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terça-feira, 28 de janeiro de 2014

OS GUARANI E OS JESUÍTAS NAS FLORESTAS DO PARAGUAI: A NOÇÃO DE ENCONTRO COLONIAL COMO PERSPECTIVA DE ABORDAGEM HISTÓRICA (SÉCULO XVII).

Os guarani e os jesuítas nas florestas do Paraguai: a noção de encontro colonial como perspectiva de abordagem histórica (século XVII).
Compartilho aqui uma rápida reflexão sobre a noção de encontro colonial originada nas aulas de história da América. Embora as reflexões digam respeito ao século XVII da América Espanhola, acredito que elas tenham alguma validade para pensarmos as complicadas relações – conflitos, negociações, interações e distanciamentos - dos grupos indígenas com as sociedades americanas contemporâneas. Mas este exercício deixo para vocês, caros leitores.

A noção de encontro colonial não é nova, mas também nunca foi suficientemente desenvolvida. Mary Louise Pratt a utilizou para caracterizar as diversas modalidades de contatos entre europeus e americanos no contexto colonial. Da maneira como a emprego, seguindo a autora, sugere uma situação de contato cultural inédito, no sentido de nunca antes vivenciado, que aproxima sujeitos históricos que se desconheciam mutuamente, e que, sob o signo do colonialismo, passam a conviver num espaço comum, trocando bens culturais e simbólicos. Atravessado pelos diversos interesses do colonialismo e dos povos a eles submetidos, este espaço conjugado é desigualmente compartilhado. É também marcado por relações assimétricas de poder e pela sujeição e exploração das populações locais. Estas populações, no entanto, agiam dentro dos espaços delimitados pelo colonialismo com certa margem de autonomia e alguma margem de negociação. Encarar as relações entre índios e missionários deste ponto de vista significa estar atento aos sentidos do encontro colonial para ambos os lados.
No início do século XVII, as florestas subtropicais do antigo Paraguai foram palco de um surpreendente encontro colonial numa das “zonas de contato” forjadas pelo colonialismo ibérico. De um lado, os povos guerreiros guarani, desconhecedores da escrita, caçadores-coletores e cultivadores em constantes deslocamentos geográficos, presos nas malhas do colonialismo, sujeitados a exploração de mão-de-obra e com a sua área de mobilidade geográfica cada vez mais reduzida; de outro, a Companhia de Jesus, uma ordem que se construíra sob o signo da escrita, ponta de lança do catolicismo romano reformado, que chegava à América com o firme propósito de converter os povos gentios. Os jesuítas também estavam em constantes deslocamentos geográficos, mas eram deslocamentos apostólicos. E ao contrário dos indígenas, sua área de mobilidade expandia-se cada vez mais. Quanto mais reduzido ficava o mundo guarani, mais o mundo se abria à ação missionária dos jesuítas. Foram estes deslocamentos, sob a bandeira de Cristo, que trouxeram os jesuítas à América e aproximaram os dois universos.

Os guarani, guiados pelas palavras proféticas dos pajés, tinham na oralidade o meio de transmissão dos conhecimentos, dos valores, dos ritos e das tradições míticas e cosmológicas, enquanto os jesuítas tinham as verdades do deus único reveladas num livro, e na escrita epistolar a sua principal forma de comunicação. Embora a oralidade e a escrita sejam sistemas de comunicação distintos, não estou sugerindo uma dualidade. A comunicação não se restringe ao universo da palavra. Entre a palavra falada e a escrita, abrem-se inúmeras possibilidades de comunicação como a dança, o canto, o desenho, a pintura, os gestos, os sons, que sugerem outras formas de entendimento.  Entre o dito e o escrito insinuam-se a improvisação e o entrelaçamento das formas de comunicação, característicos de um contato cultural marcado pelo ineditismo. Do contato entre a oralidade primária dos guarani e a cultura letrada dos jesuítas ocorreram inúmeros arranjos semânticos e ajustes linguísticos, originando uma espécie de linguagem de conversão. Neste esforço de criar um horizonte de entendimento, a escrita foi um suporte fundamental para o sucesso da catequese. As dificuldades de comunicação impuseram aos missionários a elaboração de gramáticas e catecismos em línguas indígenas. Em outras palavras, operou-se uma redução gramatical da língua falada dos índios aos códigos escritos dos missionários. A gramaticalização das línguas indígenas valeu-se da comparação, isto é, da busca por equivalências entre as línguas indígenas e as línguas conhecidas pelos missionários. Esta busca por equivalências aproximou simbolicamente os dois universos e criou uma linguagem composta de elementos da tradição religiosa e escrituraria católica dos jesuítas e da tradição religiosa e cosmológica indígena.
O encontro entre a mística cristã e a cosmologia guarani, sob o signo do colonialismo, resultou na “invenção” de novos sujeitos: índios cristãos, índios infiéis, feiticeiros endiabrados, padres feiticeiros (O termo invenção é, em parte, inspirado em Edmundo O´Gorman. Segundo o historiador mexicano “a opção pelo termo invenção” é sugestiva pela ambiguidade que possibilita: de um lado, o termo vem acompanhado de toda uma visão da América na qual predomina o fantástico, o fabuloso, o legendário, o mítico; de outro, o termo pode lembrar algo que é construído racionalmente. Por isso mesmo, sua narrativa tem o sentido da construção de uma visão. Sua crítica tem o caráter de uma crítica à historiografia que produziu o conceito de “descoberta”. O uso que faço do termo sugere também os novos arranjos culturais, linguísticos e identitários que resultam da interpenetração entre as formas culturais trazidas pelos conquistadores e as das populações locais. Invenção tem portanto o sentido de criação e recriação de sentidos para o mundo, de formas de convívio, que considera os dois lados da relação colonial). Esta simbiose entre o colonialismo e a evangelização criou, opôs e fundiu no imaginário da conquista personagens como o missionário jesuíta Roque González e o cacique/pajé guarani Ñezú. Roque González, canonizado em 1988, dispensa apresentações. Ñezú era um poderoso líder que concentrava poderes políticos e religiosos, e que vivia num lugar conhecido como Pirapó, no Yjuí, na margem oriental do rio Uruguai. Foi descrito nas crônicas jesuíticas como cacique e feiticeiro. Estes dois personagens podem servir de guias para as nossas reflexões. Por vezes, o jesuíta convertia-se no feiticeiro e incorporava poderes mágicos, andando de povoado em povoado realizando curas e batizando crianças, ou então o feiticeiro se apoderava da mística cristã e improvisava missas no interior das florestas para desfazer o feitiço do padre. Roque foi morto em 1628 na redução de Caaró a mando de Ñezú, até então seu aliado na evangelização do Yjuí. O corpo foi esquartejado, queimado e o coração arrancado do peito. As vestes litúrgicas foram rasgadas e entregues a Ñezú, que as vestiu. Símbolos cristãos – cruzes e a imagem da Virgem Conquistadora - foram destruídos e os batismos realizados pelo missionário foram desfeitos. O chefe guarani se apoderava das vestes do padre, destruía os símbolos que traduziam o seu poder e se apropriava de ritos cristãos para reafirmar o seu poder na comunidade. Depois da morte de Roque, e das diligências para capturar os indígenas envolvidos, Ñezú desapareceu e nunca mais foi visto. A morte do padre Roque, no entroncamento cultural onde as místicas se cruzaram, reúne vários elementos destas apropriações recíprocas e traduz as tensões e fusões culturais daquele momento. A conquista traumática da América aproximou universos mentais e fundiu práticas religiosas, modos de expressão, originando criações híbridas e improvisações culturais, sob o signo do conflito ou da conciliação. A morte do padre Roque foi marcada por este jogo de oposições e fusões, a dupla face do encontro colonial.
Por encontro, entendo o movimento de duas culturas que, em determinadas situações, estabelecem contato e passam a coexistir num espaço compartilhado. A palavra encontro, como forma de abordagem histórica, tem suscitado fortes reações e, frequentemente, alguns mal entendidos. A proximidade do Quinto Centenário de Descobrimento da América reavivou a polêmica em torno dos termos utilizados para descrever a chegada dos europeus à América. As acaloradas discussões se deram em torno das palavras descoberta e encontro. Para alguns não houve descoberta, pois já haviam povos desenvolvidos vivendo por aqui, para outros não houve um encontro, mas um confronto. Outros, negando as duas possibilidades, sustentaram não ter ocorrido nem um encontro, tampouco uma descoberta, mas uma invasão.

