EXISTE VIDA APÓS A MORTE PARA O CHAVISMO?
Lendo um artigo agora pela manhã sobre “o chavismo além de Chávez”,
fiquei me perguntando: será que existe mesmo vida para o chavismo depois da
morte do líder bolivariano?
Breves anotações, sem pretender enterrar prematuramente o chavismo.
As eleições na Venezuela confirmaram o que já sabíamos: a importância histórica
do carisma na América Latina. Líderes carismáticos, de diferentes tendências,
sempre arrastaram multidões ao sul do Rio Grande com promessas de participação
social e distribuição de riqueza. Alguns deles foram decisivos e adotaram
estratégias de desenvolvimento que resultaram em ganhos importantes. Outros
foram desastrosos. Uma coisa é certa, não subestimemos o carisma. Mas saibamos
reconhecer os seus limites. O carisma, como fenômeno político, tem vida curta.
A morte do líder, geralmente, encerra uma “era política”, e o que sobrevém,
como tendência, são períodos turbulentos. E carisma dificilmente se transfere.
Embora nunca tenha simpatizado nem nutrido algum tipo de expectativa
positiva em relação ao chavismo, como observador a distância considerava que,
na atual conjuntura, e dada a inexpressividade do opositor, a vitória de Maduro
era o melhor para a Venezuela. Mas como quase todo mundo, acreditava que a
vitória viria com uma margem mais expressiva de votos. Os Institutos de
pesquisa erraram (nenhuma surpresa). O momento exige autocrítica por parte dos
adeptos do chavismo.
O que a voz das urnas nos diz?
1. O chavismo morreu com Chávez.
Maduro e a revolução bolivariana amargaram uma grande derrota nas urnas
(perto de 235 mil votos de diferença), se pensarmos na vantagem de mais ou
menos 10% que Chávez sempre teve em relação à oposição. O povo venezuelano, eis
a lição, não apoiava a revolução bolivariana, ou o dito socialismo, mas a
figura carismática de Chávez. Não nos enganemos. O chavismo era Chávez e Chávez
era o chavismo. Não podemos falar de um movimento denominado chavismo que
sustentava Chávez no poder. O Comandante era a razão de ser deste movimento. Alguns
analistas insistem no “processo bolivariano”, como se o tal processo existisse
independente da figura de Chávez. O desejo dos intelectuais, jornalistas e
ativistas políticos que vestem a camisa do chavismo não pode ser traduzido, ou
confundido, como a expressão do desejo do “povo venezuelano”. Parece-me um erro
de interpretação.
1. A oposição saiu fortalecida das eleições.
Desaparecido o líder, o regime mantido pelo personalismo encolhe e a
oposição volta a crescer. A questão é: Maduro não é Chávez, não tem o carisma,
nem a liderança e muito menos o talento para a polêmica (e a poderosa oratória),
que o chefe bolivariano sabia usar como poucos. Vai conseguir governar com uma
vantagem tão pequena e com o evidente fortalecimento da oposição? O crescimento
da oposição não foi uma surpresa de última hora. Desde as eleições de outubro
de 2012 quando Capriles venceu o candidato chavista Elías Jaua, no estado de
Miranda, a oposição vem ganhando força. E a questão a ser respondida pelos
chavistas é: a que se deve este crescimento se o governo tem a radiodifusão e a
televisão estatal a seu favor? Como a candidatura de Capriles conseguiu a
metade dos votos do país contra a pesada máquina eleitoral oficial, o marketing
político que explorou até a última gota a imagem de Chávez e os apelos sobrenaturas
à figura do líder? Talvez tenhamos que examinar, para além do discurso oficial,
o que de fato acontece na Venezuela. Já não se pode dizer que a oposição e os
descontentes representam uma minoria privilegiada. E não. Desta vez não venham acusar
a tal da “mídia golpista” e os Estados Unidos pelo crescimento da candidatura
de Capriles.
2. Crise de legitimidade.
Chávez morreu, o chavismo enfraqueceu e a Venezuela pós Chávez dá sinais
de que tempos difíceis virão. O governo Maduro já nasce perturbado por uma
crise de legitimidade. A estratégia de Capriles de apontar milhares de irregularidades
ocorridas durante a votação e exigir a recontagem total dos votos cria um novo
fato político que vai surtir dois efeitos correlatos: atacar a legitimidade do
novo governo e munir a oposição de combustível político inflamável. Não podemos
levar a sério o discurso de Lula na Assembleia Legislativa de Minas Gerais
usando o exemplo de Kennedy, que foi eleito contra Nixon com apenas 0,01% de
vantagem, para minorar o mal estar provocado pela apertada vantagem de Maduro. A
comparação foi infeliz. Entendo as razões de Lula, mas o desejo do ex-presidente
não tem força política, por mais influente que ele seja, para mudar a
realidade.
