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segunda-feira, 13 de julho de 2015

“INFÂNCIA ROUBADA”: SEQUESTRO E TORTURA DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES NA DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA.

“INFÂNCIA ROUBADA”: SEQUESTRO E TORTURA DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES NA DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA.



A situação política do país é delicada. Velhos fantasmas voltam a assombrar nossa jovem democracia. Como há cinquenta anos, pessoas que se dizem defensoras da família e dos valores cristãos saem às ruas para pedir abertamente uma intervenção militar. Não duvido das “boas intenções”, afinal, elas querem o que consideram o melhor para o país, não é mesmo. Mas sabem elas o que realmente significa uma intervenção militar? A meu ver, estas pessoas têm uma perspectiva idealizada e estreita do passado que querem de volta e uma visão delirante do presente.

Precisamos de uma intervenção urgente, mas não dos militares. A intervenção que o país precisa é a dos pesquisadores, dos historiadores, dos sociólogos, dos antropólogos, dos filósofos, dos cientistas sociais. Não do tipo classista, partidária e autoritária que fez Marilena Chauí, declarando ódio à classe média. Precisamos de uma intervenção democrática, humanista, inteligível, capaz de estabelecer um diálogo com a sociedade e esclarecer (não apenas para os seus pares ou para pontuar no lattes) sobre os perigos que rondam nossa democracia. Esclarecer sobre o passado recente, tão vivo entre nós, significa confrontar visões mistificadoras sobre o regime militar presentes no senso comum.



A Comissão da Verdade, embora desprestigiada e desacreditada por opositores do governo que a constituiu, vem prestando um importante trabalho investigativo sobre a violação dos direitos humanos no Brasil. Um dos trabalhos mais importantes da Comissão é tirar o véu do esquecimento sobre o passado recente (décadas de 1960 e 1970) e dar voz às vítimas da ditadura que nunca foram ouvidas. Trazer a tona os testemunhos de pessoas que, mesmo não sendo militantes políticos, sofreram sob a ditadura, é uma das melhores maneiras de esclarecer o passado e exorcizar o fantasma da intervenção militar. Lembremos aos autoproclamados defensores da família brasileira, que querem os militares de volta, que muitas das pessoas que sofreram agressões, físicas e simbólicas, eram crianças e adolescentes que tinham entre 1 e 16 anos de idade.

O livro lançado em 2014, organizado pela Comissão da Verdade de São Paulo, intitulado “Infância Roubada”, traz relatos de 40 pessoas, que tem hoje entre 40 e 60 anos, que foram na década de 1970 presas com os pais. Os relatos são estarrecedores e revelam a face mais brutal da ditadura. Taxadas de “miniterroristas”, ou acusadas de serem filhos de terroristas, dezenas de crianças foram presas e sofreram diversas formas de violência. Muitas delas tornaram-se adultos com enormes dificuldades de socialização. Nestes casos, a ditadura mutilou brutalmente laços familiares, interrompeu a infância e produziu traumas individuais e familiares profundos.

As formas de violência praticadas contra as crianças, reveladas pelos depoimentos, podem ser agrupadas da seguinte maneira:

Tortura no ventre da mãe.

Várias mulheres, militantes e esposas de militantes, foram torturadas durante a gestação. As torturas provocaram hemorragias e, na maioria dos casos, abortos forçados. A estudante Regina Maria Toscano, de 23 anos, foi torturada grávida com choques elétricos, inclusive na vagina, e perdeu a criança. Em alguns casos, mulheres como Dinalva Oliveira Teixeira, foram torturadas grávidas e assassinadas.

Tortura dos pais na presença dos filhos.

Algumas crianças presenciaram a tortura e a morte dos pais. Antonio Lucena foi assassinado na frente dos filhos de 3 e 6 anos, enquanto o filho mais velho, de 18 anos, era torturado no DOI-CODI de São Paulo.

Tortura física e molestação de crianças.

Várias crianças foram submetidas a sessões de tortura como estratégia para forçar os pais a revelar o paradeiro dos seus companheiros. Gino Ghilardini, de 8 anos, foi torturado junto com a mãe para forçar o pai, Luis Ghilardini, comunista assassinado sob torturas no DOI-CODI/RJ, a entregar os companheiros. Em depoimento à Comissão da Verdade, Gino disse que ouvia o “pai ali perto gemendo, (...) escutava, mas não podia fazer nada”. 

O gaúcho Ivan Seixas foi preso aos 16 anos e torturado, enquanto ouvia os gritos do seu pai na sala ao lado.

Banimento de crianças.

Crianças foram presas com os pais, fichadas como subversivas e consideradas perigosas à segurança nacional. Foram banidas e cresceram no exterior. Damaris Lucena, esposa de Antonio Lucena, foi presa, torturada e banida do país juntamente com os filhos pequenos.

(Para uma visão mais detalhada dos diversos casos investigados, ver: INFÂNCIA ROUBADA: crianças atingidas pela ditadura militar no Brasil).



 Na Argentina o tratamento dado às crianças, embora igualmente inaceitável, foi outro. Diferentemente dos militares brasileiros, os argentinos viam as crianças como inocentes, que podiam ser moldadas e educadas de acordo com as expectativas oficiais. Por isso, os filhos(as) dos presos políticos eram entregues para militares ou simpatizantes do regime para adoção (aproximadamente 500 crianças foram separadas dos pais entre 1976 e 1983 na Argentina). Os militares brasileiros, pelo que se depreende dos seus atos, entendiam que o comunismo estava no sangue das crianças. Era uma doença transmitida por herança genética. Se na argentina as mães grávidas eram tratadas com algum cuidado até o nascimento da criança, aqui as mães eram torturadas com os filhos no ventre. Foi o que aconteceu com Hecilda, uma das depoentes do livro, torturada grávida na presença do marido. Antes do filho nascer, um militar teria dito a ela que “filho dessa raça não deve nascer”. O sujeito, e o regime que o investia de tal poder, julgavam ter o direito sobre a vida e a morte. Imbuídos de um peculiar messianismo de caserna, atávico em alguns seguimentos das forças armadas desde a proclamação da república, os heroicos militares praticavam uma intervenção saneadora no presente para salvar o futuro do suposto perigo comunista.

A forma como as crianças foram tratadas, sugere que os militares as viam como perigosas, potencialmente criminosas, e pretendiam realmente cortar o mal pela raiz. Ou era isso, ou eles eram assustadoramente sádicos e perversos! Não descartaria, em alguns casos, um misto das duas coisas. Apostando na hipótese do perigo infantil, somos levados a crer que os militares supunham ser o comunismo um problema congênito, e que a intervenção na infância interromperia a cadeia da transmissão da genética comunista. Lombrosianos tardios, os militares criminalizaram a infância, mutilaram a inocência, e produziram um monumento, feito de violência e covardia, em memória da ditadura. 