Aqueles que condenam o emprego da palavra para se referir à chegada dos espanhóis na América, costumam afirmar que a ideia de um encontro esconde, ou minimiza, o violento choque cultural e a dominação europeia sobre as culturas nativas. Sustentam também que o termo encontro, assim como descoberta, possui um forte conteúdo eurocêntrico e colonialista. Por conta disso, preferem o emprego de categorias como conquista, choque, invasão, encobrimento, supostamente mais críticas. Na coletânea de ensaios intitulada Tempo e História publicada em 1992, organizada por Adauto Novaes, alguns autores discutem a terminologia adotada para descrever os acontecimentos ligados ao ano de 1492. Catherine Darbo-Peschanski, por exemplo, afirma que o termo “encontro” sugere uma perspectiva mais neutra. “Se por ‘descoberta’ entende-se ‘revelação’ e quase ‘nascimento’, a palavra veicula uma ideologia eurocêntrica e colonialista, pois as culturas do continente americano existiram e se desenvolveram bem antes de 1492. Quanto ao ‘encontro’, antes assumiu a forma de um enfrentamento.” Numa linha semelhante de argumentação, Eduardo Subirats diz que em vão “os nomes de encontro ou descoberta (...) tentam encobrir a palavra proibida desde o século XIV: conquista.”

Como tento mostrar, o uso do termo encontro não implica no encobrimento de conflitos nem no ocultamento da “palavra proibida”. A terminologia encontro, ao contrário de encobrir alguma coisa, explora faces não muito visíveis em outras nomeações das relações entre europeus e americanos. Penso que o uso de um termo ou outro – conquista, encontro, invasão ou descoberta – depende muito do que se pretende historiar. Não os vejo como excludentes, mas como termos com diferentes cargas semânticas. Essas expressões mais contundentes, embora focalizem o lado dramático e violento da conquista, conservam um ponto cego em relação ao que escapa à lógica do conflito. Além disso, estes termos empregados para fazer um contraponto à ótica eurocêntrica e colonialista acabam por reforçar o que pretendem denunciar. A invasão, a conquista e o encobrimento são, afinal, as ações do invasor, do conquistador, daquele que encobre. Mudam-se os termos, explicitam-se os mecanismos de dominação, mas os sujeitos, o verbo, a ação, continuam com aqueles que chegam através do mar.
Sustento, em defesa do emprego da palavra, que encontro não tem exclusivamente um sentido de aproximação amistosa, amigável ou amorosa. A palavra indica tanto a possibilidade do entendimento, quanto do choque e do conflito (No dicionário Aurélio, por exemplo, a palavra Encontro sinaliza uma variedade de significados que vai desde um encontro amoroso a uma rivalidade, uma briga: ato de encontrar; luta, briga e reencontro; confluência de rios; encontro de duas pessoas, de finalidade amorosa, sem que as partes se conheçam; ajuste de contas. Ou ainda: ao encontro de, em busca de, em favor de, na direção de; de encontro a; no sentido oposto a, em contradição com, contra). A serviço dos interesses coloniais ou realizando os ideais missionários da Companhia de Jesus, os jesuítas foram ao encontro dos índios para convertê-los e salvá-los, ou então vários grupos indígenas motivados por seus próprios interesses foram ao encontro dos padres para escapar do jugo colonial. Mas o mesmo ideal missionário dos jesuítas os fazia ir de encontro aos costumes indígenas, às suas tradições, ao seu modo de vida, e colidirem contra grupos menos dispostos à sua pregação ou lideranças que se sentiam ameaçadas com a sua presença. É exatamente esta ambivalência da palavra que pretendo explorar. Um encontro tanto pode ser um entendimento cultural como pode ser uma violenta colisão. A ideia de um encontro pressupõe existirem dois lados, mesmo que a correlação de forças não seja igual. Pressupõe também um desconhecimento do outro, de ambas as partes. O contato dos guarani com os primeiros padres no final do século XVI e início do XVII foi marcado por este ineditismo e descobertas recíprocas da alteridade. Já os jesuítas que chegavam à América ou ao Paraguai no século XVII, depois do estabelecimento das reduções, possuíam um conhecimento prévio do que iriam encontrar. As cartas dos primeiros padres, lidas nos colégios da Companhia de Jesus espalhados pelo mundo, já haviam se encarregado de informar sobre estes povos.  Mesmo assim, o conhecimento do outro é relativo, indireto. Para os guarani os padres que adentravam seus territórios, salvo nos primeiros encontros, também não eram totalmente desconhecidos. A mística e a fama dos “novos xamãs” já corriam o mundo indígena. Este desconhecimento total, ou parcial do outro, é o pressuposto da ideia do encontro, do estar diante imprevisível.

A perspectiva do encontro tampouco encobre as relações de dominação e exploração, apenas as recoloca de outra maneira. Ao invés do dualismo reducionista que opõe dominadores e dominados ou exploradores e explorados, insuficiente para dar conta da rica e complexa dinâmica da vida social, proponho um olhar que inclua as mesclas e improvisações culturais, as formas ambíguas e escorregadias de existência social e o imponderável dos contatos culturais.

O avanço do colonialismo sobre os territórios indígenas da bacia do Prata, aproximou estes universos estranhos e forjou um espaço de convivência. Mas não se trata evidentemente de uma convivência entre iguais. O desequilíbrio de forças em favor do poder colonial e, por extensão, dos jesuítas era enorme. No entanto, se observarmos as primeiras décadas da conquista espiritual, desconsiderando momentaneamente a nossa visão retrospectiva privilegiada que nos mostra a o avanço implacável da colonização, o que vamos encontrar é um quadro de relativo equilíbrio entre os dois lados. E em diversas situações veremos os missionários e conquistadores em visível desvantagem. Não podemos esquecer que naqueles espaços de selvas onde foram erguidas as primeiras reduções o poder colonial ainda não se fazia presente. Embora sob jurisdição espanhola, a autoridade colonial nestes espaços era fraca ou inexistente. Os guarani ainda eram os senhores das planícies, das florestas e dos rios e a entrada dos padres nestes territórios era mediada pelos chefes indígenas (Ñezú afiançou a entrada do padre Roque no Yjuí).  Nestas condições, o encontro entre jesuítas e guarani nas fronteiras difusas do mundo colonial foi marcado por negociações, arranjos e acordos. Mas também foi marcada por tensões, intolerâncias e violentos conflitos, físicos e simbólicos, sobretudo entre os padres e os líderes espirituais guarani, os pajés. Portadores de outra espiritualidade, os inacianos chegavam à região trazendo nas suas palavras eloquentes discursos condenatórios e promessas de salvação. Outros homens, não menos eloquentes, que até então eram os guias espirituais dos guarani, se recusaram a aceitar a redução e opuseram dura resistência aos padres. Quero dizer com isso que o estabelecimento das reduções em território guarani não foi uma simples imposição colonial-jesuítica. Foi um projeto colonial estratégico, mas a sua realização dependeu de mediações e interesses de ambos os lados. É necessário, pois, examinar tanto o lado do redutor quanto o do reduzido.
           
