A “BESTA IMUNDA” À ESPREITA:
TOLERÂNCIA E APOLOGIA AO NAZISMO NO BRASIL DA “PÁTRIA
HONESTA”
Publicado originalmente no Portal Catarinas.
“Sempre
será uma das melhores piadas da democracia o fato de que ela dá aos seus
inimigos mortais os meios para destruir a si própria” (Goebbels).
“Ainda
é fecundo o ventre de onde surgiu a besta imunda.” (Bertold Brecht).
O
Nazismo não está morto. É brasa dormida. Para reavivar e pegar fogo de novo, em
novas circunstâncias, basta assoprar. O deputado Kim Kataguiri e o apresentador
Monark assopraram a brasa na semana passada, no podcast Flow, e reavivaram as discussões em torno da reabilitação
do movimento, defendida por simpatizantes em várias partes do mundo. Kim
sustentou que o nazismo não deveria ser criminalizado. Monark defendeu a
criação de um partido nazista, “dento da lei”. Depois da repercussão, ambos
negaram qualquer relação com o nazismo, e não tenho porque duvidar deles, mas
ingênua e irresponsavelmente contribuíram para manter a brasa aquecida.
Exatamente
por isso, as sociedades democráticas, que prezam pelas liberdades, pela vida e
pelo respeito à diversidade, se mantém vigilantes há décadas e construíram
defesas jurídicas para evitar que a “besta” adormecida desperte. O nazismo e
manifestações favoráveis ou apologéticas foram criminalizadas em vários países.
No Brasil, de acordo com o artigo art.
20, Lei 7.716/89, da Constituição
Federal, é crime “fabricar, comercializar,
distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou
propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do
nazismo”. A prática destes crimes prevê pena de reclusão de dois a cinco anos e
multa.
Demarcar claramente a
linha que separa a liberdade de expressão da apologia ao crime é um dos maiores
desafios para as democracias contemporâneas desde o pós Segunda Guerra.
Garantir a liberdade de expressão para alguns grupos, como os neonazistas, é
oferecer-lhes instrumentos democráticos para minar a democracia e a liberdade
de expressão. A Alemanha, berço do nazismo, e hoje um dos países mais
democráticos do mundo, proibiu em 1949 a exposição de símbolos e o uso de
linguagem e propaganda nazista. Na década de 1960 passou a ser crime
"incitar ódio e violência contra parcelas da população". A lei foi
atualizada para criminalizar também o racismo e o fascismo. Legalmente a Alemanha
pode ser definida como uma “democracia militante”, conceito desenvolvido num
importante artigo de 1937 pelo filósofo e constitucionalista alemão Karl
Loewenstein. Os regimes democráticos, sugeria Loewenstein, deveriam desenvolver
mecanismos (eis o sentido de militante) para evitar que líderes políticos
antidemocráticos se valessem dos instrumentos da democracia, como fez Hitler,
para se eleger e alcançar espaços de poder decisivos. Para Loewenstein, que
vivenciou a ascensão do nazismo, partidos políticos não comprometidos com os
valores e regras democráticas deveriam ser impedidos de participar de eleições,
pois poderiam provocar a ruína da democracia. Não custa lembrar que Hitler
chegou ao poder por meio de um partido, e com amplo apoio popular, mesmo assumindo
um discurso com feições totalitárias e dando claros sinais de que não
respeitaria as regras democráticas.
“O mecanismo da democracia”, alertava Loewenstein, “é o
Cavalo de Tróia pelo qual o inimigo entre na cidade.” A vitória do fascismo só
é possível se as condições favoráveis forem oferecidas pelo regime democrático,
pela tolerância democrática. Goebbel, ministro da Propaganda de Hitler, sabia
disso e viu na tolerância democrática uma piada autodestrutiva: “Sempre
será uma das melhores piadas da democracia o fato de que ela dá aos seus
inimigos mortais os meios para destruir a si própria”.
