Pin it

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

“MARIA ANTONIETA” E “ADEUS, MINHA RAINHA”: DOIS OLHARES SOBRE A CONTROVERTIDA RAINHA FRANCESA.



“MARIA ANTONIETA” E “ADEUS, MINHA RAINHA”: DOIS OLHARES SOBRE A CONTROVERTIDA RAINHA FRANCESA.  
  

“Maria Antonieta não foi a grande santa da realeza, tampouco a prostituta, a grue da revolução, e sim um caráter medíocre, na verdade uma mulher comum, não particularmente esperta, não especificamente insensata, nem fogo nem gelo, sem especial inclinação para a bondade e sem nenhum apego ao mal, a mulher mediana de ontem, hoje e amanhã, sem pendor para o demoníaco, sem ânsia pelo heróico e, talvez por isso, tema pouco adequado a uma tragédia.” (Stefan Sweig). 

Dois filmes recentes, um francês e um norte-americano, revisitaram a corte francesa às vésperas da revolução de 1789 e, cada um a sua maneira, nos ofereceram duas provocativas releituras histórico-cinematográficas da rainha insensível que, num momento difícil, teria zombado da miséria que assombrava a França e sugerido ao povo que, na falta de pão, comesse brioches. Maria Antonieta foi esta criatura odiosa e insensível que não se importava com a desgraça dos seus súditos ou isso não passa de uma caricatura habilmente difundida pelos adversários, que lhe custou a vida? As respostas não são fáceis. E o mérito das duas cinebiografias é justamente não apresentar respostas simples que reduzam a imagem da rainha a uma coisa ou outra. Antonieta era uma figura complexa e heterodoxa. Inventou um estilo de vida extravagante que atraiu para si a admiração e o ódio. Cultivou inimigos importantes e antipatias ressentidas. Tornou-se impopular, e foi atropelada pelo curso da revolução que varreu o absolutismo da França.


Vamos aos filmes? 

 “Adeus, minha rainha”, o belo filme francês de 2012, dirigido por Benoît Jacquot, narra os primeiros dias da revolução francesa vistos do palácio de Versalhes. O ponto de partida são os acontecimentos em Paris que levaram a tomada da famosa prisão-símbolo do “antigo regime”. A partir daí a narrativa explora os efeitos dos acontecimentos no palácio real da perspectiva da criadagem, da nobreza e da rainha, que vive um drama amoroso. Maria Antonieta (Diane Kruger), sob forte pressão, dividi-se entre as notícias perturbadoras que chegam de Paris e a eminente separação de sua amada, Gabrielle de Polignac. A cabeça de Gabrielle, por sua ligação com a rainha, é pedida nas ruas de Paris. Temendo pela vida da amada, Maria Antonieta, dilacerada, pede que ela deixe a França. O drama amoroso é tocante e ocupa um lugar de destaque no filme, mas a personagem central é Sidonie Laborde (Léa Seydoux), a fiel serva que dedica seus dias a ler para a rainha. É pelos olhos dela, cheios de admiração e paixão por Antonieta, que assistimos o desenrolar dos acontecimentos em Versalhes. O filme reconstrói o início das revoltas da perspectiva da serva e da relação que ela estabelece com a rainha. Pela subjetividade de Laborde somos conduzidos pelos labirínticos corredores do palácio que levam aos aposentos e aos dramas pessoais de Maria Antonieta deflagrados pela queda da Bastilha. O recorte temático e subjetivo do filme nos apresenta, portanto, os momentos iniciais da revolução vistos dos luxuosos aposentos da rainha. 
Felizmente, vivemos num tempo em que o passado pode também ser construído e narrado da perspectiva da rainha, de Versalhes, das elites, dos senhores de escravos e dos patrões, sem que isso soe elitista, reacionário ou tradicional. Quando a história era escrita somente do ponto de vista das “classes altas”, com total desinteresse pelas “classes populares”, havia um sentido conservador, misto de preconceitos cultivados e de uma concepção elitista da história. O que se convencionou chamar de “história vista de baixo”, e as diferentes formas de abordagem popular do passado, abriram o campo da história para os diferentes grupos sociais e personagens socialmente menos favorecidos, arrancando a escrita da história dos domínios exclusivamente conservadores. O lado negativo disso foi a emergência de certa visão redentora/popular/messiânica da história e dos inequívocos populismos historiográficos. Nas décadas de afirmação e consagração da dita “história vista de baixo” qualquer tentativa de se olhar o passado pela ótica das “classes altas” era taxada de reacionária. Só se escrevia sobre as elites para criticar suas condutas e revelar os seus preconceitos de classe. O que era perfeitamente compreensível. Hoje a situação é bem diferente. A história das “classes populares” não só está consagrada, como ocupa o centro das preocupações dos historiadores. Escrever sobre as elites hoje, diferentemente do que ocorria antes, traduz um esforço de compreensão do passado a partir de diferentes perspectivas. Afinal, os ricos também faziam parte das tramas do passado. E, convenhamos, as ditas elites não são portadoras de todos os defeitos, assim como as classes populares não carregam toda a decência e a dignidade do mundo nas costas.


Então vamos, sem culpas e julgamentos axiomáticos, nos deliciar com as narrativas palacianas, com as histórias íntimas, com os amores fictícios da rainha e nos exercitarmos no voyeurismo cinematográfico de quem espia as intimidades do passado de dentro de uma sala escura de cinema. Deixe os seus preconceitos de classe e de rigoroso estudioso do passado de lado e se entregue aos deleites de uma bela construção anacrônica que, entre outras coisas, nos faz interrogar sobre a imagem da rainha pintada pelos seus inimigos. Maria Antonieta foi julgada por traição e guilhotinada em 1793. Toda revolução tem os seus justiceiros, que se auto-atribuem o direito de falar a agir em nome do povo e decidir sobre a vida e a morte. O legado de Robespierre foi fecundo. Maria Antonieta era grande coisa? Não sei. Mas sempre desconfiei da imagem dela construída e fixada pela tradição revolucionária e republicana francesa. As biografias históricas recentes e algumas narrativas cinematográficas têm nos ajudado a questionar estas imagens. Não estamos falando numa reabilitação da figura de Maria Antonieta, mas no necessário questionamento dos julgamentos históricos e das imagens herdadas do passado e consagradas pelas narrativas históricas. Maria Antonieta e os filmes, neste caso, são pretextos para examinarmos os possíveis equívocos e abusos que marcaram a gênese da república liberal. 