A ideia de um encontro, no sentido de troca cultural, permite fugir das visões dualistas e polarizadas sobre os sujeitos em questão. Os jesuítas ora foram vistos como santos, abnegados protetores e salvadores dos pobres índios, ora foram pintados como demônios, farsantes e intransigentes, que estabeleceram um regime coercitivo nas reduções. Os índios, por sua vez, foram bons ou maus selvagens, dependendo do projeto ou da teoria a ser comprovada. Foram a página em branco ou o canibal inveterado. O mesmo dualismo que demonizava os conquistadores e missionários, vitimizava os índios, transformando-os em meros objetos de catequese, conquista e exploração. Quando não foi vítima indefesa, o índio resistiu heroicamente às imposições do colonialismo na defesa do seu modo de vida. De uma maneira ou de outra, o que prevalece é a lógica colonial ou a denúncia dela. O historiador Héctor Bruit, por exemplo, construiu a célebre tese da dissimulação dos vencidos. De acordo com esta hipótese o fracasso relativo da conquista espanhola deveu-se à resistência camuflada dos índios. Abalados inicialmente pelo trauma psicológico da conquista e movidos, posteriormente, por uma “vontade de resistir”, os índios desenvolveram “uma série de atitudes que enganaram e desorientaram os conquistadores”. A “resistência indígena” à dominação e exploração europeia valeu-se de armas como o silêncio, a teimosia, a mentira e a bebedeira como instrumentos de defesa e de manifestação do inconformismo “perante a nova sociedade que os explorava”. Graças a esta resistência sub-reptícia conseguiram sobreviver à destruição e ao genocídio e conservaram as suas “tradições culturais”. Bruit examina a conquista hispânica e a sociedade colonial a partir da dualidade entre dominação e resistência, vencedor e vencido. De um lado, os espanhóis invasores e exploradores, impondo sua dominação, seus valores e crenças, de outro, os índios explorados, massacrados, resistindo à destruição das suas culturas. Esta perspectiva que aprisiona o índio dentro de categorias como vencido, explorado e massacrado, acaba por vitimizá-lo e não percebê-lo como sujeito de ação, mas apenas de reação a uma determinada situação. Restava aos vencidos resistir à aculturação. Não existe nesta lógica a possibilidade da integração, pois isto significaria a concretização da conquista hispânica.

Bruit questiona a noção da miscigenação e o seu corolário, isto é, a criação de uma nova sociedade a partir da fusão de aspectos das culturas indígenas com traços da cultura europeia. A hipótese da miscigenação encobriria o fracasso relativo dos conquistadores perante as performances indígenas.  Esta abordagem supõe uma impermeabilidade cultural que impede as mesclas, as mestiçagens. Os espanhóis parecem vestir uma armadura cultural impenetrável, enquanto os índios fingem incorporar os novos valores para preservar alguma essência cultural de um passado longínquo. Algumas situações que sugerem um hibridismo entre formas religiosas indígenas e o catolicismo, Bruit vê um jogo de esconder indígena que teria “claramente” enganado os espanhóis. Recorrendo a um fragmento da crônica peruana de Poma de Ayala, revela as máscaras usadas pelos índios para ludibriar os conquistadores e agir sobre a sociedade que eles organizavam: “Que os mencionados índios bêbados, cristãos, sabendo ler e escrever, usando rosário, vestidos como espanhóis, com colarinhos, e parecendo santos, na bebedeira falam com o demônio e reverenciam as guacas, os ídolos e o Sol.”
         
Héctor Bruit não enxerga na descrição do cronista uma possível fusão do catolicismo com a espiritualidade andina, mas uma dupla atitude indígena. Os traços espanhóis e cristãos incorporados pelos índios são interpretados como um jogo de faz de conta, de aparência e opacidade, sugerindo um falso efeito de integração. Os gestos dos indígenas e dos conquistadores são percebidos exclusivamente a partir da relação colonizador/colonizado. Esta dicotomia, que secciona os sujeitos em identidades fixas, é tomada como um dado e não como categorias historicamente construídas, que respondiam a determinadas expectativas. Em estudos mais recentes de historiadores, antropólogos e etno-historiadores, têm-se sistematicamente apontado o eurocentrismo e o reducionismo destas abordagens. Examinando e revisitando o tema do encontro entre culturas, alguns pesquisadores vêm focalizando as mesclas culturais e as redefinições de identidades num mundo em transe pelos efeitos da conquista. Com isso, estão se multiplicando pesquisas que dedicam especial interesse pelas culturas indígenas e pelas formas como reagiram/interagiram com os europeus. Para além das construções binárias, e na esteira destes novos estudos, índios e jesuíta são vistos aqui a partir de uma multiplicidade de olhares, relativos à complexidade das formas de contatos que estabeleceram.
Ñezú e Roque González são os fios condutores privilegiados para refletir sobre as diversas faces deste encontro. Não os considero como representativos dos jesuítas e dos indígenas, tampouco de uma suposta cultura ocidental e outra indígena. Sob vários aspectos, o jesuíta crioulo que virou santo e o feiticeiro guarani perseguido e desterrado, são figuras singulares e deslizantes do universo colonial que escapam a uma tentativa de classificação: um como modelo de evangelizador, o outro como modelo de resistência indígena. Eles traduzem o jogo de interesses dos dois lados, as negociações e as fusões de horizontes simbólicos, que presidiu o colonialismo, quer sob o signo do conflito quer da conciliação. A morte do padre Roque é um acontecimento de enorme apelo simbólico que revela as incertezas, as angústias, as aproximações e as diferenças irredutíveis de ambos os lados do encontro. Por isso mesmo é um acontecimento que nos abre inúmeras possibilidades de interpretação sobre um tema já bastante visitado pelos historiadores.



segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

A NOVA “BOBAGEM” OU A ESQUIZOFRENIA SOCIOLÓGICA DE MARILENA CHAUÍ, A FILÓSOFA OFICIAL.


A NOVA “BOBAGEM” OU A ESQUIZOFRENIA SOCIOLÓGICA DE MARILENA CHAUÍ, A FILÓSOFA OFICIAL.

 


No último dia 13, em Goiânia, num evento conhecido como Café com Ideias, Marilena Chauí voltou a “teorizar” sobre a classe média brasileira. Em maio, num discurso proferido no lançamento do livro “10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil: Lula e Dilma”, ela manifestou, de maneira contundente, o ódio que sentia pela classe média. Agora voltou à carga, mas para desacreditar o surgimento de uma “nova classe média” brasileira.