Para
superar certos limites e possíveis excessos de uma “democracia militante” foram
criada as noções de democracia defensiva ou de resistência, para se proteger da
ação de grupos ou organizações extremistas que pudessem oferecer riscos ao
estado democrático e de direito. Podemos claramente identificar esta defesa da
ordem democrática nas ações do STF contra as investidas autoritárias do governo
Bolsonaro, que demonstra absoluto desprezo pelos valores e princípios
democráticos conquistados à duras penas e firmados na Constituição de 88. Aliás,
a Constituição de 88, no artigo 17, garantiu princípio de defesa da democracia
contra possíveis “aventuras” autoritárias: “[é] livre a
criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania
nacional, o regime
democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana […]” (Constituição de 88).
Capa da Revista Isto É.
O
nazismo foi uma ideologia e um movimento, ou um sistema de crenças, do
tipo fascista, que emergiu da radicalização da direita antiliberal e
antidemocrática na Alemanha depois da Primeira Guerra. É expressão inequívoca e
totalitária da extrema direita. Infelizmente ainda é preciso dizer isso, e
afirmar o óbvio. Recentemente no Brasil ganharam corpo nas redes sociais
acaloradas discussões sobre o fundamento político do nazismo. Ativistas e
polemistas ligados ao bolsonarismo saíram em defesa da ideia vigarista de que o
nazismo era expressão política da esquerda e tinha as mesmas origens do
marxismo. É um falso e mal intencionado debate, fruto da desinformação e da
imaginação delirante, deflagrado pelas declarações
do presidente Jair Bolsonaro e do ministro das Relações Exteriores, Ernesto
Araújo, em 2019. O ministro afirmou, numa viajem a Jerusalém, na saída de uma
visita ao Museu do Holocausto, que novos pesquisadores apontam semelhanças
entre o movimento nazista e a extrema esquerda, e sugeriu que as pessoas
“estudem” e “leiam a história de uma perspectiva mais profunda”. Alguns dias
antes, numa entrevista ao "Brasil Paralelo", grupo que compartilha do
pensamento de Olavo de Carvalho, Araújo já tinha expressado sua visão
“exótica” da história: "Uma coisa que eu falo muito”, “é dessa tendência
da esquerda de pegar uma coisa boa, sequestrar, perverter e transformar numa
coisa ruim. É mais ou menos o que aconteceu sempre com esses regimes
totalitários. Isso tem a ver com o que eu digo que fascismo e nazismo são
fenômenos de esquerda".
Bolsonaro endossou a “tese”, na mesma viagem a Israel. Perguntado
por um jornalista, depois de visitar o Museu do Holocausto, se concordava com Araújo,
que afirmou que o nazismo foi um movimento de esquerda,
Bolsonaro disse que "Não há dúvida, não é? Partido Socialista, como é que
é? Da Alemanha. Partido Nacional Socialista da Alemanha.”
As declarações do presidente e do chanceler, manifestadas
publicamente em Israel, numa viagem diplomática, que tinha por finalidade
intensificar o intercâmbio entre os dois países na área comercial, e nas áreas
de ciência e tecnologia e cooperação em segurança pública e defesa, gerou
sérios constrangimentos diplomáticos. Opiniões que provavelmente circulavam em
ambientes privados, nos porões do bolsonarismo, foram elevadas à condição de
discurso oficial do governo brasileiro, ganharam o mundo e mais uma vez
envergonham o país internacionalmente.