É lamentável assistir, com incômoda sensação de impotência, a ressureição de um passado obscuro e violento, requintado de maneira charlatanesca e (re)apresentado como solução messiânica para os problemas do país. Problemas, diga-se de passagem, em grande parte fruto da desinformação e da imaginação conspiratória. Igualmente lamentável é constatar que as chances de sensibilização dos sujeitos que querem os militares de volta são quase nulas. São forças cegas e surdas, como abstrações erráticas, que marcham pelas ruas do Brasil, tão seguras de si próprias que não se abrem sequer ao diálogo. É impossível dialogar com abstrações (Camus). Li na net alguns comentários referentes às matérias sobre o livro “Infância Roubada” que são representativos e parecem traduzir perfeitamente bem o universo mental desta parcela da população brasileira. Alguns afirmam que tudo não passa de invenção da esquerda, e que a Comissão da Verdade é revanchista e só investiga os militares. Outros dizem ter pena das crianças que vivem nas ditaduras Cubana e Venezuelana, das quais o governo do PT é cúmplice.  Outros insinuam que estão usando as crianças para atacar os militares e defender o governo Dilma. Os mais exaltados dizem que os depoentes estão mentindo e pousando de vítimas para conseguir uma aposentadoria do governo. Para a maioria é tudo mentira. De um jeito ou de outro, os comentários tentam desqualificar e invalidar os testemunhos e os trabalhos da Comissão da Verdade, vista por eles como um antro de comunistas. Os argumentos são simplórios, as comparações são débeis, mas eles estão aí, opinando, e expondo, em português sofrível, suas certezas inabaláveis! Mas não é este o principal problema. Devemos estar atentos para o uso político que certos grupos bastante articulados fazem destas manifestações fanáticas, como se fez em 64, para avançar com teses antidemocráticas e justificar manobras políticas oportunistas.


Mas o que mais preocupa, como lamentou Albert Camus em 1946, é “a boa vontade de toda a gente. Todos pensam que a verdade que possuem é a que convém à felicidade dos homens”. A conjunção das boas vontades levou, no tempo de Camus, ao terror da segunda guerra. A boa vontade dos militares e dos cidadãos de bem, que se diziam defensores da família, da moral e dos bons costumes, e que queriam ver o Brasil livre da ameaça comunista, a qualquer preço, arrastou o nosso país para uma ditadura covarde que não poupou nem as crianças. Mas todos eram movidos pela boa vontade. Todos queriam um Brasil melhor.

Para onde a soma das boas vontades que explode hoje em verde e amarelo pelas ruas, com apelos sinceros pelo retorno dos militares, vai nos conduzir? Escutem as crianças de ontem. Elas carregam os segredos do futuro.




sexta-feira, 10 de julho de 2015

O JESUÍTA LASCIVO DE ANAÏS NIN: um conto erótico freudiano sobre os colégios jesuíticos do Brasil colonial.

O JESUÍTA LASCIVO DE ANAÏS NIN: um conto erótico freudiano sobre os colégios jesuíticos do Brasil colonial.

Para Vivian, que me ensinou a ler Anaïs Nin.




Anaïs Nin, à sua maneira, abriu uma janela erótica para os tempos coloniais ao explorar, no conto O Internato, um ambiente de sedução, desejo e sexualidade nos colégios jesuíticos do Brasil antigo. Quem já não imaginou que por trás da aparência austera e severa dos jesuítas e das tradicionais escolas frequentadas por meninos de famílias de boa linhagem, o sexo pulsava, gritava, enrijecia? Se nas narrativas históricas e hagiográficas, protagonizadas por Nóbrega, Anchieta, Vieira, Benci e Antonil, os jesuítas são sujeitos históricos assexuados ligados à colonização, a educação e a evangelização, na ficção erótica de Anaïs eles perdem a aura de santidade e o escudo protetor da ordem de santo Inácio e se convertem em homens comuns, tentados pelo desejo, pela beleza e pelo frescor dos corpos dos meninos deixados sob sua orientação.

O conto foi escrito no início da década 1940, quando Anaïs Nin, incentivada por Henry Miller, escrevia pequenas histórias eróticas para um cliente desconhecido, a um dólar a página, para sobreviver. O que poderia parecer uma promiscuidade literária (escrever histórias eróticas por dinheiro para satisfazer os caprichos de um cliente misterioso) foi, na verdade, uma oportunidade para Anaïs pensar as particularidades de uma escrita feminina sobre o sexo, numa época em que só os homens escreviam sobre o assunto. O exercício lhe permitiu também jogar com as descobertas psicanalíticas nos domínios da sexualidade, explorando, por vezes de maneira caricatural e exagerada (rabelaisiana eu diria), diversas parafilias e narrativas de experiências sexuais que circulavam ao seu redor. Anaïs era entusiasta das teorias freudianas sobre a sexualidade e fora assistente e amante de Otto Rank, discípulo de Freud. A psicanálise, diluída nas entrelinhas, já que o cliente dispensava análises e poesia, atravessa os contos de ponta a ponta.

O conto desvela o cotidiano mundano de uma escola da Companhia de Jesus e o voyeurismo de um professor jesuíta (padre Dobo) de sangue indígena, olhos penetrantes e lábios licenciosos, que zelava pela boa educação dos meninos, vigiando seus corpos antes de dormir e policiando suas mentes no confessionário. Frequentemente os meninos notavam, inocentes ou maliciosos, uma saliência que teimava em aparecer sob a batina marrom do professor. A ereção vinha nas horas mais improváveis, lendo Cervantes, por exemplo, ou quando observava os meninos. Um deles em particular, loiro e “com olhos e pele de uma menina”, mexia com as saliências do padre.  A coleção particular de livros era um pretexto para Dobo ficar a sós com o menino preferido e mostrar-lhe as reproduções de cerâmica inca com homens se enfrentando. Em algumas representações “um membro comprido saia do meio de um homem e penetrava o outro por trás”. Embora Anaïs não dê detalhes, e nisto reside a eficácia erótica dos contos, a situação toda é poderosamente sugestiva. Como não imaginar o deleite e o prazer do padre acompanhando as reações do delicado menino às sugestões das imagens? Mas não era só este menino que despertava a lascívia do padre. Havia outro, rebelde, corpo esbelto, à semelhança de um “príncipe mouro”, que se recusava a dormir de camisola. Todas as noites, depois de se meter embaixo das cobertas, tirava secretamente a roupa e dormia nu. Padre Dobo, que fazia vigílias noturnas diárias para ver se os meninos não estavam se masturbando, quando chegava à cama do “príncipe mouro”, erguia as cobertas lentamente para espiar as feições do corpo. Se o garoto acordasse, o padre ralhava: “Vim ver se você estava dormindo sem o camisolão de novo”. Mas se não acordasse, olhava demoradamente o belo corpo adormecido.

Anaïs poderia eleger como protagonista do conto um dos padres seculares dos tempos coloniais, conhecidos pela “libertinagem” e pelo gosto por “sacanagens”. Não faltariam exemplos. Padre Nóbrega, já na chegada à colônia em 1549, escandalizou-se com o comportamento do clero “baiano” e “pernambucano”. Em carta a um companheiro, escreveu: “A evitar pecados esse clero não veio”. Os padres, não todos, viviam soltos, amancebados com as índias, tentando as mulheres casadas ou cometendo “tocamentos torpes” e “jogando as punhetas” com rapazes (Ver Ronaldo Vainfas. Confissões da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 1997). As crônicas coloniais e as cartas jesuíticas ofereceriam um variado banquete à Anaïs sobre a vida sexual do clero colonial. Todavia, criar uma história erótica com personagens de conhecida má reputação sexual talvez não fosse a melhor maneira de mexer com as fantasias eróticas do seu cliente. Por mais que o sujeito exigisse histórias cruas, sem adornos poéticos e filosofias, Anaïs não se satisfazia com obviedades e lugares comuns. Emprestava certa delicadeza, um toque feminino e muita inventividade, segundo ela própria, às suas histórias. A sacada no conto foi erotizar a figura do jesuíta, cercada por uma aura de santidade, lendária pela rigidez moral e pela sublimação dos prazeres do corpo.