Além de insistir no velho dualismo ortodoxo de classes que rege o mundo capitalista (classe trabalhadora X burguesia), Chauí sustenta que a “classe média” não tem função econômica, mas ideológica. A “classe média” é uma “correia de transmissão das ideologias das classes dominantes”. O uso da “correia de transmissão” (“cinta de material flexível, normalmente feita de camadas de lonas e borracha vulcanizada, que serve para transmitir a força e movimento de uma polia ou engrenagem para outras”) como metáfora para expressar o significado social da classe média é assaz revelador do mecanicismo desta visão de mundo. A ideia de uma “correia de transmissão”, dado o gosto pela simplificação, pode se converter num mecanismo de explicação que dispensa a pesquisa e a reflexão.

A “nova classe média”, que ela distingue da “antiga classe média”, é uma “bobagem sociológica”, já que foi uma ampliação da classe trabalhadora. Na sofisticada visão da filósofa, em termos sociológicos, tudo se resume a duas classes e seus epifenômenos. A classe média é uma ampliação da classe trabalhadora que funciona como correia de transmissão das classes dominantes (Entenderam?). Em maio de 2013 Chauí disse que odiava a classe média. Então deixa ver se eu entendi: o que ela odeia é, na verdade, uma “bobagem sociológica”?

A simplificação, a serviço da esquerda utilitária, beira a esquizofrenia. Assim é fácil explicar o mundo e suas “contradições”. Basta reduzir a realidade a duas categorias sociológicas e suas variações, definir quem esta a favor de quem (conservadores X progressistas) e está tudo resolvido. Se a realidade desmentir a tese, afirme, com a autoridade de uma filósofa, que tudo não passa de uma grande “bobagem”, e pronto. A militância acrítica espalha o novo evangelho nas redes sociais e molda a realidade de acordo com os surtos sociológicos da filósofa.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

REFLEXÕES SOBRE A “RESISTÊNCIA INDÍGENA” À DOMINAÇÃO ESPANHOLA NA AMÉRICA DO SUL.



REFLEXÕES SOBRE A “RESISTÊNCIA INDÍGENA” À DOMINAÇÃO ESPANHOLA NA AMÉRICA DO SUL.



As lutas e a “resistência indígena” à colonização espanhola são temas centrais da historiografia latino-americana. Todavia, parecemos desconhecer tanto os sentidos das lutas travadas no passado colonial quanto os deste início de século. A idealização das culturas indígenas e as projeções retrospectivas (que projetam, segundo Anna Roosevelt, o presente etnográfico para os tempos da conquista) talvez sejam ainda os maiores obstáculos à compreensão do que comumente chamamos de “resistência indígena” (As reflexões são extensivas à “resistência indígena” na América Portuguesa).

A contundência da conquista (séculos XVI ao XVIII) e os impactos sobre os povos americanos despertaram o interesse de pesquisadores do mundo todo, dedicados ao estudo das diferentes formas de resistência que, do México ao Rio da Prata, os indígenas ergueram contra a dominação espanhola. As abordagens concentram-se no México e no Peru, regiões de grande densidade demográfica convertidas em centros administrativos do poder colonial. Nestas regiões explodiram inúmeros e violentos conflitos contra conquistadores e colonizadores, que resultaram em quedas populacionais dramáticas. Ao mesmo tempo, produziu-se e conservou-se uma abundância de relatos sobre estes acontecimentos. As regiões periféricas, como o Rio da Prata, embora bastante estudadas, receberam bem menos atenção.

 A categoria “resistência” quase sempre é empregada para referir-se aos movimentos de contestação e oposição à dominação colonial. Na maioria dos estudos parte-se do binômio dominação/resistência, pressupondo a existência de pólos antagônicos – indígena e europeu – marcados por traços identitários bem definidos e inegociáveis. O que predomina é a lógica do conflito, do enfrentamento, como se as sociedades indígenas fossem sempre “opostas à sociedade colonial”. O desvio de comportamento é explicado por categorias como colaboração e cooptação. Como se o índio que rejeitasse e se opusesse à dominação colonial estivesse necessariamente defendendo sua cultura e falando em nome das populações indígenas, e aquele que buscasse a integração, ou alguma forma de adaptação, estaria colaborando com os dominadores. A dualidade que preside este olhar sobre o passado parece sugerir a existência de um eterno conflito entre potências luminosas, encarnadas nos movimentos de resistência, contra as forças do obscurantismo, reunidas em torno das elites dominantes, neste caso os conquistadores. Daí o romantismo que envolve os ditos movimentos de resistência. O campo de visão do passado, sob este ângulo apertado, que focaliza apenas os conflitos, fica demasiadamente estreito. O conflito é apenas uma das múltiplas facetas das relações colonizadores/colonizados.

 A lógica do conflito tem mais a ver com o olhar sobre o passado do que com o passado propriamente dito. Essa visão da “resistência indígena” projeta no passado certa idealização que reveste os movimentos indígenas com uma aura de heroísmo, dignidade e senso de justiça que mais se parecem com as demandas do presente sobre direitos sociais e políticos, a luta pela terra e por justiça dos ditos “excluídos” e “oprimidos”. Transfere-se para as lutas travadas no passado – que tinham lá as suas próprias razões – as expectativas a serem alcançadas no presente. Por vezes, a suposta “resistência indígena” é utilizada como fomento para certas empreitadas políticas, emprestando suporte histórico, por exemplo, para o chamado “Processo Bolivariano”, na Venezuela de Chávez, que instituiu em 20 de outubro de 2002, pelo Decreto Presidencial número 2.028, o “Día de la Resistência Indígena”. De acordo com um site bolivariano:

 “La resistencia indígena ante el colonialismo impuesto hace 512 años, ha sido una resistencia cultural e ideológica. Silenciada históricamente por las élites -y aún hoy por el aparato educativo, la iglesia y sobre todo por los medios de difusión masivos-, la resistencia contra el colonialismo y contra todas las ideologías dominantes en los actuales momentos es un proceso, una práctica, que debe ser asumida no sólo por los pueblos indígenas, sino por todos y todas las personas que quieren un mundo mejor.” (Ver: “Ideología, colonialismo y día de la resistencia indígena.” Disponível em www.aporrea.org/actualidad/a10082.html).

A autodenominada “revolução bolivariana” apresenta-se como herdeira das lutas indígenas contra o colonialismo. Instrumentaliza a “resistência cultural indígena” como antecedente legítimo da ruptura com “la matriz ideológica de la dominación ocidental” e com o capitalismo, que converte “todo en mercancía”. As referências pré-colombianas, devidamente selecionadas, e a suposta recusa indígena do modelo de civilização ocidental, são as âncoras históricas desses movimentos de ruptura com o colonialismo e com as heranças europeias. A “resistência indígena”, anacrônica, depurada, genérica e descontextualizada, vira estandarte desses movimentos. As rebeliões indígenas, transformadas num patrimônio metafísico das Américas, espécie de entidade transhistórica que flutua sobre as “consciências críticas” e as “forças de libertação”, são apresentadas como um ideal de defesa de uma cultura ameaçada e de luta contra todas as formas de dominação e exploração. 