3. Carisma não é revolução.
Apostar no carisma, e revesti-lo com ideais sociais que lhe são
estranhos, sempre me pareceu um jogo muito perigoso. Especialmente para quem
conhece o fenômeno. Confundir carisma com revolução social pode ter um alto
custo. E sabemos quem vai pagar o preço. O carisma, como bem disse Francisco
Carlos Teixeira, se esgota em si mesmo. O chavismo morreu com Chávez. Metade da
Venezuela está vivendo um sentimento de orfandade política e Maduro carece de
luz própria para dar nome a um movimento. O chavismo, na minha avaliação, não deixa
herança política e social em termos de organização popular da sociedade civil.
Ao invés de possibilitar o fortalecimento da sociedade e a organização popular
com autonomia, Chávez impôs-se com sua personalidade política e dirigiu o
“povo”, como um rebanho político, com promessas e, reconheçamos, algumas
conquistas sociais. Mas estas conquistas, sem o chefe que as sustentava, podem
se perder.
4. O culto sincrético político - religioso.
O chavismo, como movimento político, dificilmente sobrevive. Mas o culto
à Chávez tende a crescer em duas direções: como mito político e como fenômeno popular
de adoração religiosa. O recém-criado “Museo de La Revolución Bolivariana”, no
bairro “23 de enero”, reduto do chavismo, e as romarias de visitações, apontam
nesta direção. O “Museo” é um espaço de culto cívico à figura do líder, que
pretende imortalizar a sua herança e narrar a história da América, e da
Venezuela, sob a perspectiva bolivariana. Mas o que acontece espontaneamente
pelas ruas é o que mais chama a atenção. Desde sua morte, mas, sobretudo, desde
a semana santa, Chávez vem se transformando num ícone religioso. Nas tendas
esotéricas ao longo da Avenida Baralt, em Caracas, os admiradores procuram por
imagens santificadas. No país inteiro multiplicam-se as estampas mesclando a imagem
de Chávez com a de Cristo. Nas proximidades das igrejas, vendedores ambulantes
vendem imagens e postais associando as duas figuras. Maduro explorou esta
associação nas eleições ao declarar que Chávez era o “Cristo dos pobres”. Chávez
não foi o primeiro (aconteceu o mesmo com Che Guevara), e a associação de
personalidades políticas com o sagrado, com Jesus, não é exclusiva da esquerda
(ver, por exemplo, o caso de Tiradentes).
Um culto mágico-religioso combinado com patriotismo heroico, fundindo
política com religião, parece ser o futuro do chavismo. A “revolução bolivariana”,
com a morte do líder, tende a se converter, na sua versão popular, num altar cívico-religioso
em homenagem ao salvador. A mestiçagem religiosa na Venezuela, o fervor popular
e o culto dos bolivarianos em torno de um só deus (perdão, homem), criam um
ambiente bastante propício para a emergência de uma “religião chavista”. O
arcebispo de Caracas, cardeal Jorge Urosa Savino, preocupado com a santificação
em curso, fez um pronunciamento sobre as pessoas que improvisaram uma capela na
paróquia do bairro “23 de enero” para adorar o “santo Hugo Chávez del 23”. De
nada vai adiantar os apelos do arcebispo. A santificação popular do Comandante,
com o consentimento tácito das lideranças políticas afinadas com o chavismo, não
tem mais volta.
Torço para que Maduro se desprenda da figura de Chávez, não se torne
refém do jogo desestabilizador de Capriles e encontre um caminho próprio para
construir uma possibilidade de governo. Tarefa hercúlea. Sei não. Ele me parece
um tanto “Verde” para tamanho desafio. As primeiras manifestações públicas do
novo presidente revelam, na minha avaliação, um homem despreparado, impulsivo e
inseguro para governar a Venezuela até 2019. Tomara que eu esteja enganado,
pois Maduro ainda me perece a melhor saída. Não dá para levar Capriles a sério.
Deixo com vocês um
trecho do livro “God is Not Great”, de Cristopher Hitchens. Tirem suas próprias
conclusões.
“En unas sociedades que
ellos consideran saturadas de fe y superstición, los absolutistas comunistas no
negaban tanto la religión cuanto pretendían sustituirla. Esta elevación de
líderes infalibles que eran una fuente de infinita munificencia y bendición; la
búsqueda permanente de individuos herejes y cismáticos; la momificación de
dirigentes fallecidos como iconos y reliquias; los morbosos juicios públicos
que provocaban confesiones increíbles sirviéndose de la tortura... nada de esto
era muy difícil de interpretar en términos tradicionales. Ni tampoco la histera
durante las épocas de epidemias y hambrunas en las que las autoridades
desplegaban una búsqueda enloquecida de cualquier culpable menos el verdadero
(...) Ni tampoco la incesante evocación de un «Futuro
Luminoso», cuya llegada justificaría algún día todos los delitos y disolvería
todas las pequeñas dudas. «Extra
ecclesiam,nulla salus», como solía decir la antigua fe. «Dentro
de la revolución, todo. Fuera de la revolución, nada», como le gustaba subrayar
a Fidel Castro. De hecho, en las proximidades de Castro apareció una singular
mutación conocida como «teología
de la liberación», un oxímoron, según la cual los sacerdotes e incluso algunos
obispos adoptaron liturgias «alternativas»; que consagraban
la absurda idea de que Jesús de Nazaret era en realidad un socialista al corriente
del pago de sus cuotas”.
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