O jesuíta de Anais, diferentemente dos “donzelões intransigentes” e carolas pintados por Gilberto Freyre, é um homem com o sexo vivo, saliente por baixo da batina, e que usa o confessionário para estimular e se deliciar com as narrativas e sonhos eróticos dos meninos. Padre Dobo criou táticas para exercitar seu voyeurismo no interior de uma instituição moralmente rígida sem chamar muito a atenção. Usava o poder que o colégio lhe conferia como educador e as cerimônias e sacramentos católicos para tirar uma casquinha dos meninos e viver secretamente os seus desejos. Numa verdadeira subversão das práticas católicas, o confessionário se convertia em esconderijo e refúgio, espécie de cantinho escuro dos prazeres, para manter os segredos íntimos do padre longe do campo de visão dos seus pares.

Ao invés de expor abertamente as práticas do padre, Anaïs ofereceu sugestivas imagens para mexer com a imaginação do leitor. A descrição da cerimônia de lavação do pênis em água benta dos meninos que se masturbavam, por exemplo, é bastante econômica. Sabemos que era realizada à noite e em grande segredo. Não ficamos sabendo o que de fato acontecia, mas imaginamos muitas coisas. Estariam aí as sutilezas e particularidades do tratamento feminino e de uma “escrita feminina” (expressão de Henry Miller) sobre a sexualidade?


Anaïs espiou o passado colonial pelo buraco da fechadura e imaginou, freudianamente, suas intimidades secretas, proibidas. O final do conto é o desfecho exemplar de uma tese freudiana imaginada no interior de uma instituição disciplinar e controladora da sexualidade. Um grupo de dez meninos se perde no mato durante um passeio escolar e, sem mais nem menos, jogam o “delicado menino loiro” na grama, sem roupas, de barriga para baixo, e usam-no como uma “prostituta”. Embora o garoto gritasse e esperneasse, foi agarrado à força e todos satisfizeram suas vontades.  O desejo contido e reprimido pela educação jesuítica castradora explodiu em fúria. O desejo reprimido pela rígida formação católica, mas secretamente estimulado pelo padre durante as confissões, se manifestou de forma agressiva e violenta sobre o garoto com traços femininos.

A imaginação erótico-literária de Anaïs viu no Internato jesuítico muito mais do que um espaço educacional, guiado pelo Ratio Studiorum visando à formação cristã do homem, destinado aos meninos de boas famílias. O colégio, para além do ideal cristão e pedagógico, era também um espaço de voyeurismos, de olhares furtivos, desejantes, de paixões silenciosas, de aprendizagens paralelas, de descobertas sobre a sexualidade.

O jesuíta de pau duro inventado por Anaïs é a antítese perfeita de Nóbrega e Anchieta. É o ponto fora da curva da Companhia de Jesus. É o lado menos heroico, virtuoso e mais humano dos jesuítas. Imagino padre Dobo, verdadeiro soldado de Afrodite na Terra dos Papagaios, travando seus próprios combates entre os teimosos prazeres da carne e o opressor modelo de castidade e santidade de Inácio de Loyola e Francisco Xavier.

Olhando da perspectiva da Companhia de Jesus, padre Dobo era a erva daninha indesejada que comprometia a vinha de deus. Da perspectiva do padre, no entanto, ele estava no jardim das delícias (não o de Hieronymus Bosch), se alimentando da beleza e do frescor das delicadas flores que germinavam sob seus cuidados.

Vale lembrar que nos tempos coloniais a infância e a adolescência não tinham os mesmos significados que têm hoje. A infância, como objeto discursivo, ou a criança, como um ser social, portadora de direitos, simplesmente não existiam. O crime de pedofilia, que atormenta a igreja católica contemporaneamente, portanto, não se aplica aos deslizes morais do padre Dobo. Seus pecados, aos olhos da moral católica da época, eram outros.


sexta-feira, 29 de maio de 2015

“DITADURA MILITAR” OU “DITADURA CIVIL-MILITAR”? Mais que uma questão terminológica, a urgência do debate.

“DITADURA MILITAR” OU “DITADURA CIVIL-MILITAR”? Mais que uma questão terminológica, a urgência do debate.




Porque os civis nos chamavam de covardes. Eu fui chamado de covardes várias vezes. Fardado. Gente desconhecida na rua da Praia, que é a rua do Ouvidor em Porto Alegre. “Vocês são uns covardes. O que é que estão esperando?” Cansei de ouvir. “Estão esperando que o Stalin venha sentar aqui em Brasília”. Era nesse tom. “Quer dizer, nós fomos atrás do povo.”
(General Carlos Alberto da Fontoura. Depoimento de 1993 sobre o apoio dos civis ao golpe de 64).

Participamos da Revolução de 1964, identificados com os anseios nacionais de preservação das lnstituições democráticas, ameaçadas pela radicalização ideológica, greves, desordem social e corrupção generalizada. Quando a nossa redação foi invadida por tropas anti-revolucionárias, mantivemo-nos firmes em nossa posição. Prosseguimos apoiando o movimento vitorioso desde os primeiros momentos de correção de rumos até o atual processo de abertura, que se deverá consolidar com a posse do novo presidente. 
(Roberto Marinho. Editorial do Jornal O Globo, 1984).

Estava pensando cá com meus botões, na década de 70, era filha de pobre e consegui cursar um cursinho de pré-vestibular caríssimo e fazer 4 anos de faculdade numa universidade particular, por ter ficado como excedente no curso de Medicina da UFRJ. Como não quis prestar vestibular no ano seguinte, resolvi fazer Biologia na FTESM. O que hoje não me arrependo 1 minuto. Isso foi na ditadura militar. Paguei todas as mensalidades no dia certo, sem ter entrado em nenhum plano do governo. Ao levar meu diploma na mão, não devia um centavo. Hoje no "governo socialista", o pobre não consegue nem pagar o cursinho de pré-vestibular... As faculdades particulares "cheias de alunos"... que abandonam o curso no meio do caminho por falta de recurso para pagar seus créditos.
(Leila de Souza Bastos. Bióloga e professora. 2013).



A “ditadura militar”, ou “civil-militar”, está longe de ser um assunto do passado que deva ser esquecido. A memória e os efeitos da ditadura na sociedade e na cultura política brasileira estão mais vivos do que nunca e dividem as opiniões, acadêmica e socialmente. Os trabalhos da Comissão da Verdade e o desejo de retorno dos militares por parte de setores da sociedade brasileira, manifesto nas recentes manifestações de rua contra o governo, nos dão bem a medida da centralidade do tema no debate político atual. Não podemos ignorar que para uma parcela crescente deste fenômeno sociológico mal compreendido que chamamos de classe média brasileira, os militares que derrubaram o presidente João Goulart, sob a acusação de suposta esquerdização do governo, são verdadeiros heróis nacionais. Os admiradores dos militares já não têm mais vergonha de mostrar a cara, nas ruas e nas redes sociais, e exibir cartazes pedindo uma nova “intervenção militar”.


Na última década e meia, marcada pela ascensão de governos de esquerda no Brasil e na América do Sul, as ditaduras, como era de se esperar, ganharam ainda mais destaque nos debates políticos. Nesse contexto, no Brasil, surgiu a expressão “ditadura civil-militar”, empregada por acadêmicos, ativistas e, em menor escala, por jornalistas, para designar com mais precisão o golpe e a ditadura imposta ao Brasil em 1964. A expressão consagrada na literatura, nos meios jornalísticos, e de uso corrente na sociedade até então, era “ditadura militar”. Mas afinal, o que de importante a nova expressão traz e em que medida ela nos ajuda a entender melhor o golpe e a ditadura?

O historiador Daniel Aarão Reis Filho é um dos mais enfáticos defensores do uso da terminologia “civil-militar”. Segundo Aarão, em artigo publicado em 2012: “Tornou-se um lugar comum chamar o regime político existente entre 1964 e 1979 de “ditadura militar”. Trata-se de um exercício de memória, que se mantém graças a diferentes interesses, a hábitos adquiridos e à preguiça intelectual. O problema é que esta memória não contribui para a compreensão da história recente do país e da ditadura em particular. É inútil esconder a participação de amplos segmentos da população no golpe que instaurou a ditadura, em 1964. É como tapar o sol com a peneira”. 

