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sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

 

O guarani “INCONSTANTE”, “infantil” e “imprevidente”: ARQUEOLOGIA DE um estereótipo jesuítico/colonial.

 

 

           Uma versão ampliada deste texto, com notas e referencias, foi publicado em 2024 na Revista Espaço Ameríndio. 

Época triste a nossa, em que é mais difícil quebrar um preconceito do que um átomo.

(Alberto Einstein).

A discriminação, o racismo e as diversas formas de violência sofridas pelos povos indígenas no Brasil, de norte a sul, no passado e no presente, tem como pano de fundo legitimador um conjunto de estereótipos, desumanizantes e marginalizantes, herdados dos tempos coloniais, que os infantilizam e os inferiorizam socialmente e intelectualmente. Pesquisas realizadas nos últimos anos demonstram que em diferentes regiões do Brasil os indígenas são vistos, de um modo geral, como selvagens, violentos, preguiçosos, ignorantes, aproveitadores e incapazes.

Embora a raiz etimológica remonte ao grego antigo (steros + typos), o termo estereótipo só apareceu no século XVII, associado à tipografia, para designar uma chapa de metal utilizada para produzir cópias repetidas do mesmo texto. No século XX, na década de 1920, o termo recebeu do jornalista Walter Lippmann a conceituação contemporânea. Explorando os sentidos etimológicos da palavra, do grego stereo, que significa sólido, firme, Lippmann, por analogia, salientou a rigidez das imagens mentais que construímos sobre grupos com quais não temos contato direto. Estas imagens, “a menos que a educação tenha nos tornado mais agudamente conscientes, governam profundamente todo o processo de percepção”. Desde então, os sentidos sociais, políticos e culturais do termo estereótipo vêm sendo desenvolvidos em diferentes campos do conhecimento.

Da maneira como empregamos o conceito, os estereótipos são crenças, ou um conjunto estruturado de crenças compartilhadas no âmbito de uma cultura ou grupo sobre os atributos ou características definidoras de outros grupos ou culturas, que contêm informações não apenas sobre estes atributos, como também sobre o grau com que tais atributos são compartilhados. Assim definido, estereótipo indica um modelo rígido a partir do qual se interpreta o comportamento de um sujeito social, sem se considerar o seu contexto e a sua intencionalidade. O estereótipo representa uma imagem mental simplificadora e congelada de determinadas categorias sociais. Funciona como um padrão de significados utilizado por um grupo na qualificação do outro.

Os estereótipos sobre povos indígenas são imagens cristalizadas herdadas, em grande medida, dos tempos coloniais, que se traduzem/desdobram, em nosso tempo, em discursos e práticas sociais ligeiramente modificadas que atentam contra a dignidade e a alteridade dos sujeitos. Apesar dos avanços promovidos pela Constituição de 1988, que lhes assegurou direitos, o respeito ao seu modo de vida e organização social e o reconhecimento do direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam, os “índios” ainda são tratados como cidadãos de terceira classe.

O efeito mais nocivo dos estereótipos é a naturalização de certas características negativas atribuídas aos indígenas, como preguiça, indolência, infantilidade, inconstância e incapacidade. Estas características, vistas como inatas, portanto insuperáveis, os tornariam inaptos à convivência em sociedades ditas desenvolvidas. O estereótipo opera uma simplificação esquemática das características presumíveis de determinados grupos. A eleição de um dado particular, e sua elevação à condição de enunciado coletivo, característico do reducionismo que subjaz à construção dos estereótipos, leva às generalizações esquemáticas e à caricatura cultural. Nos últimos anos indígenas de diversas etnias vêm se manifestado contra os estereótipos, especialmente em datas comemorativas e em celebrações populares. Em 2018, o artista visual Denílson Baniwa escreveu um Pai Nosso, na forma de um poema crítico e bem-humorado sobre o Dia do Índio, e iniciou uma campanha contra o uso de pintura facial com canetinhas hidrocor e cocares de papel. Em 2019, a ativista digital Katu Mirin lançou uma campanha, #ÍndioNãoÉFantasia, contra o uso de penas, pinturas corporais e cocares no carnaval. Para Katu, as referências aos indígenas não são homenagem, mas uma forma de racismo.