A resposta do presidente ao jornalista foi, digamos,
inesperada. Explico-me. Não custa relembrar que Bolsonaro recebeu com
entusiasmo, em 2021, a deputada alemã de ultradireita
Beatrix Von Storch, neta de um ministro de Adolf Hitler (Revista Isto é). O
flerte do presidente com a nazismo não é de hoje. Ele já tirou foto com um sósia de Fürer e já declarou que o holocausto
poderia ser perdoado. Sabemos também que
mantém um vínculo histórico com os nazistas brasileiros, dos quais recebe apoio
há pelos menos 20 anos. Uma descoberta recente confirmou o que já se
desconfiava. A antropóloga Adriana Dias encontrou uma carta assinada por ele em
2004, publicada em 3 sites nazistas. Na carta, endereçada genericamente aos
seus apoiadores, o então deputado Bolsonaro se expressou nestes termos: “Todo retorno que tenho dos comunicados se
transforma em estímulo ao meu trabalho. Vocês são a razão da existência do meu
mandato.”
Para quem tem o histórico de aproximação e identificação com
o nazismo, e se diz inimigo feroz do comunismo, a declaração à imprensa veio
com certa surpresa. Imagino como não se sentiram os nazistas sendo chamados de
socialistas pelo deputado, agora presidente, que ajudaram a eleger? Isso nos
diz muito sobre o caráter volúvel e o severo grau imaturidade política do
presidente, que acusa o movimento que o apoiou daquilo que considera ser o seu
pior inimigo.
O documento descoberto por Adriana é uma prova robusta do apoio de neonazistas brasileiros
a Bolsonaro quando ele era um deputado obscuro e irrelevante. Parte da base
bolsonarista, portanto, há duas ou três décadas, é composta por neonazistas. O mandato do deputado Bolsonaro era alimentado pelo ventre da
“besta imunda”.
Além da tentativa farsesca de associar a esquerda ao horror
nazista, a vinculação do nazismo com o comunismo e o socialismo decorreu
provavelmente de uma confusão, proposital (?), com as nomenclaturas. O partido
nazista, como o próprio Bolsonaro disse, tinha no nome a expressão “nacional
socialismo” (Partido
Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães).
Mas não era uma identificação ou uma aproximação com o socialismo, ao
contrário. Hitler usou o socialismo para
atrair os simpatizantes da esquerda para as bases do nazismo. Era um jogo
retórico e estratégico, que se apropriava da nomenclatura e do força social dos
partidos de esquerda para alcançar seus eleitores e, ao mesmo tempo, dar um
golpe no marxismo.
Ao
contrário da “tese” esdrúxula plantada por Ernesto Araújo no debate público, o
movimento nazista teve berço muito distante e distinto do marxismo. Foi fundado
em Munique, em 1919, por ex-militares combatentes da
Primeira Guerra Mundial, como Hitler, abalados com a derrota da Alemanha. Na
década de 1920 o movimento cresceu e se fortaleceu combatendo, no discurso e
nas ruas, justamente a esquerda alemã, que na época contava com dois grandes
partidos, de tendências diferentes, com milhões de apoiadores (totalizando mais
de 11 milhões de votos): o Partido Social-Democrata e o Partido Comunista.
As
relações entre nazistas e comunistas eram tensas, violentas e marcadas, durante
a República de Weimar (1919 –1933), por intensos e sangrentos combates de rua. No
poder, os nazistas perseguiram implacavelmente a esquerda, em conflitos
promovidos pela SA e pela SS. Depois do famoso
incêndio na Reichstag, em fevereiro 1933,
Hitler aproveitou a oportunidade, culpou a esquerda e usou o incêndio para
reforçar seu poder alegando uma conspiração comunista para desestabilizar e
derrubar o governo. Dois filmes nazistas de grande sucesso exploraram os
combates entre nazistas e comunistas. O S.A. - Mann Brand, de 1933, dirigido
por Franz Seitz, homenageia Horst Wessel, membro da SS que combatia os
comunistas nas ruas de Berlim. Foi morto em combate em 1930 e elevado à
condição de “herói” e “mártir” por Goebbels. O filme narra a história do jovem
Brand, um motorista de caminhão que se juntou aos nazistas para defender a
Alemanha do motim comunista orquestrado por Moscou. Antes de morrer, vítima das
batalhas de rua contra os comunistas, Brand convenceu o pai, de tendência marxistas,
e a namorada, a defender a justa causa dos nazistas.