Aarão destaca as marchas de dezenas de milhões de pessoas, “de todas as classes sociais”, em apoio e depois em comemoração ao golpe. Participaram das marchas “a maioria dos partidos, lideranças empresariais, políticas e religiosas, e entidades da sociedade civil, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros (CNBB), as direitas”. Entretanto, existe “a obsessão em caracterizar a ditadura como apenas militar”. Quem se favorece disso? A memória atual, que sustenta que a ditadura foi apenas militar interessa as entidades civis que apoiaram a ditadura. Se ela foi “apenas” militar, “todas elas passam para o campo das oposições”. “Desaparecem os civis que se beneficiaram do regime ditatorial. Os que financiaram a máquina repressiva. Os que celebraram os atos de exceção. O mesmo se pode dizer dos segmentos sociais que, em algum momento, apoiaram a ditadura. E dos que defendem a ideia não demonstrada, mas assumida como verdade, de que a maioria das pessoas sempre fora - e foi - contra a ditadura”. A preservação desta memória, conclui Aarão, limita a compreensão das complexas relações entre ditadura e sociedade.

O historiador Carlos Fico sustenta um ponto de vista semelhante. Num evento em 2012, numa mesa organizada pela Comissão da Verdade intitulada “Antecedentes, contexto e razões do golpe militar”, Fico afirmou que “o golpe não foi militar, mas civil-militar”. Num artigo publicado no jornal “O Globo” de 2014, voltou ao tema e avaliou que o maior avanço da historiografia recente consiste na busca de objetividade em relação à ditadura. Graças ao “distanciamento histórico”, as novas abordagens nos lembram, baseadas em novas fontes documentais e perspectivas regionais, que “setores significativos da sociedade apoiaram a derrubada de João Goulart”. Os novos estudos comprovam, por exemplo, que a insatisfação das classes médias urbanas não era apenas resultado da “manipulação propagandística”, e que alguns estudantes apoiaram o golpe. “Por tudo isso, o golpe de Estado, outrora chamado de “militar”, tem sido melhor designado como “civil militar”. Essa perspectiva, de acordo com o historiador, é essencial, porquese entendermos o golpe apenas como o episódio que iniciou uma ditadura brutal, correremos o risco de construir leitura romantizada, segundo a qual a sociedade foi vítima de militares desarvorados. Quando a historiografia mais ousada se contrapõe a essa leitura vitimizadora, ela não está propondo um “revisionismo reacionário” que buscaria eximir de culpa os golpistas. Apenas se trata da reafirmação de algo óbvio: não há fatos históricos simples. Entender porque uma solução autoritária foi de algum modo aceita naquele momento pode servir para exorcizarmos a sociedade brasileira do autoritarismo que tantas vezes vitimou a história de nossa República”.

A historiadora Denise Rollemberg, numa entrevista ao “IHU-on-line” em 2009, sobre os 40 anos da morte de Carlos Marighela, numa linha argumentativa próxima da de Fico e Aarão, observou que: “Segmentos importantes da sociedade, não só das classes média e média alta, mas setores populares receberam de uma forma muito alegre a instauração do regime e apoiou o regime durante um bom tempo. Esta ideia de que a sociedade brasileira resistiu contra a ditadura, que a ditadura é uma questão dos militares e não da sociedade, é uma construção, a partir do fim dos anos 1970, que é memória e não história. É importante perceber que a ditadura não foi militar, mas civil e militar. Isto deve ser pensado para compreender porque a luta armada ficou tão isolada. Foi porque a sociedade foi muito participante da ditadura”. 

Longe de ser uma unanimidade, o uso da expressão vem despertando acalorados debates envolvendo pesquisadores e pessoas que direta ou indiretamente estão ou estiveram envolvidas com a ditadura. Os que se opõe à nova conceituação afirmam que o uso do termo “civil” descaracteriza a “ditadura militar”, tanto conceitualmente como politicamente. O jornalista Pedro Pomar, num artigo publicado em 2012 no “Brasil de Fato”, afirmou, em tom de reprovação, que virou moda o uso da expressão “ditadura civil-militar” “para designar o regime instaurado em nosso país por meio do golpe militar de março-abril de 1964”. Pomar considera a expressão um “modismo equivocado”. Ao propor a designação “civil-militar” “com a finalidade de garantir que não seja esquecida a participação dos civis”, por mais nobre que sejam as intenções, “termina-se por obter efeito inverso, qual seja, o de diminuir a responsabilidade dos militares, além de confundir a sociedade brasileira, já familiarizada com a expressão Ditadura Militar para designar esse terrível período da nossa história.” Além disso, arremata Pomar, “o termo civil também serve para designar o regime como autoritário, brando, negociado etc. Como se não fosse uma ditadura”, adverte o historiador Lincoln Secco”.

Vale também registrar um comentário ao artigo de Daniel Aarão enviado ao jornal “O Globo” pelo historiador Renato Luís do Couto Neto e Lemos. A “revisão interpretativa” sobre a ditadura é vista pelo historiador como a “reinvenção da roda historiográfica”. A expressão ditadura civil-militar, ao contrário de esclarecer, “constitui um freio na elucidação do seu sentido histórico, porque dilui na vaga categoria “civil” o conteúdo classista do golpe e da ditadura, sobejamente conhecido”. A ênfase no “apoio civil” ao golpe e a ditadura, apresentada como “novidade historiográfica”, pode desestimular os jovens historiadores de buscar a fundo os “poderosos interesses classistas” que presidiram àqueles acontecimentos. “Em suma, concluiu Renato Lemos, jogar o foco da análise de um processo de cruenta disputa política numa sociedade civil metafísica, descarnada, sem conexões com classes e categorias sociais portadoras de projetos classistas é induzir o respeitável público à mistificação da história. Uma abordagem que falseia o estado atual do conhecimento e não o faz avançar um milímetro sequer”.



“Ditadura Civil-Militar” não é um “Modismo Historiográfico”.

As duas formas de se referir à ditadura têm as suas legitimidades e, sobretudo, traduzem momentos e contextos distintos da reflexão histórica sobre o tema. A expressão “ditadura militar”, de um lado, está intimamente ligada à resistência a ditadura e a luta pela redemocratização. O uso da expressão, como contraponto a ideia de “revolução” empregada nos círculos de apoio ao regime, consagrou-se como denúncia da tomada de poder pela força e da imposição de um regime construído à base da cassação das liberdades democráticas e que usou da violência para reprimir as forças de oposição. A expressão “ditadura civil-militar”, de outro lado, embora sem perder de vista o teor crítico e de denúncia da ditadura, está mais conectada com as demandas recentes da sociedade brasileira e a necessidade de rever os conceitos e ampliar o olhar dos pesquisadores, e da sociedade, sobre a natureza do golpe e do regime ditatorial. Mais do que a denúncia, e tentando ir além, a expressão traduz um esforço de entendimento sobre a ditadura, favorecido pelo maior distanciamento histórico.
A terminologia “civil-militar” pode não agradar a todos, como vimos, mas ela tem lá as suas pertinências. Todavia, não pretendo estimular uma disputa entre termos. Não se trata de afirmar esta ou aquela terminologia, mas ressaltar a importância do debate. É no debate político e historiográfico que podemos alargar nossa visão, ir além da memória e do discurso da resistência, e avançar na compreensão mais abrangente tanto do ponto de vista da arquitetura do golpe quanto da sustentação do regime.