Mas a noção de resistência aplica-se somente aos eventos de oposição à ordem colonial? Quando em 1609 o cacique Arapizandú procurou o governador Hernandarias para selar um acordo e pedir que enviassem missionários às suas terras com o propósito de predicar o evangelho e fundar reduções, com a condição de livrar seu povo da encomienda, ele estava colaborando, adaptando-se as novas circunstâncias, ou resistindo à “dominação espanhola” negociando com os espanhóis? (Arapizandú era cacique dos índios guarani, chamados na época de Paranáes, e estendia os seus domínios na região situada ao sul do Tebicuary e Sudoeste de Assunção). O cacique buscava uma forma de inserção na sociedade colonial envolvente, que não fosse a encomienda, manobrando nas fendas que se criavam entre as forças coloniais conflitivas: os jesuítas, a Coroa e os encomenderos. Nestes casos, adaptação e colaboração podem ser vistos como formas de resistência? Ou a categoria “resistência” diz respeito apenas às reações de contestação, oposição e conflito contra uma determinada ordem, como aquela que o cacique Ñezú moveu contra os três missionários da Companhia de Jesus, matando-os e declarando guerra ao cristianismo? (Ñezú era um poderoso cacique e feiticeiro que vivia na região do Pirapó, no Yjuí, atual Rio Grande do Sul. Na rebelião que moveu contra os missionários jesuítas mandou matar o padre Roque González e seus dois companheiros). A origem latina de resitência – resistentia – comporta diversos significados, entre os quais: oposição, reação, defesa e obstáculo. A lógica do conflito associada à palavra resistência não esgota a interpretação das estratégias indígenas frente ao colonialismo. Enfatizar um dos sentidos de resistencia é uma eleição do historiador. Os acordos contra o trabalho compulsório e pela manutenção de um espaço indígena livre da interferência espanhola – mesmo que para isso fosse necessário abandonar o antigo modo de vida – são também formas de resistência, mas defensivas e negociadas, que visam a adaptação, não a ruptura. Num estudo sobre a “resistência negra” no Brasil escravista, Eduardo Silva sugeriu que na “escravidão nunca se vivia uma paz verdadeira, o cotidiano significava uma espécie de guerra não convencional.” Nesta guerra, na qual escravos e senhores buscavam ganhar “posições de força”, a resistência à escravidão não se dava somente pela via do conflito, mas também por ela. “Ao lado da sempre presente violência, havia um espaço social que se tecia tanto de barganhas quanto de conflitos.” Entre Zumbi, que encarna a contestação violenta à escravidão, e Pai João, que representa a submissão conformada, desenrolavam-se inúmeras formas de resistência que podiam ir das negociações por um pedaço de terra para o cultivo dos escravos, a chamada “brecha camponesa”, às fugas e revoltas. A negociação, mostra Eduardo Silva, era uma posição intermediária entre a aceitação da escravidão e a ruptura pelo conflito. Era por meio de negociações com os senhores que os escravos inventavam o seu viver num mundo adverso que lhes reservava a condição de meros objetos de trabalho (Ver: SILVA, Eduardo e REIS, João José. Negociação e conflito: a resistência negra do Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1999). Com a licença do autor, diria que entre Ñezú, que se rebelou contra os missionários, e o índio que aceitou sem condições a evangelização, abre-se um leque de possibilidades de resistências. Entre a contestação violenta e a pronta adesão havia uma zona intermediária que oscilava entre a aceitação e a repulsa. E estas posições podiam mudar no decorrer do “jogo”. O pajé rebelde de hoje tornava-se o mais devoto e prestativo dos fieis amanhã, e o cacique batizado que confiara seu povo ao missionário poderia rebelar-se ao menor sinal de insatisfação (como ocorreu com Ñezú).

 John Monteiro, as vésperas do V Centenário do Brasil, fez uma bela proposição para se repensar a resistência e a história indígena:
 “Para se repensar a resistência dos índios, faz-se necessária uma reinterpretação abrangente dos processos históricos que envolviam essas populações. Mais do que isso, é preciso também reavaliar como os diferentes atores nativos criaram e construíram um espaço político pautado na rearticulação de identidades, contemplando evidentemente não apenas as formas pré-coloniais de viver e proceder, como também e especialmente a sua inserção – ou não – nas estruturas envolventes que passaram a cercear cada vez mais as suas margens de manobra. Assim, tanto as sociedades que se mantinham avessas ao contato, por assim dizer, como as que foram mais intensamente envolvidas nos esquemas coloniais tiveram que adotar novas formas de resistência, muitas vezes lançando mão de estratégias, retóricas e materiais buscados entre os europeus.”

Além da proposição, um chamado aos historiadores. A reavaliação das formas de resistência passa pela reconstrução detalhada dos cenários, ou “processos históricos”, nos quais estas populações interagiam com os colonizadores. A contribuição mais significativa que nós historiadores podemos oferecer ao estudo das culturas indígenas é exatamente esta reconstrução minuciosa das relações indígenas/colonizadores baseada numa leitura atenta e menos dualista da documentação colonial. 
 

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

O INACREDITÁVEL BARÃO DE MUNCHAUSEN DE TERRY GILLIAM. OU: O Discurso Cinematográfico Anti-Racionalista de Terry Gilliam.

O INACREDITÁVEL BARÃO DE MUNCHAUSEN DE TERRY GILLIAM. OU: O Discurso Cinematográfico Anti-Racionalista de Terry Gilliam.

Em plena “era da razão”, do progresso e do otimismo das luzes, uma figura lendária emerge das sombras, invade o palco de um teatro caindo aos pedaços, desafia os saberes constituídos, desdenha do racionalismo triunfante, desembainha sua espada e brada por um mundo menos lógico e mais poético, com direito a Cíclopes e Deusas de inominável beleza. É assim que Terry Gilliam nos apresenta o seu Barão de Munchausen (John Neville): um homem que se recusava a viver num mundo que desconfiava da imaginação e fazia da ciência e do progresso os carros-chefes da inexorável marcha da história rumo ao luminoso futuro que se anunciava. O otimismo racionalista entediava o Barão. Definitivamente, ele não se via vivendo num mundo guiado unicamente pela razão.
Munchausen não se opõe à razão propriamente dita (a faculdade subjetiva do pensar). Sua revolta é contra a perversidade da razão ou, se preferirem, a instrumentalização da razão, também conhecida como “razão instrumental”, identificada como instrumento de dominação, de exploração, de poder e de subjugação dos seres humanos e da natureza (A expressão “razão instrumental” foi cunhada por Max Horkheimer no livro “Dialética do Esclarecimento”, escrito em parceria com Adorno). O progresso técnico e científico não trouxe a tão desejada maioridade. A razão emancipatória sucumbiu e foi engolida pela racionalidade técnica. De instrumento de libertação humana na luta contra os obscurantismos, a razão foi convertida numa entidade tentacular castradora da autonomia individual que alcançou todas as esferas da vida social. O velho Barão, imaginado por Gilliam, se recusava a ser um número, um dado estatístico ou uma curva qualquer de uma massa quantificável, mensurável e controlável. Munchaussen é a crítica à hipertrofia da razão. A racionalidade tornou-se uma prisão lógica e abstrata. Munchausen pulou fora do festejado trêm do progresso e se refugiou na fantasia.
O filme de Terry Gilliam “As Aventuras do Barão de Munchausen”, de 1988, é livremente inspirado nas narrativas de Karl Friedrich Hieronymus, um nobre alemão que viveu entre 1720 e 1797. Karl Friedrich, o “verdadeiro” barão de Munchausen, foi pajem do duque Anton Ulrich de Braunschweig, acompanhando-o em campanhas militares na Rússia. Em 1840 foi promovido ao posto de tenente. Depois de 12 anos dedicados às armas abandonou o ofício e foi viver na propriedade rural da família em Bodenwerder, em Hanover. Os hóspedes e amigos que visitavam a família eram entretidos pelo barão que se deliciava em contar as suas aventuras nas guerras, nas caçadas e nas extraordinárias viagens, adornadas com mentiras e exageros extravagantes. Mas o velho Karl o fazia de tal forma, e com tamanha seriedade e naturalidade, que quem não o conhecia acreditava. O homem virou uma lenda e suas mentiras extraordinárias ganharam o mundo. Rudolph Erich Raspe, um bibliotecário de Hanover de péssima reputação, que levava a vida aos trancos e barrancos, sempre atrás de dinheiro, foi quem reuniu as narrativas do barão e as transformou em livro. Escreveu as aventuras do barão muito provavelmente por dinheiro. Outras histórias do Barão sobre caçadas foram reunidas e apareceram anonimamente em Berlim na revista Vade Mecum für Lustige Leute entre 1781 e 1783. Novas edições foram surgindo ao longo dos anos, com novos acréscimos, alguns inspirados na Vera Historia, de Lucian (escritor grego do século II), e sua narrativa satírica da viagem à lua, nas Voyages Imaginaires, de 1787, nas memórias do barão de Tott, nos voos de balão de Montgolfier e Blanchard, nas buscas pelas nascentes do Nilo de James Bruce e na expedição do capitão Phipps ao polo norte. Como bem disse Ana Goldberger, as narrativas sobre as aventuras de Munchausen são “uma colcha de retalhos. Raspe é responsável apenas por seu núcleo inicial, mas esse núcleo é dotado de tal força que os acréscimos não conseguiram estragar a obra” (As informações sobre as diferentes edições e os acréscimos às aventuras do barão foram retiradas da apresentação da obra “As Aventuras do Barão de Munchausen”, de Rudolf Raspe, com ilustrações memoráveis de Gustave Doré, publicada no Brasil em 2010 pela Iluminuras).