O
Jovem Hitlerista Quex, dirigido por Hans Steinhoff e
lançado em 1933,
conta a história de Heini, um jovem
alemão que, contrariando o pai socialista e alcoólatra, se converteu ao Nazismo e ingressou
na Juventude Hitlerista. Se celebrizou nos combates de rua entregando panfletos nos
bairros pobres de Berlim “infestados” de comunistas. Ficou conhecido com Quex
(mercúrio) pela destreza e velocidade, mas acabou sendo morto numa emboscada.
O
judeu e o comunista eram os arqui-inimigos do regime nazista. Marx, por conta
da origem judaica, era uma espécie de figura síntese do inimigo. “O Eterno
Judeu”, um dos filmes mais sórdidos produzido pelos nazistas, foi dirigido por
Fritz Hippler, em 1940, com o propósito de demonstrar cinematograficamente o
axioma de que os judeus são uma forma inferior da humanidade e expor a seu
verdadeiro caráter racial, uma raça de parasitas e criminosos que se esconde
por trás da máscara do europeu civilizado. A certa altura do filme, bandeiras
vermelhas entram em cena e a voz em off
do narrador sentencia que a juventude perdeu todos os valores nobres, “tudo
isso por causa de um judeu, Karl Marx”.
A
turma que pretende revisar a história ao seu bel-prazer e afirmar uma suposta
identidade do nazismo com o comunismo deveria assistir aos filmes nazistas,
especialmente os anticomunistas, antes de se pronunciar sobre o que desconhecem.
O cinema era a espinha dorsal da propaganda nazista e um instrumento poderoso
de atração e sedução. Aproximadamente 1350 longa metragens foram produzidos
durante os 12 anos do regime nazista, e uma parte significativa era de filmes
anticomunistas, que pintavam a esquerda como suja, corrupta e inimiga da
humanidade.
Política
e simbolicamente o nazismo era e continua sendo atraente, uma força sedutora
para capturar corações e mentes disponíveis. “É
preciso aceitar a ideia de que o nazismo era atraente e que atraiu como moscas
as elites intelectuais do país”, lembrou o historiador francês Christian
Ingrao, no livro “Crer e Destruir: Os intelectuais na máquina de
guerra da SS nazista” (2010). Desfazendo a ideia
equivocada de que o nazismo era conduzido por figuras sombrias e fracassadas,
Ingrao demonstrou que os intelectuais que formavam uma das principais
elites de Hitler, a SS, eram advogados, filósofos, linguistas, geógrafos, economistas,
historiadores e filósofos notáveis, jovens e cultos, com excelentes desempenhos
acadêmicos e oriundos das classes médias. Os jovens acadêmicos foram atraídos,
aderiam ao nazismo e ao seu “sistema de crenças”, engajaram-se fervorosamente e
ofereceram suporte científico e intelectual à ideia de refundação racial e
sociobiológica da Alemanha e às atrocidades cometidas pelo regime.
O estudo de Ingrao é importante para entendermos a receptividade
que as ideias da extrema direita e as teorias racistas e conspiratórias têm
entre parcelas da intelectualidade brasileira, agrupada em torno da figura de
Bolsonaro. Um número significativo de jovens, de diferentes áreas e com
formações acadêmicas relevantes (relações internacionais, diplomacia, direito, história,
e por aí vai) aderiram ao “sistema de crenças” do bolsonarismo e sustentam o
seu discurso ultra conservador, crescentemente autoritário, racista, homofóbico
e antidemocrático.
Essa adesividade não apenas reforça a tese de Ingrau
como nos alerta para o fato de que estas ideias continuam com grande poder de
atração.
A explosão e popularização das fake News, os ataques à democracia e as
instituições, o ódio racial, as violências de gênero, são sinais de que alguma coisa
“imunda” e perigosa está sendo gestada. A famosa frase de Bertold Brecht, “Ainda é fecundo o ventre de onde surgiu a besta
imunda”, nunca foi tão atual.