Longe de ser um “modismo” ou uma “manipulação terminológica”, como já foi sugerido, a expressão “ditadura civil-militar” aponta para um esforço de compreensão da ditadura para além do aspecto puramente militar. A terminologia “ditadura militar”, por certo, não negligencia a participação civil no golpe e na sustentação da ditadura. Da mesma forma, o acréscimo do termo “civil” não descaracteriza nem mascara o caráter militar da ditadura. Em certo sentido, consciente ou não, a expressão “ditadura militar” encerra uma visão vitimizadora da sociedade brasileira e das esquerdas, atribuindo aos militares a culpa pelo que ocorreu na época. Mesmo apontando para a cumplicidade de setores da classe média e de uma elite civil próxima dos militares, a expressão reduz semântica e sociologicamente a ditadura ao seu aspecto militar. A vitimização da sociedade e a vilanização dos militares em nada ajudam a entender as complexas relações entre ditadura e sociedade. Estas construções binárias tinham um caráter de denúncia e de condenação da ditadura, importante nas décadas de 1970-80, desvelando os crimes e os excessos cometidos pelos militares. Hoje, a uma distância confortável e segura daqueles tempos, e sem a ameaça de um retorno dos militares, precisamos ir além e entendermos a ditadura em todas as suas dimensões.



As críticas ao uso do termo “civil”, e o suposto efeito de abrandamento da ditadura, vêm de setores mais a esquerda, tradicionalmente avessos a revisões históricas, geralmente taxadas de reacionárias.
O uso do termo “civil” para adjetivar a ditadura, a meu ver, chama a atenção para um fenômeno que cada vez mais nos interessa: a atual idealização dos militares como os salvadores da pátria. Os sucessivos governos do PT, os escândalos de corrupção e o baixo desempenho da economia criaram um ambiente de crise de legitimidade do governo (Ainda que a noção de legitimidade seja bastante problemática). É em momentos como este, como bem observou Raoul Girardet, que se situam os apelos mais veementes ao herói salvador. No nosso caso, das forças armadas, a instituição salvadora. As reflexões de Girardet sobre a figura do salvador e os contextos de crise de legitimidade podem nos oferecer bons insights para pensar o que aconteceu no Brasil em 1964 e o que acontece hoje. A defesa que alguns movimentos e setores da sociedade brasileira fazem da intervenção restauradora e purificadora dos militares tem um apelo mítico. Os mitos políticos aparecem como respostas específicas de cada sociedade, ou de certos grupos sociais, a determinadas situações: rejeição global de um governo justa ou injustamente desacreditado, ruína financeira, desordem interna (Girardet), e eu acrescentaria, como característicos da sociedade brasileira, a corrupção e a ameaça de governos com tendências de esquerda. Nestes momentos, o ideal de regeneração moral e os apelos a um suposto passado de ordem e decência - a intervenção e o regime militar – aparecem como a solução para a desordem e a decadência do presente. A intervenção salvacionista das forças armadas, como em 64, verdadeira panaceia conservadora, operaria uma correção dos rumos e devolveria ao país a credibilidade, a confiança e a decência perdidas. Uma breve consulta nas páginas dos grupos pró-intervenção nas redes sociais, e nos comentários dos simpatizantes, é suficiente para identificar o apelo mítico à intervenção regeneradora dos militares.



As crescentes e inquietantes demonstrações públicas de apelo por uma “intervenção militar” vindas de diferentes setores da sociedade brasileira, e o silêncio cúmplice, e por vezes o apoio tácito, de parte da imprensa brasileira, nos obrigam a entender melhor o apoio popular e a participação de agentes civis no golpe de 64 e no regime ditatorial. A simpatia pela ditadura e por mecanismos autoritários de governo, ainda que alimentada pela desinformação, é um dado do presente que deve reorientar o olhar do historiador/pesquisador sobre o passado recente. A polarização política decorrente da ascensão da esquerda vem provocando verdadeiros combates pela memória. Leituras favoráveis à ditadura e aos militares, ainda que rasas e pobres heuristicamente, disputam com as narrativas da esquerda e dos historiadores. Gostando ou não, as narrativas pró-militares apresentam-se como contraponto conservador à chamada memória da resistência, em certo sentido mistificadora, emplacada pela esquerda desde o final dos anos 70. Personagens como Lamarca, Marighela e Dilma Rousseff, antes vistos como heróis por enfrentar a ditadura, são hoje atacados e chamados de terroristas. A violência praticada pelos miliares é relativizada e justificada como necessária para deter o avanço do comunismo e impedir a cubanização do Brasil.



Já existem estudos a respeito da participação de agentes civis e do apoio de setores da sociedade ao golpe de 64. O tema não é nenhuma novidade. Lembro, no livro do René Dreifuss “1964, a conquista do Estado”, de um capítulo dedicado ao complexo IPES/IBAD e ao envolvimento dos civis e de uma “elite orgânica” “na estratégia militar contra” o governo. A queda do governo de João Goulart, afirmou Dreifuss, “ocorreu como a culminância de um movimento civil-militar e não como um golpe das Forças Armadas contra João Goulart”. E ainda: “Apesar de a administração pós-1964 ser rotulada de ‘militar’ por muitos estudiosos de política brasileira, a predominância contínua de civis, os chamados técnicos, nos ministérios e órgãos administrativos tradicionalmente não-militares, é bastante notável”. Embora Dreifuss, no final da década de 1970, já apontasse a decisiva participação civil no golpe e nos governos militares, os estudos existentes sobre o tema são insuficientes e limitados. Precisamos de novas abordagens, iluminadas por novas fontes, orais e escritas, e que incorpore os documentos e as questões levantadas recentemente pela Comissão da Verdade.

Ao que parece, o fenômeno de apoio a uma nova “intervenção militar” não se limita à classe média elitizada imaginada pelos intelectuais de esquerda. O conceito de classe média é bastante impreciso e insuficiente para dar conta do Brasil de hoje. O uso que se faz é estereotipado e marcado, antes de tudo, por forte dose de pré-conceito, o que dificulta muito o entendimento sobre as aspirações e visões políticas dos setores identificados como de classe média. É preciso reavaliar os conceitos com os quais se examina este tema, sobretudo o de classe. Ao contrário do que sugeriu Renato Lemos, creio que é justamente a abordagem centrada na noção de classe que pode estreitar o olhar e limitar o entendimento das conexões dos militares com os setores da sociedade civil que apoiaram a ditadura. O conceito é redutor e já traz respostas apriorísticas. Tenho mapeado, na medida do possível, a origem social dos movimentos e dos simpatizantes, e percebido que a formação, o poder aquisitivo, a atuação profissional e a faixa etária são bastante amplas e diversas, e que não se restringe aos grandes centros urbanos do centro sul. Não adianta ficar teorizando sobre os movimentos pró-intervenção com base num conceito problemático, deslocado e anacrônico de classe média. Xingá-los de elitistas e ignorantes ajuda menos ainda. É preciso botar a mão na massa e percorrer, com instrumentos de pesquisas mais adequados, como entrevistas orais e netnografias (porque não?), a anatomia destes grupos, a origem social, profissional e a faixa etária dos participantes e simpatizantes. A netnografia, termo cunhado pelo pesquisador norte-americano da área do marketing Robert Kozinets, entendida como a adaptação dos procedimentos da etnografia ao ambiente virtual, pode ser de grande valia para conhecer mais de perto os grupos e comunidades virtuais de apoio ao retorno dos militares. O pesquisador, identificando-se ou não, entra nas comunidades e passa a conviver com os grupos por um determinado período para conhecer o perfil e a visão de mundo dos membros, e, a partir da observação participante, extrair as informações que lhe permita entender melhor suas motivações. As entrevistas orais com agentes militares e civis que participaram do golpe e da sustentação da ditadura, como já vêm sendo feito, podem oferecer novos ângulos de observação. O livro de entrevistas com militares que ocuparam cargos importantes durante a ditadura, organizado por Maria Celina D'Araújo, intitulado “Visões do Golpe”, é um bom exemplo.