Como bem observou Maria Consuelo Cunha Campos, “entre a cultura que olha e a que é olhada se estabelece um espelhamento: eu olho o outro e a imagem que construo desse outro me devolve, como um boomerang, uma certa imagem de mim, de nós, imagem, que é, todavia, efetiva negação do outro”. O estereótipo, neste caso, enquanto definição negativa do outro, é, pelo efeito boomerang do olhar, a afirmação positiva do eu. É um jogo de construções identitárias que define o meu lugar e o lugar do outro no mundo, e os valores que orientam e regem estes mundos.

Tomando como ponto de partida um ensaio do linguista francês Alain Guillermou, que veio a público em 1973 e definiu os guaranis como imprevidentes e inconstantes, o post propõe uma arqueologia da matriz discursiva jesuítica e colonial responsável pela construção de um saber sobre os guaranis que atravessou os séculos, adaptando-se aos diferentes contextos históricos e intelectuais, e, surpreendentemente, alcançou a segunda metade do século XX. A proposição de uma arqueologia, aqui entendida como o desvelamento das condições históricas em que uma formação discursiva ou determinada maneira de pensar se configurou, é livremente inspirada em Michel Foucault. O procedimento arqueológico, adaptado ao estudo dos discursos sobre os guaranis, ao identificar a emergência de uma linhagem discursiva, e situá-la historicamente, possibilita o questionamento dos estereótipos, ou discursos fossilizados, e dos supostos atributos essenciais e transcendentais que definiriam a natureza do indígena.

  

A GÊNESE COLONIAL DO ESTEREÓTIPO

Num livro publicado em 1973, sobre Santo Inácio de Loyola e a Companhia de Jesus, o linguista francês Alain Guillermou perguntava retoricamente: “Quem eram então esses guaranis?” Seriam eles “selvagens terríveis” ou “bons selvagens”? Entre a visão depreciativa deixada pelos conquistadores espanhóis, que os pintaram com traços negativos que acentuavam sua ferocidade, e a visão romântica, que os imaginavam dóceis e próximos do “estado de natureza”, Guillermou procurou outra maneira de “ilustrar o caráter” dos guaranis. Desviou prudentemente das teses da ferocidade e da docilidade, mas deixou-se embalar por uma “anedota” carregada de etnocentrismo:

Uma vez, alguns guaranis fugiram de uma redução, levando consigo um boi e um arado. Encontraram-nos a alguma distância: com a madeira do arado haviam feito fogo e estavam comendo quartos de boi que haviam assado.

O que Guillermou quis dizer com esta “anedota”? Os índios que deixaram a redução levaram consigo e, logo em seguida, queimaram e devoraram o instrumento de trabalho que lhes garantiria a subsistência. O que se pode deduzir disso? O caráter, ou o ser do guarani, seria marcado por esta imprevidência, por este traço de inconsequência congênita? A “anedota”, recorrente na maneira de descrever os guaranis, sugere uma acentuada ingenuidade acrescida de natural incapacidade prospectiva. Guillermou não endossa nem a tese romântica nem a tese degradante do índio, mas deixa no ar que compartilha de uma visão ainda mais perigosa: a de que o índio, pela incapacidade de pensar prospectivamente, seria incapaz do auto-governo. Os guaranis que fugiram da redução, de onde eram tutelados pelos padres, escaparam dos ditames da razão previdente e retornaram ao seu antigo modo de vida. Donde se deduz que, longe das reduções e do olhar vigilante dos padres, os índios deslizam rapidamente para o abrigo das matas, abandonam os frágeis elos que os prendiam à cultura e voltam à inocência selvagem. Viveiros de Castro, analisando os discursos sobre a América portuguesa referentes à natureza inconstante dos “selvagens”, observou que a inconstância era “uma constante da equação selvagem”, que tornava exasperadora a tarefa de convertê-los. Os índios eram como “a mata que os agasalhava, sempre pronta a refechar-se sobre os espaços precariamente conquistados pela cultura. Eram como a terra, enganosamente fértil, onde tudo parecia se poder plantar, mas onde nada brotava que não fosse sufocado incontinenti pelas ervas daninhas.”.