“Besta
imunda” foi a expressão criada por Brecht para designar a maldade, as formas
que ela assumiu historicamente e os monstros que seu ventre imundo pariu, como
o nazismo. A expressão apareceu pela primeira vez na peça/parábola “A resistível ascensão de Arturo Ui”,
escrita em 1941. A frase era um alerta de que as sementes da discriminação,
do ódio e da violência ainda eram férteis. O nazismo foi a encarnação histórica
da maldade, encarnada no desprezo profundo, bestial, pela diversidade étnica, de
gênero, a aversão à democracia e todas as atrocidades cometidas dentro e fora
dos campos de concentração contra gays, judeus, ciganos e outras minorias. Nos
campos de concentração os gays, por exemplo, eram vistos e tratados como a
escória. Sofreram perseguição brutal. Himmler, um dos mais perversos
homofóbicos que o nazismo pariu, dizia que o
assassinato de um homossexual não seria uma brutalidade e muito menos um
castigo. Era natural, era o destino destas pessoas. O chefão da SS enviava os
gays para Campos de Concentração para manter o sangue alemão puro. O “mal” da
homossexualidade “tinha que ser eliminado, assim como arrancamos as ervas
daninhas, jogamos em uma pilha e as queimamos”. Identificados com um triângulo
rosa, os gays era espancados, violentados, estuprados com pedaços de madeira e
humilhados frequentemente. Pierre Seel, um jovem francês preso quando os
nazistas invadiram a França, em 1942, sofreu os horrores dos Campos nazistas e
teve o intestino perfurado por um pedaço de pau. Conseguiu sobreviver e
escreveu o livro “Eu, Pierre Seel, Deportado Homossexual”. A extrema
crueldade dos nazistas foi denunciada por Seel no relato doloroso da morte de
Jo, seu namorado. O jovem foi despido, ridicularizado com um balde preso à
cabeça e, ao som de música clássica estridente, devorado por cães policiais da
guarda nazista.
Nas
palavra de Seel:
Dois homens da SS
trouxeram um jovem ao centro de nossa praça. Horrorizado, reconheci Jo, meu
querido amigo, que tinha apenas 18 anos. Eu não o tinha visto anteriormente no
Campo. Ele tinha chegado antes ou depois de mim? Não tínhamos nos vistos durante
os dias antes de eu ser preso pela Gestapo.
Agora eu congelei
de terror. Rezei para que ele escapasse de suas listas, de suas batidas, de
suas humilhações. E aqui estava ele, diante dos meus olhos impotentes, cheio de
lágrimas. Ao contrário de mim, ele não carregou cartas perigosas, cartazes
rasgados ou assinado qualquer declaração. Ainda assim, ele havia sido capturado
e estava prestes a morrer. O que tinha acontecido? Do que os monstros o
acusaram? Por causa da minha angústia, esqueci completamente a palavra da
sentença de morte.
Em seguida, os
alto-falantes transmitiram uma música clássica barulhenta enquanto o SS o
despia e enfiava um balde de lata em sua cabeça. Em seguida, eles incitaram
seus ferozes pastores alemães sobre ele: os cães de guarda primeiro morderam
sua virilha e coxas, depois o devoraram bem na nossa frente. Seus gritos de dor
foram distorcidos e amplificados pelo balde em que sua cabeça estava presa. Meu
corpo rígido se contorceu, meus olhos se arregalaram com tanto horror, as lágrimas
escorreram pelo meu rosto, rezei fervorosamente para que ele desmaiasse
rapidamente (SEEL, 1994. Tradução de Enzo Vieira).
As
pessoas que declaram alguma simpatia pelo nazismo, que relativizam ou defendem
o direito à manifestação, em nome da liberdade de expressão, ou são ignorantes
em relação ao que aconteceu na Alemanha ou compartilham dos mesmo valores.