A denominação “ditadura civil-militar”, se observada com atenção, insisto, não diz respeito somente ao passado ou a maneira como interpretamos o golpe de 64. Ela repercute as demandas políticas urgentes do nosso tempo e a necessidade de revermos nossos conceitos e categorias para entendermos melhor e lidarmos com mais maturidade com as ondas de conservadorismo autoritário que, sob certas circunstâncias, reaparecem no Brasil.




Roberto Marinho e o general Figueiredo. O empresário e o general, de braços dados, é a melhor tradução da expressão “ditadura civil-militar”.





sexta-feira, 10 de abril de 2015

PENSANDO SOBRE A PONTE.

PENSANDO SOBRE A PONTE.


As formas que regem a dinâmica da nossa vida são de certo modo trazidas pela ponte (...) à duração sólida de uma criação visível.
Simmel

A ponte reúne enquanto passagem que atravessa.
Heidegger

(...) e sobre o riacho havia uma ponte perfeita formada por um tronco caído (...).

Jack Kerouac



"As meninas na ponte". Edvard Munch (1901).




1.      A Dimensão Afetiva e Mnemônica da Ponte.

Passei minha infância e adolescência observando e atravessando pontes. Pequenas e grandes. Sobre rios e sobre trilhos. Pontes urbanas e pontes construídas no meio do mato. Pontes que levavam para diferentes destinos. Hoje, beirando os cinquenta anos, continuo observando, atravessando e pensando sobre pontes.

As pontes, figuras de fronteira que, na sua mais perfeita ambivalência, ligam e separam, despertam em mim, ao mesmo tempo, fascínio e apreensão. Fascínio, pela majestade, pela travessia, pelo que oferece na outra margem. Apreensão, certamente, pela altura. A acrofobia, que me acompanha desde a infância, seguramente tem a ver com minha experiência com pontes.

Minha casa situava-se no ponto equidistante entre duas pontes. Ambas ligavam meu bairro, em Santa Maria, ao bairro Itararé, onde frequentemente visitava parentes, jogava futebol e me divertia no clube 21 de Abril. As pontes eram passagens obrigatórias para o outro lado. Por baixo delas, corriam os trilhos dos trens. Adorava e morria de medo das pontes. Elas me atraíam, à distância, como paisagem imóvel, ou quando passava por baixo, admirando os pilares e a poderosa estrutura. Mas sentia vertigem quando andava sobre elas. Não tinha coragem de olhar para baixo. Tomava como verdadeiro desafio me debruçar na cabeceira da ponte e olhar para os trilhos do trem lá embaixo. Era um verdadeiro teste de limites e de coragem. Fiz isso poucas vezes. Costumo levar meus medos a sério. Se não atrapalham minha vida, não tento superá-los.




Ponte sobre o rio Jacuí.


Viajei muito de trem na infância e adolescência para pescar com meu pai, para visitar parentes na grande Porto Alegre e conhecidos em Rio Pardo e para acampar nas Tunas, em Restinga Seca, com amigos. Os trens que saíam da estação de Santa Maria tomavam duas direções. Uma delas levava para Livramento e Uruguaiana (neste trecho, pescávamos no rio Santa Maria, no Caverá, no Jacaquá, em Saicã e na ponte do rio Ibicuí, em Dilermando de Aguiar). A outra direção levava para Porto Alegre. O trem, nos dois sentidos, passava sobre muitas pontes. A estrutura suspensa, sem contato com o solo, produzia um barulho singular do atrito dos trilhos com as rodas dos trens. A pesada e enferrujada estrutura de metal que avistava da janela e o rio que corria silencioso lá embaixo tornavam a travessia divertidamente perigosa. Duas pontes me impressionavam pelo tamanho e altura: a ponte do Rio Jacuí, decorada nas duas extremidades com casinhas de pescadores, e a ponte sobre o rio Santa Maria (ao lado), em Cacequi, construída em 1907, e que tinha quase um quilômetro e meio de extensão (a maior na América Latina). Cruzei esta ponte a pé, com meu irmão e meus primos. Foi assustador, mas não podia decepcionar a turma. Os dormentes, peças de madeira sobre as quais os trilhos são fixados, eram distantes uns dos outros, o que tornava a travessia bastante arriscada. Lá embaixo, o rio e a praia de Dourados, de areias incrivelmente brancas. O nome da praia evocava o peixe que, noutros tempos, era pescado em abundância no rio. Nas sete ou oito vezes que fomos pescar ali, capturamos apenas um Dourado. Foi o almoço do dia, num fogão improvisado embaixo da ponte. Meu pai, pescador experiente, preparou um caldo de Dourado com batatas, cebolas e tomates. Inesquecível!! Além de pescador de fim de semana, meu pai era ferroviário (como o pai do Neruda). Construía e concertava as ligas de metal dos trens, os trilhos e a estrutura das pontes. Um dos privilégios, senão o único, da profissão era viajarmos quase de graça nos trens. Eu sentava sempre na janela, atento à paisagem do pampa, esperando pelas pontes. Sabia de cor todas elas. Sabia os nomes e conhecia histórias de assombrações e de pescador envolvendo as pontes. Não dormia nas viagens de trem. Não queria perder nada, nenhuma ponte e, atento aos conselhos do pai, não colocava a cabeça para fora da janela enquanto as atravessávamos. Anos mais tarde, na adolescência, já bastante independente e com outros interesses, viajava sozinho e, quando o trem passava nas pontes, ficava na porta olhando para baixo, para os rios. A vista era bem melhor que a da janela. Minha paixão por pontes só rivaliza com minha paixão pelos rios. Gosto do mar, moro perto de lindas praias, mas não troco o rio, qualquer rio, pelo mar. Rios e pontes são presenças constantes em minha vida. Passei por muitas mudanças, abandonei muita coisa, descobri outras tantas, mas as pontes e os rios são constâncias, são regularidades que nunca sumiram do meu horizonte. Acho que descobri a importância que pontes e rios têm para mim com o Pablo Neruda. Li “Confesso que vivi” na adolescência e voltei a lê-lo mais tarde. Levei o livro comigo em algumas viagens de trem. José del Carmen Reys Morales, pai do Neruda e amante das pontes, era maquinista de um trem lastreiro. As narrativas das viagens de trem com o pai são alguns dos momentos mais bonitos das memórias do poeta.

Neste fragmento, Neruda declara seu amor às pontes:

“Em Chungking meus amigos chineses me levaram para ver a ponte da cidade. Sempre amei as pontes. Meu pai, ferroviário, inspirou-me grande respeito por elas. Nunca as chamava de pontes; teria sido uma profanação. Chamava-as de obras de arte, qualificativo que não concedia às pinturas, às esculturas e nem, é claro, a meus poemas; somente às pontes”.

Meu pai também admirava as pontes, embora não verbalizasse. Homem de poucas palavras, expressava-se melhor com o ferro, criando pequenas obras de arte para entreter os filhos (Brinquedos e quebra-cabeças de ligas de ferro). E ajudava a construir pontes, as grandes “obras de arte” que encantavam o senhor Morales. Embarcando no trem do poeta-maquinista dos bosques chilenos, diria que as pontes, signos da associação, são poemas suspensos, escritos na linguagem do ferro e do fogo (sem metáforas), que comunicam margens e ligam o que antes estava dissociado.

Ônibus? Não. Na época, era um luxo que não podíamos ter.