Para além das questões políticas e sociais envolvidas (como se eu precisasse me explicar), a exuberante e exagerada figura de Antonieta sempre me atraiu. Ela era a alteridade austríaca a desafiar a esnobe corte francesa. Gostava de bailes de máscara – e da oportunidade de se misturar aos plebeus -, freqüentava a ópera e o teatro (atuava em peças, no papel de burguesas e camareiras, no seu petit trianon, ao lado da sua troupe de seigneurs), e usou e abusou da moda para se impor à corte que a rejeitava. Para Caroline Weber, especialista norte-americana na literatura francesa do século XVII e em revolução francesa (autora do livro “Queen of Fashion: What Marie Antoinette Wore to the Revolution”), “Maria Antonieta entendeu que ser uma rainha significava essencialmente interpretar um papel. Mais que isso, ela logo descobriu que, por meio de mudanças na moda, ela podia modificar esse papel e até fugir dele”. Caroline Weber comparou o estilo provocador e multifacetado de Antonieta a Madona: “A rainha mudava constantemente sua aparência, ia dos penteados extravagantes aos rústicos camisetes que usava em seu retiro particular, passando pelas andróginas silhuetas masculinas de montaria. Ela se reinventava constantemente, uma maneira de manter o público curioso sobre sua próxima faceta. Também como Madonna, a rainha acendeu os debates nacionais sobre a sexualidade feminina.” O estilo heterodoxo de Antonieta descontentou muita gente e deu margem às intrigas e aos falatórios que extravasaram o círculo da nobreza e caíram na boca do “povo”.


O filme de Benoît, adaptação do romance histórico de Chantal Thomas (“O adeus à rainha”), apresenta uma Maria Antonieta mais humanizada e frágil, capaz de gestos de gratidão e sacrifícios pela pessoa amada. Chantal Thomas, filósofa, ensaísta e especialista no século XVIII francês, que já se debruçou sobre as vidas de Sade, Casanova e Thomas Bernhard, dirigiu seu olhar feminino e detalhista para Maria Antonieta. O livro explora os acontecimentos, históricos e fictícios, que ocorreram entre dias 14 e 16 de julho de 1789. Mostra o pânico que tomou conta de Versalhes, a fuga dos nobres e o abandono do casal real.


A imagem que Chantal e Benoît nos oferecem sobre Maria Antonieta é bem diferente daquela que nos acostumamos a ver e ler nos livros e nos filmes, que sugerem uma rainha fútil, esbanjadora (a rainha do déficit), desumana e perversamente elitista, que dilapidava o tesouro francês com jóias, vestidos caros, festas de arromba e sofisticados arranjos de cabelo e maquiagem. A estrangeira moralmente devassa se tornou o símbolo do luxo excessivo e desregrado da monarquia francesa e foi convertida no emblema de tudo o que era desprezível no “antigo regime”. A perversa e insensível rainha, com a arrogância acumulada dos Bourbon e dos Habsburgo, teria dito, quando informada de que o povo das províncias passava fome: “se não tem pão, que comam brioches”. Esta imagem amplamente difundida de Maria Antonieta a fez merecedora da pena de morte. A historiadora inglesa Antonia Fraser, que escreveu uma biografia da rainha francesa, contesta esta visão. Sustenta, ou suspeita, que a famosa frase jamais foi dita por Maria Antonieta. Um século antes a frase fora atribuída a uma princesa espanhola que se casou com Luis XIV e depois da morte de Maria Antonieta continuou sendo emprestada a outras princesas. Uma passagem de Rousseau, no livro Confissões, reforça a suspeita da historiadora: “Recordo-me de uma grande princesa a quem se dizia que os camponeses não tinham pão, e que respondeu: ‘Pois que comam brioche’.” E numa carta endereçada à mãe, escrita na época da coroação, Maria Antonieta demonstra sensibilidade em relação à condição de vida dos menos favorecidos: “Tendo visto as pessoas nos tratarem tão bem, apesar de suas desgraças, estamos ainda mais obrigados a trabalhar pela felicidade deles”. São pistas que, colhidas aqui e ali, ajudam a construir uma nova imagem da rainha.  


Embora a biografia escorregue em alguns momentos para a narrativa hagiográfica, a historiadora questiona com competência a imagem de rainha socialmente insensível e sexualmente devassa que abundava nos panfletos pornográficos do século XVIII. O empenho para recuperar a imagem da rainha é assumido, e às vezes excessivo. Todavia, o valor da obra reside no esforço histórico, bem documentado, de problematizar uma imagem negativa herdada sem maiores questionamentos diretamente das tensões do século XVIII.


“Maria Antonieta” (2006), o bonito filme de Sofia Coppola inspirado na obra de Antonia Fraser, embora por outros caminhos, também nos leva a questionar a imagem tradicionalmente aceita da personagem em tela. A escolha de Kirsten Dunst para o papel da rainha não foi mera casualidade. A atriz norte americana revelada na última década, conhecida do público por filmes como Entrevista com o Vampiro e O Homem Aranha, empresta leveza e graça, desfazendo a atmosfera severa e pesada que envolve a personagem. Sofia narra, numa linguagem ousadamente contemporânea, os episódios marcantes da vida de Maria Antonieta desde a saída da Áustria, aos quatorze anos, para se casar com Luis Augusto, até a explosão das revoltas em Paris em julho de 1789. A diretora deixa evidente que a releitura que faz da vida da rainha francesa é muito particular, embora amparada nas narrativas e em biografias históricas recentes. A trilha sonora escolhida a dedo não deixa dúvidas. Os dias de tédio, de amor, de dor, de futilidade, de esbanjamento e de solidão e desespero da rainha são embalados com canções do The Cure, Sioux and The Banshees, The Stroukes, New Order, Bow Wow Wow. A coroação da rainha ao som de Plainsong, do Cure, é de tirar o fôlego. O título do filme, escrito numa faixa rosa, faz clara referência ao disco Never Mind the Bollocks, dos Sex Pistols. As referências são inúmeras. São as digitais de Sofia Coppola plantadas no filme.