Passados
80 anos, a frase de Brecht não envelheceu. Além de fecundo, o ventre tem se
revelado teimosamente longevo. As
manifestações de intolerância à diversidade e a profusão de discursos políticos
abertamente racistas que explodiram no mundo, e no Brasil, na última década, representam o retorno camaleônico da “besta imunda”,
gestada no ventre tolerante e permissivo de sociedades democráticas. Para
o filósofo francês Michel Paty, o reaparecimento
da “besta”, é um alerta e “um sintoma
inquietante da fragilidade de nossas sociedades e um lembrete de que
retrocessos são sempre possíveis.”
O
Brasil tem um histórico recente de manifestações apologéticas ou de tolerância
ao nazismo, que aumentou significativamente com a ascensão do bolsonarismo.
Desde 2019 ouve uma explosão de sites, segundo a Organização não-governamental
SaferNet/Brasil, inspirados e empoderados pelas falas e gestos do presidente. Só
em maio de 2020 foram criadas 204 novas páginas neonazistas. Comparadas com as
42 e as 28 páginas criadas respectivamente em maio de 2019 e 2018, o crescimento
é assustador. Para a Organização existe uma relação causal entre as
manifestações do presidente e o aumento vertiginoso das células neonazistas.
Não dá para descuidar.
O mal está sempre à espreita. Por isso, opiniões como as de Kim e Monark,
expressas para grandes audiências, são muito perigosas. A liberdade de
expressão que evocaram irresponsavelmente para defender o direito à livre
manifestação é, no mínimo, equivocada. A democracia não pode ser confundida com
um jogo de vale tudo. A liberdade não é um valor absoluto e seu exercício não é
pleno. É socialmente e historicamente limitado e construído na fronteira entre
as liberdades e os direitos individuais. Impor limites à liberdade de expressão
dos intolerantes não é um paradoxo da democracia, como tentam fazer crer os
doutrinadores desalumiados do bolsnonarismo. É uma estratégia de defesa. O
paradoxo é falso. Foi criado para confundir. O limite da liberdade de expressão
é a liberdade e a vida do outro, da outra. Não se pode, em nome da liberdade de
expressão, dar a alguns o direito de atentar contra a dignidade e a vida,
valores intrinsicamente ligados à noção de liberdade.
O filósofo Karl Popper,
na década de 1940, no contexto da grande guerra, já rejeitava a ideia de
garantir liberdades aos que podem usá-la contra a democracia. “A tolerância
ilimitada”, dizia Popper, “leva ao desaparecimento da tolerância. Se
estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos
preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância,
então, os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles".
O velho e bom argumento
de Popper põe por terra as frágeis opiniões e a ideia rasteira e confusa de
liberdade que os defensores da liberdade de expressão usam para defender o
direito de manifestação dos neonazistas. Aos inimigos da democracia e aos
intolerantes, à intolerância. É princípio basilar das modernas democracias que
toleremos ideias com as quais não concordamos. Mas isso tem um limite. Não
podemos aceitar ideias, ideologias e manifestações de ódio que colocam em risco
justamente os valores que foram historicamente construídos para detê-los.
Em certas
circunstâncias a intolerância é um dever e sua prática uma virtude. Tolerar o
intolerável é autorizar a intolerância. A intolerância seletiva e exercida
democraticamente é o “tratamento” que pode secar o ventre imundo da besta.
O historiador Christian Ingrau define o nazismo como “um sistema
de crenças que gera muito fervor,
que cristaliza esperanças e que funciona como uma droga cultural na psique dos
intelectuais.”
Recomenda a
leitura da Monografia de Enzo Vieira (Univali, 2020), intitulada “OS TRIÂNGULOS ROSAS:A perseguição e as
violências contra os gays na Alemanha Nazista, no contexto da Segunda Guerra
Mundial”.