Outras duas pontes, de dimensões bem mais modestas, eu atravessava quase diariamente para ir à escola ou para ir ao centro da cidade. A menor delas, que chamávamos de pontilhão, era uma pontezinha sinistra localizada na antiga linha do trem, a duzentos metros da minha casa. Circulavam narrativas no bairro sobre uma mulher que foi atropelada pelo trem e caiu da ponte. Desde então o seu fantasma assombrava o lugar e perseguia quem se atrevia passar por ali à noite. Nunca vi o tal fantasma, mas gelava de medo quando, no cair da noite, passava no pontilhão. Se pudesse evitar passar ali, evitava. A outra era a ponte do Itaimbé, na rua Silva Jardim, onde me encontrava com a turma do skate e os amigos das bebedeiras. A ponte, pela velha incompetência do poder público, ficou por um bom tempo inacabada, sem ligar os dois lados da rua. Sorte a nossa, que não tínhamos carro e nos divertíamos com pouco. Subir na ponte em construção, e ficar “planando entre o céu e a terra”, era a diversão da minha turma de adolescentes roqueiros, pobres e desempregados. Levávamos violões surrados, toca fitas e vinho barato, e fazíamos daquele lugar um pequeno santuário suspenso, encravado no coração da urbe.

Se as pontes falassem, e fossem indiscretas, teriam muito que contar sobre namoros relâmpagos, escondidos, interrompidos. Pontes também são esconderijos urbanos para amantes de passagem.

Havia ainda a Garganta do Diabo, ponte de dimensões colossais, inacreditavelmente alta, que levava aos balneários e as cachoeiras da serra. Histórias de suicídios e acidentes terríveis tornaram a ponte lendária. Passei uma única vez a pé pela Garganta do Diabo. Foi deliciosamente aterrorizante!  







Hoje moro na ilha de Florianópolis. Três pontes ligam a ilha ao continente. Duas delas são o meu caminho de todos os dias, para entrar ou sair da ilha. São pontes funcionais, pesadas e frias. A outra, é o cartão postal da cidade. Bela, melancólica, superfaturada, a ponte Hercílio Luz é o signo metonímico da modernidade e da nossa Belle Époque. Sinto-me em casa quando, chegando de uma viagem, avisto a ponte.



Das pontes reais, feitas de ferro, concreto e travessias, vieram as pontes poéticas, cinematográficas, que me levaram para outras margens. Em alguns dos filmes mais marcantes na minha vida, as pontes são verdadeiras entidades. Em “Era uma vez na América”, a magnífica ponte sobre o East River, que liga Manhattan ao Brooklyn, é a moldura poética da narrativa épica de Sergio Leone sobre a vida, as amizades, os amores e a lealdade entre seis garotos judeus pobres que crescem no Brooklyn em meio à criminalidade. 

A ponte, capturada pela bela fotografia de Tonino Delli Colli, em tom sépia, para recriar a atmosfera dos anos 20 e 30, é testemunha imóvel e silenciosa dos encontros e desencontros dos personagens. A trilha insuperável de Ennio Morricone é de chorar. Quero um dia me sentar próximo à ponte, ali onde Noodles e seus amigos passavam, e ouvir a trilha do filme num fone de ouvidos.  



No filme “Os Amantes da ponte Neuf”, de Leos Carax, de 1991, a ponte (acima) é o cenário de uma história louca de amor, na contramão dos romances clichês e convencionais ambientados em Paris, entre Michèle (Juliete Binoche), uma estudante de arte cega de um olho que vive na rua depois do fim de uma relação e Alex (Denis Lavant), um mendigo que sobrevive cometendo pequenos furtos e se apresentando na rua cuspindo fogo. O improvável e imprevisível romance se passa quase que inteiramente na ponte Neuf, a mais antiga das pontes construídas sobre o Sena. A ideia é uma grande sacada! A ponte, lugar de passagem, de fluxo, de pessoas em trânsito (o não-lugar, portanto), transforma-se no “lar” provisório do estranho e irresistível casal de desajustados. Quando estive em Paris fui conhecer a ponte. Passei por baixo e por cima, como nos tempos de criança, atento a tudo. Para quem está apenas de passagem, com olhares fugidios, ela não oferece grandes atrativos e não se destaca das tantas outras que atravessam o Sena. Apesar de linda, se observada com cuidado, a ponte é aparentemente discreta. Vista com mais atenção, revela a solidez e a gravidade das pedras e a beleza dos arcos romanos. É uma das mais bonitas pontes europeias. Para quem viu, e se viu, no filme, e guardou as imagens daquele amor visceral, pungente e tão profundamente romântico quanto à aspereza do chão onde Alex desesperadamente esfrega a cabeça, a ponte tem um apelo quase mítico.



Neste pequeno inventário das pontes da minha vida não poderia faltar René Magritte. Na tela intitulada “Saudade”, de 1940, um homem de asas, vestido de preto, está sobre uma ponte, ao lado de um leão. Homem e leão, indiferentes um ao outro, não pertencem àquele lugar. A ponte, que não liga nada a lugar algum, encerra a melancolia dos dois seres que parecem saber que o sentido de tudo está em lugar nenhum. Destituída dos seus significados mais imediatos e reconhecíveis – ligação, travessia, passagem -, bem ao gosto do pintor, a ponte se converte numa prisão da qual nem mesmo o homem com asas consegue escapar. 






2.      A Dimensão Teórica da Ponte.

Na escrita da minha tese de doutorado, inesperadamente, me deparei com uma ponte batizada com o nome do personagem central das minhas pesquisas: padre Roque Gonzáles. Aproveitei a oportunidade e tentei pensar sobre os significados que a ponte, como signo de fronteira, de passagem e de divisa, comporta. Passei a entender melhor estas poderosas e duradouras estruturas (ou simples arranjos provisórios) que tornam nossos caminhos mais fluídos.

Vamos explorar a ponte Roque González?


A ponte que leva o nome do missionário jesuíta é a famosa ponte internacional sobre o Rio Paraná, inaugurada em 1990, que liga, de um lado, Posadas, na Argentina, e de outro, Encarnación, no Paraguai. É o espetacular encontro do rio com a ponte! Por sugestão do Bispo Diocesano de Missiones a obra foi batizada de Ponte Roque González de Santa Cruz. A homenagem ao jesuíta foi motivada pela obra de evangelização que realizou na região. No início do século XVII fundou a redução de Nuestra Señora de la Anunciación de Itapúa, na região da atual cidade de Posadas, que posteriormente foi transferida para a outra margem do rio com o nome de Nuestra Señora de la Encarnación. Embora no presente estejam situadas em territórios nacionais distintos e separadas por fronteiras políticas bem precisas, Posadas e Vila Encarnación estão ligadas a um passado colonial e jesuítico em comum. O nome da ponte é ao mesmo tempo uma referência e um apelo a este passado.

Nos dois lados do Rio, Roque Gonzáles é reconhecido hoje, nos discursos oficiais, como o Fundador da atual cidade de Posadas e da Villa Encarnación. É visto nas crônicas oficiais locais como uma espécie de cruzador de fronteiras e herói civilizador, pois sua entrada naquelas terras remotas e selvagens marca o advento da ordem racional e civilizadora na região. Isso equivale a dizer, nos termos tradicionais, que com a chegada dos primeiros jesuítas o antigo Paraguai deixa para trás a pré-história e entra definitivamente nos domínios da história. 