A “anedota” é uma reedição do tema da natureza inconstante dos índios, muito constante nas narrativas coloniais e jesuíticas. É o eco do discurso colonialista e da velha incapacidade europeia de pensar o outro pelos seus próprios termos.

Mais do que indicar o ser/caráter do guarani, como sugeriu Alan Guillermou, que não se preocupou em citar uma fonte, a “anedota” talvez nos ajude a compreender melhor o caráter paternalista das reduções jesuíticas e, por que não, do olhar deslocado do intelectual. Na verdade, a “anedota”, de acordo com o caminho que percorremos, traduz a percepção e a pedagogia jesuítica no espaço reducional. Escavando em torno desta ideia vamos encontrar a gênese de um estereótipo colonialista, de matriz jesuíta, construído na experiência de evangelização dos guaranis.

A mais antiga narrativa que localizamos, que faz referência ao tema da “anedota”, vem do século XVII, das reduções guaraníticas do Paraguai. É um verdadeiro artefato arqueológico de um saber jesuítico sobre os guaranis. Antônio Sepp, missionário que atuou nas reduções do Paraguai entre 1691 e 1733, nos deixou páginas preciosas sobre a suposta ingenuidade guarani. De passagem pela redução de Japeyu, em julho de 1692, ouviu do missionário responsável pela redução uma história que o impressionou. “Não posso furtar-me a relatar”, diz o padre Sepp, “neste lugar, o que sucedeu a um missionário, há poucos dias. Deste fato pode-se inferir que este povo não tem previdência alguma, que tudo devora num dia e não cogita de que precisa viver também no dia seguinte.

Quando chega a época do amanho e da sementeira (...) o Padre dá de presente a cada índio duas ou três juntas de boi para o amanho da roça, que muitas vezes não vai além de quinze passos. A roça, sem dúvida, não é tão pequena por falta de terra, - porque esta não tem marcos nem cercas, mas está aí livre, para quem queira cultivá-la – mas por pura preguiça! E não dariam conta nem deste pedacinho de roça, deste punhado de terra, se o Padre não apertasse o agricultor preguiçoso com sovas e inspeções incessantes. E não amanhariam este punhado de terra nem em dois meses e mal fariam um carreiro por dia, mas pendurariam sua rede entre duas árvores e fariam folga perpétua.

Numa dessas inspeções o padre avistou de longe a fumaça e logo sentiu o cheiro de carne assada. O índio, sentindo-se culpado ao avistar o padre, “começou a tremer”. Um dos bois já havia sido devorado e a roça mal começara a ser lavrada. “Se o Padre quer que o agricultor preguiçoso e seus filhos tenham o que comer o ano todo, precisa não fazer caso e dar-le outro boi”, diz o padre Sepp, e acrescenta:

Este fato se deu a pouco tempo com um Padre, e fatos semelhantes se dão todos os anos. Aos europeus isto parecerá incrível, mas aqui entre nós é a dura verdade, que os índios deixam, por pura preguiça, estragar as espigas de milho maduras e amarelas, se os Padres não os ameaçam expressamente com 24 pancadas de sova como castigo. Se alguém pergunta: de que maneira costumais castigar esses índios? Respondo brevemente: Como um pai castiga aos filhos que ama, assim castigamos os que merecem.

O que Guillermou chamou de “anedota”, padre Sepp relata num tom grave, edificante e pedagógico. O índio glutão e imprevidente, após o castigo corretivo, redimiu-se, beijou a mão do padre e em reconhecimento teria dito as seguintes palavras: “Meu Pai, mil e dez mil vezes te agradeço que por teu castigo paternal me abriste o juízo e me tornaste no homem que antes não fui.” O arrependimento e a gratidão do índio é a certeza do padre/pai da necessidade da tutela

A batalha do padre Sepp contra a inconstante dos guaranis era a mesma que os primeiros missionários jesuítas que evangelizaram no Paraguai travaram. Nas cartas anuas referentes aos anos de 1637 a 1639, organizada pelo padre Provincial Lupércio de Zurbano, os combates contra os antigos costumes ocupam uma parte considerável dos relatos. Tomemos um exemplo bastante ilustrativo. No “Pueblo” de “Nuestra Señora de Fé” a situação era quase incontornável, e os padres, mesmo trabalhando duro, não viam melhorias animadoras:

Ya cerca de dos años habían trabajado los Padres desesperadamente, y todavía no se vió mejoría de costumbres, tan indomable es esta gente, tan dura de cabeza, y de tanta bajeza de caráter. No les entran consejos de los Padres. Así es espantosa entre ellos la borrachera, haciéndose un brebaje fermentado de miel silvestre aumentando su eficacia para embriagar cierta flor del campo, de donde sacan la miel las abejas. A consecuencia de esta ebriedad son frecuentes abortos, peleas, asesinatos, y a veces verdaderas batallas entre las diferentes tribus de indios.

Na mesma carta o Provincial prossegue descrevendo a difícil luta dos padres contra os costumes herdados dos antepassados:

Se aburren de la doctrina cristiana y de los misioneros, sin que por esto se desanimen nuestros Padres en su empeño de evangelizarlos.

Las mujeres de estas tierras son desvergonzadas. Borrachas, la cara horriblemente pintada, bailan unas danzas verdaderamente abominables. Al reprenderlas después nuestros Padres por estos abusos, contestan con atrevimiento: Callate, Padre, tú también harás pronto lo mismo que nosotros.

Dicen además, que se marchen los Padres a buena hora, cuando no quieren conformarse con nuestras costumbres. Nosotros nunca dejaremos estas costumbres y viviremos como hemos aprendido de nuestros antepasados. Tenemos que multiplicar nuestra raza teniendo muchas mujeres.

O apego aos antigos costumes e a inconstância dos indígenas dificultava o trabalho dos missionários. Padre Zurbano queixou-se dessa inconstância algumas vezes. Chegou a dizer que “nada tiene consistencia en este mundo”. Ao mesmo tempo em que mostravam disposição para ouvir as palavras dos missionários, com muita facilidade esqueciam a mensagem evangélica e voltavam as velhas práticas.

Em 1731, em visita às reduções do Tape, cem anos depois da carta do padre Zurbano, foi a vez do missionário José Cardiel registrar o “débil y defectuoso entendimento” dos Guarani. Son hombres de un día”, atestou Cardiel, “no discurren las consecuencias de lo futuro”. Devoram numa única refeição o alimento que duraria até quatro meses. Desperdiçam e dão tudo o que tem: “a ese modo es el porte del indio en la providencia económica”. Ao invés da narrativa do boi e do arado, deixada por Sepp, Cardiel usa como exemplo da inconstância selvagem o “caso” dos carneiros:

Es tiempo perdido el usar largos discursos con ellos, ni razones sobre razones. Lo que aprovecha es decirles poco y muy trivial y material en sermones y confesiones, y aun en cosas materiales. Pondré un solo caso: aunque cada día me suceden a mí otros semejantes. Un Padre párroco le dio a guardar a un indio diez carneros, encargándole que cada semana trajese uno para él y su compañero. Hízolo así cinco semanas: y a la sexta vino diciendo que ya se había acabado. Díjole el cura: Cómo puede ser eso? Yo te di diez. – Es verdad, respondió. – Cada semana no has traído más que uno, y sólo cinco semanas los has traído: luego no has traído más que cinco. – Es verdad todo. Si de diez no trajiste más que cinco, quedan otros cinco. Dónde están esos? Respondió: - Tú los comiste. Volvió el Cura en toda forma: A quien de diez no le traen más que cinco, le quedan otros cinco: tú no trajiste más que cinco, etc: y siempre respondía: Tú lo comiste, después de haber concedido todo lo antecedente.

Embora tenha se passado um século, a percepção jesuítica a respeito dos guaranis permaneceu inalterada. O que talvez se explique pela continuidade do projeto reducional e do mesmo espírito paternalista da Companhia de Jesus.