Terry Gilliam fez uso muito particular das aventuras de Munchausen e não se prendeu ao núcleo narrativo de Rudolf Raspe. Para criar o seu próprio Barão fez um recorte seletivo das clássicas aventuras: o desentendimento com sultão de Constantinopla, uma inacreditável viagem de balão, a viagem à lua, uma inesperada viagem ao interior de um vulcão, uma fantástica escapada do estômago de um peixe-mostro e um voo espetacular numa bala de canhão. Nas mãos de Gilliam as aventuras do Barão de Munchausen receberam um tratamento bastante original e foram inseridas num contexto discursivo de lutas anti-racionalistas. Michael Löwy usou, e usou com muita originalidade, diga-se de passagem, a figura do Barão, particularmente a narrativa em que ele se salva e salva o seu fiel cavalo Bucéfalos do afogamento erguendo-se das águas de um pântano puxando o próprio cabelo, como metáfora para desmistificar a objetividade científica sustentada pelo positivismo (Ver o belo livro de Löwy “As Aventuras de Karl Marx contra o Barão de Munchausen”). Terry Gilliam fez um caminho diferente e usou as aventuras do Barão para confrontar o racionalismo e uma de suas versões mais agudas e exacerbadas que foi o positivismo.
Gilliam, ex-integrante do grupo inglês Monty Python, é o que em cinema podemos chamar de “autor”. Seus filmes são inconfundíveis, caros, suntuosos, criam um mundo à parte e nem sempre atraem o grande público. “As Aventuras do Barão de Munchausen” é um bom exemplo. O filme custou entre 40 e 46 milhões de dólares e arrecadou apenas 8 milhões. Foi um fracasso retumbante de público, que contou com um boicote do estúdio (Columbia) que parecia torcer pelo fracasso do filme e do diretor. Mas convenhamos, os filmes de Gilliam, este em particular, não são para o paladar do público que lota as salas de cinema mundo afora para assistir blockbusters como “Piratas do Caribe".
O filme é grandioso nos enquadramentos, exuberante na cenografia e contou com a fotografia impecável do experiente Giusseppe Rotunno, que trabalhou com os mestres Fellini e Luchino Visconti (Ver a fotografia do incomparável Amarcord). Rotunno usou filtros e lentes para criar diferentes sensações em diferentes ambientes (no interior do vulcão usou cores quentes e fortes, no estômago do monstro que devorou o barão e sua turma criou uma atmosfera gélida para traduzir o ambiente hostil, etc.). Os efeitos especiais, produzidos à moda antiga, e as soluções cinematográficas são impagáveis.
Vamos ao filme?  
No começo do filme, em meio ao cerco fictício dos turcos a cidade (que parece ser uma cidade mediterrânea), uma Companhia de Teatro itinerante encena as aventuras do Barão de Munchausen para uma plateia que busca no teatro uma fuga para os horrores da guerra. Repentinamente, um homem bastante velho invade a cena e diz ser o verdadeiro Barão. Afirma que é a causa do cerco turco e que somente ele pode por fim à guerra. Com exceção de uma menina chamada Sally (a excelente Sarah Polley), que vive nos bastidores do teatro, todos insultam o velho chamando-o de lunático. Pacientemente, ele pede que todos se acalmem e escutem o que tem a dizer. O público se acalma e o velho começa sua narrativa. Tudo começou, há muito tempo, com uma aposta com um Sultão, que o recebeu no seu palácio. Munchausen provou do melhor vinho da adega do seu anfitrião, aprovou, mas afirmou que conhecia melhores. Divergências à mesa, propõe-se uma aposta: o Barão deve, em uma hora, apresentar ao sultão o vinho da rainha da Rússia (a quem teve a honra de declinar um pedido de casamento). Caso não consiga, o Sultão terá como prêmio a sua cabeça. Caso vença, poderá levar do tesouro do Sultão tudo o um homem puder carregar. O problema é que o vinho está na Rússia e eles em Constantinopla! Nada demais para quem tem como servos/companheiros homens com extraordinários poderes. Nas suas aventuras Munchausen sempre se fazia acompanhar de quatro amigos, que possuíam fantásticos recursos: Berthold, Adolphus, Albrecht e Gustavus.  Berthold (interpretado por Eric Idle, companheiro de Gilliam no Monty Python), rápido como o vento, disparou em direção à Rússia. Foi uma longa espera. Quando o último grão de areia pipocava na ampulheta Berthold chega com a valiosa garrafa. Aposta vencida, o Barão dirige-se com seus amigos para o tesouro do sultão. Adolphus, homem de incomensurável força, consegue limpar o tesouro e carrega-lo nas costas. Quando o Sultão soube da tragédia era tarde demais. Desde então ele está à procura do Barão. O cerco à cidade está explicado. O Barão é causa da guerra. Ou, poderíamos dizer: a guerra tem causas que a razão desconhece.

À medida que vai narrando suas aventuras o palco do teatro, como num passe de mágica, se metamorfoseia no harém do Sultão de Constantinopla. Já não distinguimos mais as fronteiras entre e a realidade e fantasia. E reside justamente neste ponto a força do filme de Gilliam. Imaginação e realidade se fundem de tal maneira que não podemos, ou não conseguimos, vê-las como esferas opostas e irredutíveis.