Mas é o par de all star azul entre os calçados da rainha que evidencia a assinatura da diretora. Embora se reporte historicamente às décadas de 1770, a leitura inspira-se na década de 1980. Maria Antonieta parece uma garota dos nossos dias, deslocada, mal compreendida, desligada das questões políticas, que sonha com sapatos e suspira pelo conde Ferson ao som da banda The Stroukes (Ever Happened). (Vale lembrar que Sofia Coppola inspirou-se no cantor Adam Ant para criar a identidade visual do conde Ferson). Na cena em que o converse all star aparece jogado displicentemente no ambiente rococó entre os sapatos da rainha, a música de fundo é “I want candy”, da banda Blow Wou Wou. Numa outra seqüência, uma cena emblemática: uma criada calça Maria Antonieta, que come bolos, e esta cercada de doces coloridos, ao som de “Natural’s Not in It”, da banda Gang of Four:

 “The problem of leisure
What to do for pleasure
Ideal love a new purchase
A market of the senses
Dream of the perfect life
Economic circumstances
The body is good business
Sell out, maintain the interest
Remember Lot's wife
Renounce all sin and vice
Dream of the perfect life
This heaven gives me migraine
The problem of leisure
What to do for pleasure (…)”.


A Maria Antonieta de Sofia Coppola não era uma rainha frívola, insensível e esbanjadora. Era, antes, a jovem filha da rainha Maria Teresa, que da noite para o dia foi afastada do convívio familiar, do palácio Imperial de Hofburg na Áustria, do cãozinho de estimação e das damas de companhia. Aos quatorze anos mudou-se para a França, virou delfina e logo em seguida rainha. Ao invés de reproduzir a imagem conhecida de Maria Antonieta e caracterizá-la como fútil e insensível, o filme, sem julgar antecipadamente, mostra as circunstâncias da futilidade, dos gastos desmedidos e da propalada insensibilidade. Maria Antonieta era uma jovem estrangeira (era chamada na corte de L'Autre-chienne, uma paronomásia com as palavras autrichienne e autre-chienne), com hábitos e maneiras distintas, que foi jogada pela mãe no ninho de cobras da nobreza francesa para celebrar uma aliança entre as inimigas Áustria e França. Seguindo os passos de Antonia Fraser, Sofia Coppola explora a situação de estrangeira deslocada da arquiduquesa austríaca, vista como espiã, e dos embaraços em torno da não consumação do casamento (Maria Antonieta e Luis XVI levaram sete anos para levar o casamento as vias de fato. Todos os dias, pela manhã, as roupas de cama do casal eram vistoriadas em busca de sinais da consumação). Os comentários maldosos, as comparações e a pressão da mãe, que lembrava o tempo todo da instabilidade da aliança sem um herdeiro, eram humilhantes. Os excessos, ou fugas, da jovem rainha seriam decorrentes das enormes pressões e da relativa solidão em que vivia. Ou ainda, o estilo de vida de Maria Antonieta seria uma resposta ao pesado ambiente cerimonial que a cercava, ao excesso de formalismo e a etiqueta sufocante da corte. A rainha pop de Sofia Coppola criou um mundo próprio – expresso numa palheta de cores vibrantes -, elegeu suas companhias de ocasião e driblou como pode o tédio, a falta de privacidade, a tristeza e a indiferença do marido. A menina austríaca que se tornou rainha da França foi uma vítima das circunstâncias, das ambições da mãe e do veneno da corte francesa? Nada disso. Ela jogou o jogo, exerceu o poder à sua maneira e tentou fazer as circunstâncias correrem a seu favor. Stefan Zweig, escritor austríaco que lhe dedicou importante biografia, descreveu Maria Antonieta como uma mulher comum, de talentos medianos. Por minha conta, acrescento que a revolução, ao transformá-la, para fins demagógicos, no símbolo da devassidão e do aviltamento moral de uma época, comparando-a as mulheres mais dissolutas do passado (Messalina, Agripina e Fredegunda), agigantou sua figura e lhe permitiu oferecer-se ao “martírio”, vestida de branco, em nome da monarquia.  A revolução, no afã de construir um inimigo à altura dos seus ideais, criou um mito.  Fez de Antonieta uma mulher incomum. 

Os dois filmes – que declaradamente não primam pelo rigor histórico - parecem desejar libertar Maria Antonieta do julgamento que a transformou numa das mais famosas e odiadas vilãs da história. A intenção é legítima. Pairam muitas dúvidas sobre o julgamento da rainha. O Tribunal Revolucionário jogou sobre ela a culpa por todos os males que assolavam a França e a condenou por alta traição, baseado em três acusações: esgotamento do tesouro nacional, negociações e trocas de correspondências secretas com a Áustria e com os monarquistas e conspiração contra a segurança nacional e as relações externas da França. Maria Antonieta se defendeu das acusações e disse que apenas defendia os interesses da monarquia. Mas o veredicto já estava dado, antes mesmo dela tentar se defender. O idealismo liberal deu lugar à paranóia, que via conspiração em toda parte, e a implacável ditadura que instituiu o terror para salvar a revolução. O triunfo da república jacobina exigia a cabeça da monarquia. A cabeça de Maria Antonieta ostentou penteados exuberantes que escandalizavam a sobriedade espartana da república. A cabeça da rainha era o troféu moral dos guardiões da coisa pública. O julgamento era uma mera formalidade. Mas Antonieta não se dobrou. Escolheu encarar a guilhotina vestindo um impecável vestido branco. Caroline Weber explica: “A escolha foi intencional. Era uma forma de se declarar, de maneira corajosa, como mártir e leal guardiã da monarquia. Com sua roupa, ela dizia aos revolucionários que eles haviam tomado a coroa, mas jamais quebrariam seu espírito.” Não vamos confundir o gesto da rainha com heroísmo, muito menos com martírio. Ela estava apenas defendendo aquilo que julgava certo.