Mas não foram apenas os jesuítas que registraram está impressão negativa sobre a personalidade fugidia dos indígenas. Cinquenta anos depois da dispersão das missões, o viajante naturalista francês August de Saint-Hilaire, em viagem pelo Rio Grande do Sul, observou entre os guaranis o mesmo traço de personalidade identificado pelos jesuítas e a completa ausência da noção de futuro. Passando pela região das missões, em 1822, registrou uma variação da “anedota”:

Os guaranis, como todos os índios, não têm nenhuma idéia de futuro: aprendem com facilidade o que se lhes ensina, mas não criam nem compõe nada. De índole dócil, obedecem sem dificuldade, mas seu caráter não têm nenhuma fixidez; vivendo só do presente, não podem ser fiéis a palavra empenhada; não possuem nenhuma elevação de alma; são estranhos a qualquer sentimento generoso; ainda menos de honra; não têm ambição, cobiça ou amor próprio. Se alguma vez economizam, é sempre por muito pouco tempo. Um guarani, por exemplo, consegue comprar, por suas economias, uma roupa que pode abrigá-lo, durante longo tempo, das intempéries, mas logo depois a trocará por uma vaca, da qual nada restará ao fim do dia.

O ponto de vista, desta vez, não é o de um jesuíta, que poderia ser qualificado como suspeito. O juízo foi emitido por uma autoridade científica, um viajante naturalista, de renome internacional e amplo reconhecimento. Ecoando os poderosos juízos emitidos por Buffon e De Pauw sobre os americanos, Sain-Hilaire fez um diagnóstico sombrio, pessimista e inexorável da situação em que se encontravam os guaranis. A sentença final não deixou dúvidas: “A civilização não nasceu para índios.” Imprevidentes e sem visão prospectiva, os guaranis eram, para Saint-Hilaire, comparáveis as crianças. Mas a criança, porém, desperta o interesse porquanto será homem um dia. O viajante ilustrado não vê saída para o impasse criado pelo colonialismo. Os guaranis encontram-se, pois, encurralados numa espécie de limbo evolutivo, a meio caminho entre a civilização e a selvageria. A vida na floresta não lhes é mais possível, a vida em sociedade lhes é inatingível.

O cronista e historiador jesuíta Pablo Hernández, no início do século XX, também deixou um quadro nada lisonjeiro dos guaranis. À total incapacidade de previsão, acrescenta o estado de decadência moral em que se encontravam. O mais notável, avalia o historiador, é que nos primeiros anos de vida a criança guarani anuncia-se como uma promessa. A docilidade, a facilidade para aprender e a disposição prenunciam um “feliz desarrolho”. Mas com tempo, com o passar dos anos, percebe-se que os guaranis estacionam e voltam para trás, “tornándose incapaces e ininteligentes como los mayores, y perdiendo también la gracia y prontitud de aprensión, se volvían broncos y adquirían la tosquedad de los demás índios”. Hernández observa os índios com os olhos de Cardiel e endossa o juízo do padre com a chancela dos “profesores del evolucionismo”. A respeito da imprevisão, nada “muestra mejor ese carácter que la descripción que él hace P. Cardiel: No hay remédio da hacerles prevenir lo futuro, de que guarden el sustento para todo el año”.

El major trabajo es hacer que hagan buena sementera: porque como el pobre índio no considera lo que há de durar el año, y su ánimo es sumamente flojo, aniñado é inadvertido, con un poço que tenga, ya está más contento.

Carlos Dante de Moraes, crítico literário e ensaísta riograndense, dedicou um ensaio ao caráter dos guaranis sob o regime missioneiro. Publicado em 1959, o ensaio procurava aplicar conceitos da psicologia ao estudo dos “povos primitivos”. Considerava o guarani de caráter “flutuante e incerto”, tudo nele era duvidoso e tosco. Por mais que os padres se esforçassem, afirma Dante, “jamais conseguiriam tornar o índio capaz de nutrir-se e vestir-se por seu exclusivo labor e iniciativa.” Deixados a si mesmos, sem o olhar vigilante do padre e a disciplina dos açoites, andariam nus e famintos. Não demonstravam a menor aptidão para tirar partido da terra fértil”. Quanto à criação de animais, não possuíam previdência alguma. Usou o mesmo exemplo de Guillermou para traçar um quadro sorumbático da psicologia guarani: “Comiam o boi que lhes davam para rotear o solo, assando-o no próprio arado, que servia de lenha. Das vacas leiteiras, devoravam a cria, perdendo o leite, e logo depois sacrificavam a mãe.”