Mas o nome da ponte não se resume a uma simples homenagem ao fundador das duas cidades. Apesar de levar o nome do santo paraguaio, a ponte emerge em meio a conflitos internacionais entre os países que tem no rio Paraná uma fronteira comum. Os discursos da integração, que buscam no padre Roque um ponto identitário e uma história em comum no passado, escondem antagonismos e tensões fronteiriças que se arrastam há séculos, que vem dos tempos coloniais, atravessam a formação dos estados nacionais e se projetam no século XX. O período que se estende desde a expulsão dos jesuítas até o final da guerra da Tríplice Aliança foi marcado por diferentes tentativas de demarcação de fronteiras, que terminou por identificar o Rio Paraná como limite político entre Brasil e Paraguai e entre Paraguai e Argentina. Desde então o rio e suas disputadas águas tem sido alvo de estratégias geopolíticas e conflitos diplomáticos pelos usos dos recursos da região. Os conflitos entre Brasil e Argentina em torno da construção das hidrelétricas de Itaipú e Yacyretá revelam as manobras políticas dos dois países pelo predomínio regional. A hidrelétrica argentina foi uma resposta geopolítica a crescente influência brasileira na região. Foi, portanto, uma obra visando mais o jogo político do que o desenvolvimento econômico (Alejandro Grimson mostrou que a construção da represa argentina era um projeto anti-econômico, porém estratégico para a equivalência de forças na região. A preocupação da Argentina era não tornar-se um simples satélite do Brasil). A ideia da construção da ponte nasceu em meio a estes conflitos das hidrelétricas. A ponte, inaugurada em 1990 foi, na verdade, uma forma de ressarcimento econômico ao Paraguai pelos prejuízos provocados pela construção de Yacyretá. O lado paraguaio, mais baixo que o argentino, sofreu mais com a represa das águas, que atingiu maior quantidade de terras. A construção da ponte foi uma recompensa indenizatória para poder avançar com a construção da represa.




É em meio a estas disputas nacionais e jogos de influência regionais que o nome de Roque González vai ser lembrado. Para além dos conflitos, um consenso: padre Roque é visto na região, outrora integrada pelos trinta povos jesuíticos, como o fundador. Percorreu heroicamente os três países e semeou as bases da civilização. A escolha da figura de Roque González para dar nome à ponte sugere a evocação do tempo das reduções, anterior aos Estados Nacionais platinos, em que o rio Paraná não representava um corte político a separar os povos. Padre Roque, e depois os seus companheiros, fizeram do rio um canal de comunicação entre a margem espanhola e a margem indígena. Irmanaram os dois lados do rio pela pregação do evangelho. Prova disso são as ruínas das antigas reduções, encontradas em ambas as margens. Do lado argentino, encontram-se as ruínas de San Ignácio, e do lado paraguaio, as de Trinidad e Santos Cosme y Damian. São testemunhos inequívocos de um passado em comum. Os discursos identitários, expressos pelos periódicos e discursos políticos, apelam para esta suposta irmandade entre as duas cidades, que remontam a sua fundação, como legitimadora da integração regional. Prevalece a imagem de que, para além das fronteiras, subjaz um substrato identitário que permanece indiferente aos limites trazidos pelos estados nacionais. Roque González simboliza, na região que se diz o “corazón del  Mercosur”, o laço identitário que amarra a integração. A ponte que leva seu nome é mais um exemplo dos usos que se fazem do passado para legitimar projetos políticos, identitários e de integração regional. Mas o meu interesse na ponte, neste momento, é outro.

Georg Simmel, num inspiradíssimo ensaio de 1909, fez uma ontologia da ponte, explorando os pares antitéticos associar-dissociar, separar-reunir, como “dois aspectos do mesmo ato”, para discorrer sobre a ação volitiva do homem no espaço. A ponte, diz Simmel, simboliza “as formas que regem a dinâmica da nossa vida”. “Porque o homem é o ser de ligação que deve sempre separar, e que não pode religar sem ter antes separado - precisamos primeiro conceber em espírito como uma separação a existência indiferente de duas margens, para ligá-las por meio de uma ponte. E o homem é de tal maneira um ser-fronteira, que não tem fronteira.” Parto desta visão quase vertiginosa de Simmel para explorar os múltiplos significados que a ponte sugere.

Mais do que a obra de arte, cruzamento da engenharia com a arquitetura, interessa-me a ponte como metáfora. Intervalo fluído entre duas margens, a ponte evoca um amplo conjunto de significados e perspectivas. A ponte, como a fronteira, combina simultaneamente um aspecto de fixidez e outro de fluidez. Ela fixa um caminho entre duas extremidades, antes separadas, ao mesmo tempo em que é passagem fluída, deslizante. É a estranha sensação de estar em lugar nenhum, ou como disse Simmel, planando entre o céu e a terra. À imagem da ponte sobrevém a do deslocamento: deslocamento geográfico, humano, linguístico, cultural. Ponte evoca o que não está fixo, o que esta em trânsito, portanto, transitório. É o vir a ser. A possibilidade de outras margens. Não é de onde se parte, nem aonde se chega. É a travessia, a passagem, via de comunicação entre dois registros territoriais ou culturais. Lembro-me de quando saía de casa para visitar meus tios no Itararé. Antes de chegar à ponte, estava no meu bairro, no meu lugar. Na travessia, sobre a ponte, estava em lugar nenhum, suspenso no tempo e no espaço entre o meu lugar e o outro lado. Quando alcançava a outra margem, estava em território estrangeiro.

A ideia de ponte como travessia, passagem, ligação e diálogo, acompanhou minha vida até aqui, e atravessou minha tese de doutorado de ponta a ponta. Na tese, tomei a ponte, na sua polissemia e ambivalência, como metáfora das inúmeras injunções. Explorei pelo menos quatro sentidos metafóricos: 1. ponte como passagem da barbárie à civilização, da selva à vida política (que presidem o ideal reducional); 2. ponte como fluxo semântico, que está presente na tradução cultural; 3. ponte como diálogo/passagem entre os tempos, que define minha ideia de História; 4. ponte como símbolo de fronteira e da situação fronteiriça da evangelização.

Se na minha vida a ponte, que separa e junta, era e é a passagem para o outro lado da cidade, do rio, na tese, a homenagem ao padre Roque é a minha ponte para o século XVII, uma forma de diálogo/passagem entre o presente e o passado. Como símbolo da associação, nas palavras de Simmel, a ponte traça um caminho entre dois lugares, entre duas culturas. Tomo esta ideia de empréstimo para lançar então uma ponte entre os tempos. Se a História é um diálogo dos sentidos do presente com os do passado, a metáfora da ponte pode orientar esse diálogo. Contudo, lanço uma ponte não para capturar o fluxo contínuo da história, mas para escavar o descontínuo, para ressaltar as diferenças, sublinhar a singularidade das experiências. Não vou ao passado para encontrar raízes, nem as causas do presente. Um retorno ao passado, pelo fio da memória escrita dos jesuítas, não é uma viagem nostálgica guiada pela “ideologia do retorno”. Remontar ao século XVII só tem sentido se encontramos lá modos de existência, ou outras racionalidades, que possam, nos termos de Foucault, confrontar as nossas e tornar “possível uma crítica do presente.” O passado pelo passado é uma obsessão de antiquário.
Afinal, nós não atravessamos pontes para encontrar o mesmo.


3.      Uma Ponte no fim de Tudo.

Fosse eu um homem de fé, religioso e espiritualizado, diria que a morte seria minha última ponte, a passagem para o “outro lado”. Cairia bem, encerraria o texto de maneira elevada, criando uma ponte com a eternidade. Mas não é o caso. Minhas pontes dizem respeito a este mundo e regem a dinâmica da minha vida mundana, mortal e completamente destituída de transcendência. A morte é a ponte para o fim. É a passagem da vida para o nada. É ponte de uma margem só. Não quero viver para sempre. Não desejo a eternidade. Quero a beleza trágica da travessia, este tempo suspenso, ponte entre o nascimento e a morte.