

Com base no que Duda afirma isso? Quem conhece um pouco a experiência de Jamestown sabe que não foi bem assim. Os arqueólogos que fizeram a descoberta e os antropólogos que estudaram o corpo e o contexto são tremendamente cuidadosos nas afirmações.  Existem relatos das primeiras experiências da colonização, que nos oferecem um rico panorama da realidade enfrentada pelos colonos. A primeira carta da Virgínia, a História Geral da Virgínia, escrita por Smith, a carta de Massachusetts e a carta de Maryland, são alguns exemplos. As narrativas históricas amplamente documentadas também descrevem detalhadamente a vida dura dos primeiros colonos e interpretam de diferentes maneiras a colonização (lembro-me da ótima descrição de Leo Huberman, escritor e jornalista marxista norte-americano, sobre a dificuldade de sobrevivência dos colonos nos primeiros meses e anos após a chegada– ver História da Riqueza dos Estados Unidos) Os documentos e as narrativas dos historiadores mostram que o fracasso e as tragédias das primeiras tentativas de estabelecimento de colônias na Virginia, no começo do século XVII, estão associados a diversos fatores. Jamestown localizava-se numa península pantanosa no Rio James. Ao mesmo tempo em que era um local fácil de defender, por ser uma península, era também uma armadilha em termos de doenças, como disse um historiador. A água salobra não era boa de beber. Os desentendimentos entre os colonos por conta das frustrações – por não encontrarem os rubis e os diamantes que acreditavam existir ali – dificultavam a cooperação. As doenças, os ataques dos índios e a fome se encarregavam do resto. O duro inverno de 1609, que levou os colonos a fazer o impensável, foi marcado por uma seca extrema. O que já estava difícil piorou ainda mais com os confrontos com a Confederação Powhatan e o desespero provocado pelo navio de mantimentos que se perdeu no mar. Mas nada disso é considerado pelo jornalista Duda Teixeira. 

Em 1625, George Percy, que fora presidente de Jamestown naqueles tempos difíceis, escreveu uma carta contando como os colonos sobreviveram ao terrível inverno de 1609, e o que tiveram que comer:
Haveinge fedd upon our horses and other beastes as longe as they Lasted, we weare gladd to make shifte with vermin as doggs Catts, Ratts and myce…as to eate Bootes shoes or any other leather,” (…) “And now famin beginneinge to Looke gastely and pale in every face, thatt notheinge was Spared to mainteyne Lyfe and to doe  those things which seame incredible, as to digge upp deade corpes outt of graves and to eate them. And some have Licked upp the Bloode which hathe fallen from their weake fellowes.”

Nesta carta Percy conta que ele próprio, com a autoridade que lhe competia, torturou e queimou vivo um homem que confessou ter matado, salgado e comido a mulher grávida. A descrição de Percy é contundente e não deixa dúvidas, mas até agora, dizem os antropólogos, nenhuma evidência física fora encontrada para afirmar com certeza que a prática do canibalismo de fato ocorrera. A ossada de Jane, estudada paralelamente aos documentos históricos, ao que tudo indica, vai oferecer provas mais consistentes.

Duda Teixeira poderia ter consultado os historiadores e alguns documentos antes de escrever o artigo para a Veja. Se tivesse feito isso não teria dito as bobagens que disse. Mas não é de hoje que este rapaz comete estas molecadas históricas e usa o passado ao seu bel prazer para atacar levianamente a esquerda. Basta ler o Guia Politicamente Incorreto da América Latina. As criticas as esquerdas são mais do que necessárias, mas não essas bobagens anacrônicas e descabidas que estes jornalistas neoconservadores ilustrados andam escrevendo. O título do artigo do Duda Teixeira, “Os ossos do socialismo”, é absolutamente lamentável. Não existe a mais remota relação entre o fracasso da colonização de Jamestown e o que viria a ser chamado de socialismo no século XIX. Não havia um modelo coletivista de produção nas primeiras colônias da Virgínia. Havia um esforço coletivo de sobrevivência em terras desconhecidas e hostis. Os colonos trabalhavam juntos nas lavouras e montavam guarda nas paliçadas para construir alguma coisa. Mas para Duda Teixeira, que conseguiu ver no esqueleto muito mais do que os estudiosos norte americanos, a ossada de Jane é a evidência cabal da “ineficiência do sistema coletivista”. De onde este rapaz tirou isso? Ele deve estar assistindo demais as séries americanas sobre detetives forenses que conversam com os corpos. Os restos mortais de Jane devem ter dito ao jornalista o que não disseram aos antropólogos forenses. Os corpos falam, sabemos disso, mas parece que Duda ouviu demais. Gostaria de saber o que os cuidadosos pesquisadores americanos envolvidos com o sítio histórico de Jamestown diriam sobre as conclusões do jornalista.

Ao invés de informar aos leitores, como compete ao jornalista, sobre a importante descoberta e as técnicas de investigação da antropologia forense, Duda Teixeira viu na descoberta arqueológica uma oportunidade para atacar o socialismo.  Mas esse é o Duda, ele vê fantasmas e vestígios do socialismo em toda parte. Até onde eles não existem. 

Identificar nas origens de Jamestown uma “experiência que antecipava os princípios básicos do comunismo” é no mínimo desonesto. É de fazer jus à expressão “esqueletos no armário”, comumente usada na Inglaterra e nos Estados Unidos para se referir as ações pouco dignificantes que se fez no passado. O anticomunismo histórico da revista, e o que se fez em nome dele no passado, volta a assombrar o presente. Tem um esqueleto no armário da revista Veja.