A revisão da imagem de Maria Antonieta não é um caso isolado. Nos últimos anos surgiram varias releituras de figuras históricas femininas ligadas a nobreza, na Europa e no Brasil, que se contrapõem as imagens negativas fixadas pela memória e pelas historiografias republicanas. Princesa Isabel, Carlota Joaquina (Me vem a lembrança a intragável Carlota do filme de Carla Camurati) e Dona Leopoldina, por exemplo, receberam novas leituras, baseadas em documentos antes negligenciados ou desconhecidos. As novas interpretações, pelo menos as que valem a pena, não lhe são simpáticas nem antipáticas. Tentam compreender a personagem e a mulher, e as relações nas quais estavam envolvidas, para além das caricaturas e das apologias.  

O léxico simplificador, como diria Alfredo Bosi, e os conceitos que empregamos para descrever ou situar socialmente homens e mulheres do passado, devoram, em parte, as suas subjetividades e intersubjetividades. É o caso do substantivo genérico “nobreza”, uma categoria tão significativa para os historiadores e, ao mesmo tempo, tão rasa e vazia para descrever os sentimentos, as relações, as vulnerabilidades, as virtudes e os amores das pessoas definidas como nobres. Do ponto de vista histórico, o conceito é esclarecedor. Permite a definição de uma identidade coletiva e, conseqüentemente, explicar as posições e as diferenças sociais, os privilégios, etc. Do ponto de vista dos indivíduos, o conceito é generalizante. O qualificativo nobre se impõe sobre a individualidade e sugere um coletivo homogêneo e simplificador. Isto poderia valer aos propósitos dos revolucionários ou dos republicanos que tinham na nobreza o inimigo histórico a ser vencido, “superado”. Mas para nós historiadores, situados a uma distância suficientemente segura para não aceitarmos sem questionamentos os estereótipos e os pré-conceitos revolucionários, não é bem assim. 



 “Maria Antonieta”, de Sofia Coppola, recria a famosa personagem à semelhança das patricinhas consumistas e hedonistas dos nossos dias. A projeção de uma estética da década de 1980 para o passado, com exageros calculados e riscos assumidos, nos lembra o quanto nós historiadores projetamos os dramas e as tramas do presente no passado. O all star azul de Maria Antonieta é uma invasão simbólica e intempestiva, ou simplesmente um modo criativo de dizer sobre o lugar de onde se olha o passado.

“Adeus, minha Rainha” observa a tomada da Bastilha dos aposentos de Maria Antonieta, mas não é um filme reacionário ou elitista. É um retrato íntimo da rainha pintado por sua fiel leitora enquanto o mundo ao redor de Versalhes desabava. O filme não julga a revolução francesa nem a população que toma o presídio. As revoltas compõem a moldura social que encerra o drama pessoal. As diversas personagens populares que cercam a rainha assumem papeis relevantes na trama e expressam de diferentes maneiras seus pontos de vistas. O ponto alto do filme é justamente o jogo de olhares sobre os acontecimentos. A leitora da rainha, a camareira, as damas de companhia, o bibliotecário, a nobreza que vive em Versalhes, o barqueiro, a rainha, a rebelião popular em Paris afeta a todos. A visão de todos é relevante. Desde Nietzsche, e sua concepção perspectivista do conhecimento, sabemos que não conhecemos a realidade em si. Existem interpretações, decorrentes dos distintos ângulos de observação assumidos. Ao contrário do que propunha a noção clássica de perspectiva, não existe ângulo privilegiada sobre os acontecimentos. O filme leva esta máxima a sério. Benoît Jacquot elegeu o seu ângulo.

A construção/imaginação cinematográfica do passado, descompromissada com os códigos e as relações que regem academicamente a construção do conhecimento histórico, oferece insights criativos aos historiadores que buscam novos ângulos de observação do passado.





segunda-feira, 19 de agosto de 2013

GEORGE ROMERO E A SECULARIZAÇÃO DOS ZUMBIS.



GEORGE ROMERO E A SECULARIZAÇÃO DOS ZUMBIS.



“O único mito moderno é o dos zumbis.”

(Deleuze e Guatarri).



 As narrativas sobre mortos que retornam à vida povoam o imaginário dos povos desde a antiguidade. Nas mitologias antigas, passando pela literatura romântica, pelo neo gótico europeu e, por fim, chegando ao cinema, os mortos-vivos pontuam a trajetória histórica dos vivos traduzindo suas crenças e sublinhando seus excessos e desmedidas.
Não vou fazer um inventário das narrativas sobre mortos-vivos, muito menos tentar buscar uma origem. São muitas as variações, os nomes e os significados que o fenômeno assumiu em diferentes condições históricas. Os mortos-vivos que nos acostumamos a ver nos filmes nas últimas quatro décadas, tirando o fato de que retornaram da morte, não guardam qualquer semelhança com os congêneres do passado. Não há uma continuidade que possa ser desfiada e percorrida, ligando os zumbis de hoje com os de outros tempos.


Meu interesse concentra-se nos chamados zumbis modernos, isto é, na figura do zumbi construída pelas narrativas cinematográficas da década de 1960. Acompanho os filmes e a trajetória zumbi no cinema, e suas variações fenomenológicas, desde o final da década de 1970. “Night of the Living Dead” marcou minha adolescência e despertou meu interesse pelo que poderíamos chamar de estética e filosofia zumbi. Perdi a conta de quantas vezes revi o filme. E a cada vez que revejo descubro nuances, diálogos ou um ângulo que ainda não tinha percebido. Que grande filme!


Os Zumbis modernos são uma alegoria política. Não é terror pelo terror e as explicações sobre suas possíveis origens não circulam pela esfera do sobrenatural. Desde a década de 1960, estas criaturas assustadoras são usadas no cinema como uma poderosa metáfora crítica originária do mundo anglo-americano para apontar, por um lado, os excessos das sociedades capitalistas e da sociedade de (hiper)consumo e, por outro, chamar a atenção para as lutas por direitos civis. Já se tentou ver nos filmes de zumbi a alienação do proletariado, mas aí já é uma forçada de barra violenta e uma ideologização excessiva dos mortos-vivos. 
George Romero é sem duvida o grande inventor da estética e da temática zumbi como nós a conhecemos hoje. Entretanto, os zumbis despertam a imaginação cinematográfica, pelo menos, desde a década de 1930.