Depois de contar sua aventura em Constantinopla, e explicar as causas da guerra, o velho Barão promete salvar a cidadela. Para isso, precisa encontrar seus velhos companheiros de aventuras. Elabora um mirabolante plano de fuga para escapar ao cerco. Pede educadamente que as moças lhe emprestem suas roupas de baixo e constrói com elas um balão. A menina Sally, a única que de fato acredita no velho, se esconde no balão e, contra a vontade do Barão, embarca na jornada. Daí para frente ela vai ser o ponto de contato da dupla com a “realidade”. Ao mesmo tempo que, como criança, ainda tem um pé na fantasia, e acredita no Barão, Sally quer salvar a cidade e as pessoas queridas que lá deixou. Ela puxa o barão para a terra quando ele, deslumbrado com Afrodite ou desiludido com a humanidade, quer abdicar de vez do mundo.



A primeira parada da improvável dupla é a lua. Munchausen se lembra de ter deixado um dos seus companheiros por lá. Sally se mostra reticente, mas a naturalidade com o barão encara a situação a faz embarcar na fantasia. Na lua vivem o rei e a rainha. São figuras lunáticas e desmedidas, verdadeiras caricaturas platônicas. Vivem a eterna oposição do corpo com a alma. A cabeça, destacável do corpo, busca o conhecimento, as essências. O corpo, por sua vez, vive preso aos desejos e necessidades físicas. A cabeça almeja o cosmos, o corpo a impede. As cabeças, eventualmente, se separam dos corpos e se libertam para voos maiores. Mas uma coceira no nariz as faz lembrar o quão necessárias, por vezes, são as mãos.
Resgatado o amigo que ficou na lua, o trio parte em busca do restante da turma. A fuga da lua (o rei da lua, por ciúmes, quer matar o barão) é simplesmente um desafio munchauseano (acabei de inventar a palavra) às leis da física e ao conhecimento científico. O trio anda até a ponta de uma lua minguante e amarra uma corda na pontinha da lua para poder descer. No meio da descida falta corda. Aí entre em cena a criatividade fantástica do Barão que, sem opções, corta a parte de cima da corda e amarra embaixo. O plano só dá errado quando Berthold coloca a ideia do barão em xeque ao duvidar do plano. O trio despenca e cai no interior de um vulcão. A queda, segundo o Barão, foi amortecida por correntes de ar quente. No vulcão, representado como uma fábrica moderna na qual o deus Vulcano (Oliver Reed) explora a mão de obra de gigantes, eles reencontram Adolphus. Terry Gilliam cria uma sequência antológica ao reproduzir o nascimento de Afrodite, de Botticelli, no vulcão. A deusa (Uma Thurman, com 17 anos) emerge nua das águas no interior de uma concha, para o deslumbre do Barão. Rapidamente estabelece-se uma conexão entre eles (o Barão era um sedutor irresistível). Quando Vulcano, o enciumado esposo de Afrodite (Vênus), se dá conta, os dois estão dançando uma valsa a dez metros do chão.
Transtornado, o deus interrompe a valsa e arremessa os “intrusos” por um redemoinho para fora do vulcão. Inexplicavelmente, o Barão e sua turma acabam sendo jogados em algum lugar dos mares do sul. Estão agora em alto mar, à deriva. Avistam uma ilha e nadam em sua direção. A ilha começa a se mover e assume aspecto aterrorizante. Era um mostro camuflado. O grupo é engolido e lançado nas entranhas da criatura. Explorando o lugar descobrem que não estão sozinhos. Uma luz no fim do monstro revela habitantes mais antigos. Para surpresa de Barão os habitantes do monstro são seus antigos companheiros Albrecht e Gustavus. O grupo está, enfim, reunido. Festejam o reencontro, sentam-se a volta de uma mesa improvisada e se entregam a um eterno jogo de cartas. Simbolicamente a morte também esta sentada à mesa. Sally, sempre ela, lembra ao Barão que eles precisam salvar a cidade. Se dependesse do Barão aquela seria a sua última e coerente morada. O mundo da lógica e da ciência o aborrece. O estômago do monstro, e os velhos amigos reunidos, lhe parecem bem mais convidativos. Mas Sally insiste. O Barão não resiste aos apelos da menina e decide que chegou a hora de deixar o monstro. Mas como, todos perguntam? O Barão, claro, tem uma carta na manga. Tira um pote de rapé do bolso e sopra. O monstro entra em ebulição, se contorce e, por fim, jorra todos para fora num espirro épico! O grupo, com exceção do Barão, cai dentro de um bote. (Não me perguntem como. Não vamos racionalizar as aventuras do velho Munchausen. São como os antigos mitos. Ou, como diria Vico, são “impossibilidades críveis”). Todos procuram pelo Barão. De repente ele aparece emergindo do fundo do oceano, puxando o próprio cabelo, e montado no fiel Bucéfalos. A bordo do pequeno bote partem em direção à cidadela sitiada pelos turcos. Os amigos do Barão estão velhos e, aparentemente, perderam os fantásticos poderes. Como enfrentar o poderoso exército invasor? Num gesto calculado, Munchausen se entrega ao Sultão, oferecendo a cabeça em troca da libertação da cidade. O gesto é uma encenação. Os velhos amigos precisam de uma motivação. Quando se dão conta que o Barão vai ser decapitado os poderes ressurgem e a batalha assume uma dimensão extraordinária. De posse dos fantásticos poderes o grupo derrota o exército turco. A cidade está salva.

Do teatro das batalhas o Barão reaparece no palco do velho teatro. Sally olha para o velho que acabou de terminar sua narrativa e diz: “isso aconteceu mesmo?” O Barão olha para a menina e pisca. E anuncia para a plateia que a cidade esta salva. Ninguém acredita. O Barão exorta as pessoas a se dirigirem aos portões para verem com os próprios olhos. Abrem-se os portões e, para a surpresa de todos, os turcos foram derrotados e bateram em retirada.

Os lugares que o Barão visita, intencionalmente ou não, são lugares ainda não mapeados e controlados pela razão exploratória e esquadrinhadora. A lua, o centro da terra (vulcão) e os monstros (fundo do mar) pertencem mais ao reino da imaginação. Foi nestes lugares que o Barão foi buscar reforços para libertar a cidade dos turcos e, principalmente, do burocrata lógico que a governa. A guerra é contra os turcos, mas o grande inimigo do Barão não é o Sultão.  A guerra contra os turcos é a moldura que encerra o confronto entre a imaginação e o racionalismo. O administrador da cidade (Jonathan Pryce), que a governa cientificamente (que encarna um proto-ditador científico-positivista), é o arqui-inimigo do Barão. Ele repudia tudo o que escapa à fúria cartesiana das certezas e das verdades comprováveis. A guerra para ele, nas palavras do Barão, é um joguinho lógico.


Do começo ao fim do filme a morte, representada por um esqueleto vestido em trajes escuros e rotos, portando uma foice, persegue o Barão. A morte representa o viés totalitário da razão em sua obstinada luta para matar a imaginação. Logo após libertar a cidade o Barão é atingido por um tiro em meio às celebrações. A sequência é emblemática. O burocrata lógico, apoiando a arma no ombro da morte, dispara mortalmente contra o Barão. Essa foi uma de suas muitas mortes. Morto na realidade governada pelo administrador científico, o Barão renasce no teatro para terminar sua narrativa sobre o confronto com Sultão de Constantinopla. Onde termina a fantasia e começa a realidade?