Narrativas Zumbis Antes de 1968.
Os filmes sobre mortos-vivos realizados antes de 1968 tinham duas diferenças básicas em relação aos filmes pós 68: havia uma explicação para o fenômeno e as criaturas não comiam gente. Um breve retorno a estas narrativas anteriores a década de 1960 visa tão somente enfatizar a ruptura promovida pelos filmes de George Romero. 



“White Zombie”, de 1932, dirigido por Victor Halperin, é um dos filmes mais representativos da época. Resumidamente, pessoas eram transformadas em zumbis após ingerirem uma poção mágica manipulada por um feiticeiro vodu. No filme, um casal americano viaja para o Haiti para celebrar o casamento. A noiva (Madeleine) é objeto da cobiça de um homem (Beaumont) que contrata os serviços de um feiticeiro para possuí-la. Bela Lugosi interpreta o feiticeiro Legendre que, com filtros mágicos, reanima os mortos para fazê-los trabalhar na sua fábrica. O feitiço vodu é feito com um cachecol de Madeleine. O plano é matar a moça, reanimá-la e entrega-la a Beaumont. Alguma coisa sai errada e ela volta como uma zumbi, uma “zumbi branca” incapaz de manifestar qualquer tipo de sentimento. As criaturas criadas por Legendre, diferentemente dos assustadores e vorazes zumbis da era Romero, eram corpos dóceis, adormecidos e domesticados, não pela disciplina fabril, mas pelos feitiços do mago. Não ofereciam perigo aos vivos. A representação do zumbi estava associada a uma visão folclórica das religiões afro-caribenhas e os feiticeiros em geral eram haitianos. Em outros casos explorava-se a mitologia egípcia. No filme inglês “O ressuscitado” (“The Ghoul”), dirigido por T. Hays Hunter em 1933, um egiptólogo, interpretado por Boris Karloff, dedica sua vida à busca da chave para a imortalidade. Seu plano não dá certo e ele volta à vida como um zumbi para amaldiçoar aqueles que violaram sua tumba. (Os dois filmes estão disponíveis no youTube). 


“The Serpent and the Raimbow” (“A maldição dos mortos-vivos”), dirigido por Wes Craven em 1988, retomou esta abordagem ao tratar do tema pelo viés da magia e do sobrenatural. Bill Pulman interpreta um antropólogo norte-americano que vai ao Haiti estudar casos de mortos que retornam a vida e se vê envolvido numa trama sinistra de magia vodu. 


Nas décadas de 1950 e 1960 a figura do zumbi foi se afastando da representação mágico-religiosa e assumindo novas feições. O termo zumbi assumiu diferentes significados e passou a designar uma variedade de criaturas ameaçadoras. No seriado americano “Zombies of the Stratophere”, de 1952, os zumbis eram invasores marcianos com traços humanoides. Para viveram mais perto do sol e garantirem a sobrevivência do seu ecossistema, os marcianos pretendiam trocar a órbita de Marte pela da Terra. O plano dos marcianos consistia em usar uma bomba de hidrogênio de Teller-Ulam para afastar a terra para longe do sol. 


Em “Zombies of Mora-Tau”, de 1957, mergulhadores sob o comando de um milionário americano tentam resgatar diamantes nos destroços de um navio afundado na costa africana. Os diamantes, no entanto, são protegidos pela tripulação do velho navio transformada em mortos-vivos para proteger a preciosa carga até que a maldição se desfaça. 



Jerry Warren, no filme “Teenage Zombies” (1959), misturou ficção científica e conspiração internacional. Quatro jovens americanos encontram por acaso uma ilha controlada por um cientista. Patrocinado por agentes estrangeiros o cientista (Dr. Myra) pretendia transformar os Estados Unidos numa nação zumbi. Os garotos são presos em gaiolas e submetidos aos efeitos de drogas hipnóticas. Depois de escaparem recebem como recompensa um prêmio pela descoberta da ilha e encontram-se com o presidente dos Estados Unidos. 

No filme “The Horror of Party Beach”, de 1964, monstros criados a partir do lixo tóxico e lama radioativa, metade peixe metade homem, aterrorizam e ameaçam matar grupos de garotos que se divertem numa festa na praia. 


Apesar da salada de monstros, a designação zumbi apontava para os perigos que cercavam o mundo, e os Estados Unidos, na imaginação cinematográfica americana naquele contexto (Estabelecer algumas conexões entre os zumbis, os esquemas de financiamento dos filmes e a guerra fria oportunizaria ângulos inéditos para estudar aquele período). Alguns especialistas consideram estas variações da figura do zumbi como uma transição para o que se convencionou chamar de zumbi moderno. Não partilho deste ponto de vista. Os mortos-vivos dos anos 30 e 40, os dos anos 50 e 60 e os pós 68 são três formas distintas de representação dos zumbis ligadas as questões políticas, sociais e estéticas das respectivas época. A ideia de uma transição é duplamente infeliz: (a) pulveriza a singularidade dos filmes das décadas de 50 e 60 ao considerá-los simplesmente como passagem entre duas formas definidas de representação; (b) comporta um que de previsibilidade histórica que, francamente, não existia.



A Laicização dos Zumbis.


Coube a George Romero a laicização dos zumbis no cinema e a ruptura com a representação mágico-religiosa. Embora “A Epidemia dos Zumbis” (“Plague of the Zombies”), de 1966, já os mostre de outra maneira, foi “Night of the Living Dead”, dirigido por Romero em 1968 que criou a versão moderna dos zumbis. “A Epidemia de Zumbis”, dirigida pelo inglês John Gilling, foi ambientada num povoado inglês na distante década de 1860. Pela mão de George Romero os mortos-vivos foram trazidos definitivamente para o século XX, e se tornaram uma poderosa arma de crítica social. Os dois filmes seminais fazem parte de um movimento cinematográfico denominado, não sem controvérsias, “splatterpunk”. Foi uma reação, ou uma revolta no meio cinematográfico, contra os filmes de terror tradicionais. 


Vou me deter na trilogia dirigida por Romero e explorar brevemente os aspectos sociais e políticos abordados nos filmes.



1.      Night of the Living Dead.

     Em “A Noite dos Mortos Vivos” (1968), lançado quando a guerra do Vietnã e o racismo dividiam a sociedade norte-americana, Romero dá o papel de protagonista a um ator negro (Duane Jones). A trama gira em torno de um grupo de pessoas que se refugia numa casa de fazenda, na região rural da Pensilvânia, para se proteger de uma multidão de mortos-vivos que inexplicavelmente voltaram a caminhar sobre a terra. Um homem chamado Ben (um negro) lidera o grupo de sobreviventes (todos brancos) contra os zumbis famintos. Ao contrário dos outros, Ben é equilibrado, tem bom discernimento, senso de justiça e voz de liderança. Chega mesmo a bater num branco egoísta e desequilibrado que só pensa em salvar a própria pele. O assassinato injustificado de Ben por um caipira boçal é um tapa na cara da violência racial e, para muitos, uma homenagem a Martin Luther King e Malcom X, líderes do movimento negro assinados na mesma época. Um estudioso da obra de Romero considera que o filme estava conectado com “às realidades contemporâneas e às questões que estavam na ordem do dia em fins da década de 1960: o racismo, o colapso da família nuclear americana e a ressurreição do conservadorismo político” (Bem Hervey). Alguns críticos europeus leram o filme como uma alegoria do ano de 1968 (Eu não chegaria a tanto). O lançamento do filme, considerado subversivo, impactou a sociedade americana. A violência explicita (mortos-vivos devorando pessoas) e o final perturbadoramente apocalíptico criaram embaraços a Romero, que foi acusado de estar ligado a cultos satânicos e atacar os valores religiosos. Algumas produtoras só aceitavam distribuir o filme com o título “Night oh the Flesh Eaters”, excluindo algumas cenas mais violentas e incluindo um final menos pessimista.



“Night of the Living Dead” (que ganhou um remake em 2006) criou o conceito de “apocalipse-zumbi” e modelou a estética do subgênero. O filme desamarrou os mortos-vivos das concepções religiosas, promovendo a secularização dos zumbis, e os transformou em metáforas sanguinolentas para abordar os problemas políticos, os conflitos sociais e a falência do estado e da família tradicional. Os zumbis de Romero são assustadores, mas o verdadeiro perigo reside nas relações crescentemente tensas que vão se estabelecendo entre os sobreviventes. Os conflitos humanos são mais mortais que as mordidas dos mortos-vivos.


Quem acha que filmes de zumbis são carnificinas de mau gosto, precisa rever suas opiniões. “Night of the Living Dead” é um filme político inserido numa narrativa de terror, conectado com as questões políticas e os movimentos pelos direitos civis daquele momento. Não é um filme fácil de ver. Não tem os atrativos dos efeitos especiais dos filmes mais recentes, como “A Guerra Mundial Z”, os atores carregam na dramaticidade e exageram nos gestos (tinham formação mais teatral) e o filme não usa de jogos de sedução e erotismo com o espectador explorando a sensualidade dos atores. É definitivamente um filme de outro mundo, feito para outro público com uma sensibilidade cinematográfica distinta da nossa. Os personagens não são heroicos, são homens e mulheres comuns refugiados numa casa cercada por mortos-vivos, presos a uma situação de desespero e confinamento, lidando com os conflitos que vão surgindo.




2.      Dawn of the Dead.

     “Dawn of the Dead” (“O Despertar dos Mortos”), lançado em 1978, segue uma linha um pouco diferente. A metáfora desta vez é dirigida contra o consumismo. Os efeitos do apocalipse-zumbi assumem proporções bem maiores do que no primeiro filme. A sequência inicial é no pacato subúrbio de Milwaukee, Wisconsin. Uma enfermeira (Sarah Polley) chega em casa depois de um dia duro de trabalho. O casal dorme e na manhã seguinte sobrevém o pesadelo. Uma garotinha do bairro entra na casa da enfermeira (Ana) e, sem mais nem menos, ataca o casal. Ana foge, entra no carro e sai em disparada, deixando para trás o marido zumbi e o bairro mergulhado no pânico e no terror. Ana e um grupo de sobreviventes, reunidos ao acaso, se refugiam num shopping para não serem devorados por zumbis famintos. O mundo que eles conheciam desabou. As pessoas estão por si mesmas. Não há mais leis, famílias, dinheiro, escolas, polícia, lares. Não existe autoridade. Em situações como esta, sugere o filme, os indivíduos se mostram sem os disfarces morais e as máscaras sociais habituais. Ao invés da ética e dos códigos de comportamento, resta a luta a qualquer custo para escapar da morte. Os sobreviventes se organizam como podem para continuar vivos. Depois de se abrigar, e conseguir manter os zumbis do lado de fora, o grupo se entrega aos deleites do templo do consumo e saqueia orgiasticamente as lojas de departamentos. Presos num shopping, com tudo a disposição e sem ninguém para lhes impedir, devoram, num ímpeto consumista, tudo o que está ao seu alcance. Por um momento, esquecem-se do pesadelo. Experimentam momentos daquela felicidade paradoxal (Lipovetsky) que embala os sonhos de consumo, mas que logo se desfaz. Depois das orgias de consumo sobram o tédio, o vazio, as ressacas morais e a presença incômoda do outro. As pessoas que escaparam da morte devoram umas as outras num jogo impiedoso de egoísmos, julgamentos, mesquinharias e falsidade.



O filme é ambientado nas imediações e no interior de um shopping center. Os shoppings tiveram seu alvorecer nos Estados Unidos na década de 1960. Romero recria, a sua maneira, o clima de entusiasmo generalizado e histeria em massa que marcou o surgimento destes espaços. Centenas de zumbis cercam o lugar – que frequentavam antes de morrer – tentando entrar para satisfazer a insaciável fome. Depois de entrar, os mortos-vivos andam de um lado para outro por corredores, galerias e escadarias, e empurram carrinhos carregados de produtos que não vão usar. Emblemático!