O Barão de Munchausen (re)criado por Terry Gilliam é a resistência poética ao absolutismo da lógica. É a fertilidade da imaginação contra o deserto racionalista. É a libertação da fantasia contra as pretensões totalizantes da razão. É Vico contra Descartes. É um grito do fundo da fantasia contra a matematização do mundo. As aventuras do Barão, contadas por Raspe e tantos outros, são deliciosas e divertidíssimas. Nas mãos de Terry Gilliam essas aventuras, devidamente selecionadas, foram reunidas numa unidade narrativa, envolvidas por uma linguagem surrealista e articuladas por um discurso anti-racionalista. Gilliam sacou a singularidade das narrativas e o vigor das fantasias, criadas justamente num momento (século XVIII) em que elas eram rechaçadas, desqualificadas e lançadas no porão escuro das aberrações da “Idade da Razão”.

“As Aventuras do Barão de Munchausen” é a celebração da fantasia e um banho de imaginação na realidade nossa de todos os dias.

sábado, 26 de outubro de 2013

A REVOLUÇÃO BOLIVARIANA ANUNCIA O CAMINHO PARA A “SUPREMA FELICIDADE”. Ou: Seria a Felicidade o Estágio Superior do Socialismo do Século XXI?



A REVOLUÇÃO BOLIVARIANA ANUNCIA O CAMINHO PARA A “SUPREMA FELICIDADE”.  Ou: Seria a Felicidade o Estágio Superior do Socialismo do Século XXI?




Enquanto certos intelectuais da esquerda sul-americana (como Gilberto Maringoni) fazem verdadeiros malabarismos teóricos e semânticos para sustentar que o regime venezuelano é democrático, Nicolás Maduro parece esforçar-se para demonstrar o contrário. É constrangedor. É tão constrangedor que Gilberto Maringoni escreveu um texto no Opera Mundi afirmando que a Venezuela é democrática e não citou uma única vez o nome de Maduro. Citou Chávez duas vezes, citou os Estados Unidos, Snowden, mas não citou Maduro (Para afirmar a existência de democracia na Venezuela é preciso, antes, dizer que o sistema político norte americano “é pouco democrático”?). 

Uma ligeira digressão psicanalítica sobre o texto de Maringoni. Não acredito, neste caso, numa casualidade. A ausência do nome do atual presidente é significativa. É o lapso freudiano, conhecido por aqui como “ato falho” (Erros ou esquecimentos triviais na aparência podem comportar significados profundos). Os atos falhos manifestam desejos do inconsciente.  

A coleção de bravatas e gestos populistas baratos que Maduro acumula é formidável. Mas a situação começou a ficar realmente grave quando declarou que às vezes dorme junto ao túmulo de Hugo Chávez, onde consegue "ponderar calmamente" as suas ações. "Por vezes, disse Maduro, vou lá durante a noite e, na maior parte das vezes acabo por dormir lá". A devoção de Maduro por Chávez é conhecida, mas desta vez parece que foi longe demais. Claro. O homem não é bobo. Sabe que Chávez, mesmo morto, é o fiador do seu governo. As visitas ao túmulo do comandante, neste sentido, são calculadas e habilmente exploradas na mídia oficial.


De qualquer maneira, a declaração, embora excessivamente apelativa, não surpreende. Na campanha eleitoral Maduro afirmou que o presidente Chávez, recém falecido, apareceu na forma de um pássaro e voou à sua volta. Tínhamos ali um forte indício do caminho que o homem trilharia. Será que alguma cartilha bolivariana seria capaz de explicar, à luz do socialismo do século XXI, esta extraordinária aparição? 

O que esperar depois disso? Não duvidem do estafeta do chavismo, ele se supera a cada gesto. A Venezuela, claro, vai a reboque. A cada declaração, o país parece distanciar-se cada vez mais de qualquer definição de democracia. Menos para Gilberto Maringoni, para quem a combinação de progresso social com efervescência participativa é que solidifica a democracia venezuelana”. Maringoni só esqueceu o nome do atual presidente. 

Na quinta feira, em meio à grave crise econômica e de abastecimento, Maduro anunciou a criação de um vice-ministério para supervisionar os programas sociais do governo nas áreas da saúde, do esporte, da ajuda financeira aos mais pobres e de moradias populares. Os projetos do governo nestas áreas não são previstos na proposta de orçamento e estão fora do controle e da fiscalização do legislativo. O vice-ministério foi batizado de “Ministério da Suprema Felicidade Social”. O objetivo, segundo Maduro, é que as pessoas sejam "atendidas da forma mais sublime, sensível, delicada e amável por pessoas que se dizem cristãs, revolucionárias e chavistas". E num adendo místico complementou dizendo que é preciso chegar ao céu, onde está o ex-presidente Hugo Chávez. Entenderam? O vice-ministério, além de promover a felicidade na terra, seria uma espécie de condutor espiritual do povo ao paraíso, ao céu, onde o comandante descansa e zela pela revolução.

O novo ministério lembra os quatro ministérios da Oceania (de Orwell): Ministério da Verdade, da Paz, do Amor e Fartura. A diferença é que Maduro leva a sua criação a sério. 

O “Ministério da Suprema Felicidade” é de dar inveja em muitos ditadores. Kim Jong-il deve estar se perguntando: “Como é que eu não pensei nisso antes?” Pois é Kim, na Venezuela agora a felicidade é uma questão de estado. O estado é o demiurgo do milagre social da felicidade. E não é qualquer felicidade: é a “felicidade suprema”. Deve ser o estágio superior do socialismo do século XXI.

No mesmo ato de lançamento do vice-ministério, Maduro instituiu também o “Dia de Lealdade ao Legado de Chávez e do Amor à Pátria”. O dia escolhido para homenagear o comandante foi 8 de dezembro. “El 8 de diciembre, disse Maduro, será a partir de este momento el día de la lealtad y amor a Hugo Chávez, porque ese día vino a despedirse de su pueblo, aún con su dolencia vino con mucha serenidad y fuerza a despedirse de su patria". 8 de dezembro foi o dia da última aparição pública de Chávez. Na ocasião, designou Maduro como o seu sucessor. Mas é também, coincidentemente, o dia das eleições municipais, na Venezuela. A partir do próximo dia 8 de dezembro as eleições e a lealdade à Chávez serão inseparáveis. 8 de dezembro será um dia de “lealdade mobilizadora, quando o amor se expressará” na ação do povo que jamais faltará a Chávez, disse Maduro. Será que é esta forma de mobilização e lealdade que Maringoni chama de “efervescência participativa”? É possível considerar este tipo de mobilização mística da população, como vem ocorrendo desde os tempos de Chávez, como democrática?  


O 8 de dezembro se juntará às outras datas comemorativas do calendário bolivariano, como 28 de julho (aniversário de Chávez), 8 de agosto (data de sua entrada à Academia Militar) e 4 de fevereiro (dia do golpe contra Carlos Andrés Perez). A figura de Chávez se impõe de diferentes maneiras na cultura política venezuelana. A ocupação do calendário comemorativo é uma forma de manter viva a memória do comandante, do seu suposto legado e usá-lo como elemento de coesão e mobilização social para exorcizar os problemas e intimidar os inimigos.

O vice–ministério - a piada política pronta de Maduro - já caiu no gosto popular. O humor das ruas se encarregou de colocar a “coisa” no seu devido lugar. Victor Rey, vendedor ambulante de bananas, exprimiu, do seu modo, o lado folclórico da situação: 

"Só espero que um dia Maduro lance o vice-ministério da Cerveja para que eu e todos os bêbados fiquemos felizes".