3.      Day of the Dead. 

     “Day of the Dead” é o ultimo filme da trilogia “Dead Series”, de Romero. O filme é de 1985. Algum tempo depois dos acontecimentos de “Dawn of the Dead”, os zumbis se espalharam pelo mundo. Nos Estados Unidos apenas uma base subterrânea fortificada nos everglades da Flórida abriga um grupo de cientistas e militares que realizam experiências com mortos-vivos para encontrar a cura para a epidemia. O cientista chefe (Dr. Logan) acredita que os zumbis podem ser treinados por meio de técnicas disciplinares e serem convertidos em criaturas dóceis. Bud não é um zumbi qualquer. Ele é um produto do saber científico e de estratégias disciplinares. Primeiro, ele tem um nome. O nome o individualiza e o distingue das figuras anônimas e indistintas que se arrastam nas hordas anárquicas. Segundo, ele foi escolhido e nomeado pelo Dr. para ser submetido aos experimentos científicos visando dotá-lo de alguma subjetividade para que possa ser disciplinado e controlado. Os laços entre disciplina, subjetividade e controle são evidentes. Os exercícios de repetição e as técnicas de punição e recompensa insistentemente empregados pelo Dr. objetivam domesticar o zumbi e construí-lo como um indivíduo capaz de responder a estímulos e comandos. Controlar Bud significa disciplinar seu apetite irrefreável e fazê-lo sujeitar-se a alguma regra (Recomendo um texto sobre este filme, publicado no blog Ensaios Ababelados).



Os personagens confinados no abrigo militar são simbólicos e representam, não por acaso, as forças armadas, o saber médico-científico e as pessoas comuns. Os militares, sádicos ao extremo, querem simplesmente eliminar os zumbis. Os cientistas, opondo-se à truculência dos soldados, querem estudar as criaturas para encontrar uma forma de controlá-las por meio de experimentos científicos. Os militares, abusivamente autoritários, desprezam as intenções dos cientistas e se impõem pela força. Em meio ao caos as duas forças antagônicas e disciplinares – o poder militar e o saber científico - tentam, cada uma a sua maneira, impor uma ordem, uma disciplina. As massas de zumbis (creio que neste caso o conceito de massa funciona perfeitamente), sem organização, sem direção e sem subjetividade, representam a negação da ordem e dos jogos de poder. Eles são apenas potência primitiva, cujo fim último de sua existência é comer. O (não)ser do zumbi se resume a um apetite incontrolável. As pessoas comuns, no meio do fogo cruzado entre militares e cientistas, desejam apenas continuar vivendo. Presos entre o pesadelo dos mortos-vivos e as disputas entre os vivos, apenas sobrevivem. Os desentendimentos entre os personagens, e as disputas pelo poder e o controle do abrigo, tornam impossível a união pela sobrevivência. 


A utopia disciplinar do Dr. Logan foge do controle. O esforço para reinventar a ordem por meio do saber médico-científico é literalmente devorado pela desordem ontológica que as hordas de zumbis carregam. O poder e o saber que instituíram a ordem do mundo foram subjugados pelo apetite primitivo que não reconhece regras, valores, instituições, e que não atende a nenhum estímulo a não ser o desejo imanente, incontrolável e inconsciente de comer. Potência não normatizável, movida por necessidade pura, o zumbi funciona como o elemento desagregador da sociedade disciplinar. É o mais autêntico monstro do século XX. Um monstro coletivo implacável e indiferente. Uma multidão desmemoriada e destituída de moralidade. Massa amorfa, faminta, anônima e putrefata que se desloca lentamente e vai engolindo o mundo a sua volta. 


George Romero estabeleceu a linguagem, a estética, os clichês e os subtextos críticos deste subgênero de filmes de terror. Os zumbis ganharam aspectos mais verossímeis e mais assustadores e passaram a representar a ameaça imanente à ordem social. O apocalipse-zumbi, a sombria e secular invenção de Romero, é a dissolução da civilização e um retorno à animalidade. Os mortos herdaram a terra, mas não pretendem prestar contas a deus. 


O eixo da narrativa nos três filmes gira em torno de grupos de sobreviventes que se organizam para resistir às hordas famintas de mortos-vivos. Nos três casos a ameaça ao grupo está no próprio grupo. Os zumbis formam um pano de fundo assustador, mas nada que se compare as relações de poder, ao egoísmo e ao oportunismo rasteiro que emergem na dinâmica do convívio entre os membros do grupo. Focando no grupo, ou nas interações que vão se estabelecendo entre os indivíduos, Romero desfere duras críticas à sociedade americana das décadas correspondentes aos três filmes. Como escreveu um crítico norte americano, no mundo de Romero o zumbi, distante de suas raízes haitianas, é muito mais do que uma criatura em busca de intestinos quentes para saciar a fome. O zumbi é uma força para a transformação social.





sábado, 10 de agosto de 2013

GUANTÁNAMO: O Pesadelo kafkiano nos Porões Obscuros da Democracia Norte Americana.



GUANTÁNAMO: O Pesadelo kafkiano nos Porões Obscuros da Democracia Norte Americana.




"Assim, não há possibilidades de engano. As nossas autoridades, até onde eu conheço, e os meus conhecimentos não vão além das categorias mais baixas, não são daquelas que andam atrás das culpas das pessoas, mas, como diz a Lei, são forçadas pelos delitos a enviarem-nos a nós, os guardas. É assim a Lei. Como poderá haver enganos?"



(Fala do personagem Franz, guarda do presídio do romance “O Processo”, de Franz Kafka).









As notícias que nos chegam com alguma frequência da prisão de Guantánamo são perturbadoras, embora não nos causem surpresa. Os relatos de presos publicados no The New York Times ou os documentos vazados pelo Wikileaks deixam entrever uma realidade brutal e um completo desprezo pelo Estado de Direito, dignos dos piores pesadelos imaginados na ficção Kafkiana. 


Não é nenhuma novidade falar do “realismo” singular e da atualidade de Kafka. Realismo, no sentido estético, que traduz um olhar minucioso e crítico sobre o mundo, e o desejo de mostrar, com imagens deformadas e absurdas, as coisas como elas são (Não confundir com a pretensão conservadora positivista de descrever o mundo como ele realmente é). Numa conversa com um amigo sobre uma exposição de obras cubistas e pós-cubistas de Picasso, Kafka disse que “a arte é um espelho que adianta, como um relógio, não as nossas formas, mas as nossas deformidades”. O “realismo” de Kafka, apontado para as deformidades do mundo e a incomunicabilidade entre as pessoas, é do tipo que comporta a indignação e intervém no sentido de sacudir o conformismo. 


Os personagens kafkianos e as situações inesperadas em que repentina e inexplicavelmente se encontram poderiam ser facilmente identificados com situações dos nossos dias. O homem do campo, da fábula “Diante da Lei”, poderia ser substituído por um aposentado do INSS sem muita dificuldade. Alguns prisioneiros de Guantánamo, do mesmo modo, parecem viver o pesadelo do personagem Josef K, de “O Processo”. No romance, escrito por Kafka em 1914 e publicado postumamente em 1925, o personagem Josef K acorda num belo dia e, sem que lhe exponham os motivos, é levado à prisão e submetido a um intrincado processo por um crime que não lhe é revelado. A individualidade de K fora sequestrada por uma lei impessoal e distante, expressão de uma coletividade anônima e sem rosto. Impotente diante de um poder invisível e hierarquizado, cujas manifestações mais próximas são os guardas da prisão, K vê sua vida se esvair num longo e incompreensível processo.


Quantos prisioneiros em Guantánamo não estão nesta mesma condição? Presos numa malha de poderes invisíveis, são mantidos sem acusação formal, sem direito a um julgamento e a informações, sem saber qual é afinal o seu crime ou do que exatamente estão sendo acusados. Como no romance “O Processo”, o Estado de Direito não existe em Guantánamo. “N´O Processo a ficção básica é a do Estado de Direito” (Luiz Costa Lima). Em Guantánamo a ausência desta situação jurídica é a realidade básica. 




A vaga acusação de terrorismo, em alguns casos sem provas concretas, é tão genérica que de modo algum autoriza a prisão dos supostos suspeitos. Mas o que manda, na ausência do Estado de Direito, é a lógica da suspeição. A suspeição produzida e a delinquência presumível. Foucault, estudando as instituições penais do século XIX, percebeu uma cadeia de discursos sobre a delinquência que identificaria, por um exame das tendências psicológicas dos suspeitos, um criminoso antes mesmo do crime ser cometido. No mundo pós 11 de setembro a lógica da suspeição em ação se anteciparia ao crime e identificaria os suspeitos pelos sobrenomes, pelo país em que vive, pela religião que professa e pelos traços fisionômicos. Um iemenita de passagem pelo Paquistão em 2001, depois de uma temporada no Afeganistão, seria um suspeito em potencial a procura de um crime. Neste caso, meus caros, infelizmente, não estamos no campo da ficção.



Samir Naji al Hasan Moqbel, um iemenita de 35 anos, um dos tantos Josef K de Guantánamo, afirma que está preso há 11 anos: "Eu poderia estar em casa há anos - ninguém seriamente acha que eu sou uma ameaça -, mas eu ainda estou aqui. Há anos os militares disseram que eu era um 'guarda' de Osama bin Laden, mas isso não fazia sentido, como algo tirado de filmes americanos que eu costumava assistir". Vivendo uma típica novela kafkiana da vida real, Moqbel contou, num relato publicado no The New York Times, que  “viajou para o Afeganistão no início dos anos 2000 após ouvir de um amigo de infância que poderia melhorar sua condição de vida no país. Ele diz que descobriu que não havia empregos apenas quando chegou ali, mas que não tinham dinheiro para voltar para casa. Quando os Estados Unidos invadiram o Afeganistão em 2001, ele conseguiu ir para o Paquistão. "Os paquistaneses me prenderam quando eu pedi para ver alguém da embaixada do Iêmen. Eu fui então enviado para Kandahar (no Paquistão), e colocado no primeiro avião para Gitmo (termo que se refere a Guantánamo).” 




Vale lembrar as palavras de Josefina Salomon, porta-voz do Programa de Combate ao Terrorismo da Anistia Internacional: “Guantánamo não faz do mundo um lugar mais seguro e sim um lugar onde qualquer um pode ser pego de sua casa, colocado em um avião, preso em um centro de detenção sem nem ao menos saber do que é acusado e ficar anos sem processo legal”.


A prisão, pelo que podemos ler nos depoimentos dos presos, é um pesadelo kafkiano. Os atormentados personagens fictícios de Kafka encontram em Guantánamo correspondentes do mundo real que nada deixam a desejar. Os prisioneiros do império, assim como os personagens de Kafka, encontram-se impotentes diante de um poder tentacular, arbitrário, labiríntico e atrozmente desumano que lhes sequestra a vida, a dignidade e escarra no Estado de Direito. Um poder que não nomeia claramente o crime, usa e abusa de métodos ultraviolentos para obter as suas “verdades”  e não dá aos sujeitados o direito de defesa. Afinal, em Guantánamo a culpa é indubitável. A vida dos presos encontra-se em suspenso. Estão num limbo jurídico, não são julgados nem libertados. Nem direito a greve de fome eles tem. Os zeladores da prisão injetam alimento por sondas contra a vontade dos presos.


De acordo com o relato de Moqbel, que em março de 2013 se encontrava hospitalizado em decorrência de uma greve de fome, oito homens das Forças de Reação Extrema o amarraram numa cama e o forçaram a se alimentar através de uma sonda: "Eu passei 26 horas neste estado, amarrado a uma cama. Durante este tempo, não me permitiram ir ao banheiro. Eles inseriram um catéter, o que foi doloroso, degradante e desnecessário. Eu não recebi permissão nem para rezar". Esta técnica ambivalente de preservação da vida dos presos, que também funciona como mecanismo de punição e desumanização, lembra a terrível máquina de tortura e extermínio detalhadamente descrita na “Colônia Penal”. 


 Guantánamo é verso e reverso, ao mesmo tempo estranho e familiar, da democracia norte-americana. É o porão da democracia, supondo que este porão, mantido longe da vista, dê sustentação arquitetônica a casa, que esta à vista. Porão/prisão do império, Guantánamo desafia o Direito Internacional, faz pouco caso do Estado de Direito e revela os laços indissociáveis entre democracia, violência e intolerância na história dos Estados Unidos. Produto direto do realismo neoconservador da doutrina Bush, a prisão erguida em território alheio é a melhor tradução da arrogância do império e do desrespeito às leis internacionais, não apenas da administração Bush, mas da forma como os Estados Unidos historicamente conduzem e perseguem seus objetivos no plano internacional.