De Sepp à Guillermou, a imagem do índio inconstante destruindo o arado e devorando o boi, e as variações sobre este tema, se repete insistentemente. A repetição da narrativa, inicialmente como passagem edificante, depois como um traço insuperável da condição “selvagem” e, por fim, como “anedota”, congela uma imagem estereotipada e a-histórica no tempo e passa a definir o caráter dos guaranis. Distintos saberes, de diferentes origens, foram articulados e mobilizados para a construção e manutenção desta imagem: o saber missionário e histórico dos jesuítas, os conhecimentos do naturalista francês e o saber literário. É do cruzamento e da naturalização destes saberes que os estereótipos prosperam.

O estereótipo, principal estratégia discursiva do saber/poder colonial, fixa uma imagem do colonizado, geralmente expressa em termos excessivos, ou anedóticos, e a repete à exaustão em diferentes conjunturas históricas e contextos discursivos. A repetição descontextualizada acaba produzindo um efeito de naturalização. Os estereótipos acabam por produzir um conhecimento do outro como se fosse um negativo da imagem do colonizador. O discurso colonial, conforme o caracterizou Homi K. Bhabha, é “um aparato que acende o reconhecimento e a negação das diferenças raciais-culturais-históricas”. Sua função precípua e “estratégica predominante diz respeito à criação de um espaço para a ´subjetividade das pessoas´ através da produção de conhecimentos em termos de a vigilância ser exercida e a forma complexa de prazer-desprazer, incitada”. A finalidade do “discurso colonial se concentra em construir o colonizado como população de tipo degenerado, tendo como base uma origem racial para justificar a conquista e estabelecer sistemas administrativos e culturais”.  

Alain Guillermou, numa típica leitura essencialista e colonialista, reproduziu um “discurso colonial”, de matriz jesuítica, na forma de uma “anedota”, como se fosse um dado natural do “caráter” dos guaranis, sem se preocupar em situá-lo historicamente ou mencionar a fonte. O efeito da repetição descontextualizada é a naturalização de atributos presumíveis dos guaranis à condição de traços fundamentais da sua essência e caráter. A naturalização define e autoriza uma representação sobre os indígenas que, por diferentes caminhos, encontra aderência no imaginário social e se manifesta em diferentes ambientes. Sob vários aspectos, a “anedota” do arado constituiu uma poderosa matriz discursiva que sustenta, até hoje, o imaginário corrente do índio preguiçoso e inimigo do trabalho.

Localizar a gênese histórica de um estereótipo, e perseguir as suas manifestações em diferentes contextos, é um passo metodológico fundamental para a desconstrução das imagens poderosas que eles carregam. A jocosa “anedota” utilizada por Guillermou para ilustrar o caráter dos guaranis, devidamente localizada, abre-nos a possibilidade de rastrear as pistas de uma linha discursiva, de matriz jesuítica-colonial, que alcançou os viajantes naturalistas do século XIX e se consagrou na historiografia e na literatura do século XX. O discurso colonial, cuja faceta mais perversa é a construção do colonizado como incapaz e degenerado, se perpetuou nestes estereótipos que articulam uma forma sutil de dominação, muitas vezes camuflada de proteção.

segunda-feira, 7 de março de 2022

 

TransUcrânia: a guerra contra a transfobia no interior da guerra imperial do Putin.

 

Prédio no centro de Kiev

O guerra do Putin contra a Ucrânia é destacadamente o assunto mais comentado na mídia internacional e nos principais veículos de comunicação no Brasil. Diferentes aspectos da guerra são exploradas à exaustão, com destaque para as estratégias de ataque e defesa, os horrores enfrentados pela população, a ameaça de uma guerra nuclear e as tentativas de negociação. (Quase) nada escapa à hiper-cobertura da imprensa mundial. A guerra é transmitida ao vivo, 24 horas, e mobiliza, sem reservas, recursos humanos e novas tecnologias de captação e transmissão de imagens via satélite, que transformam o horror da guerra num espetáculo televisivo depurado e estranhamente convidativo. Um lado menos atraente da guerra, no entanto, vem sendo esquecido e/ou ignorado: a luta da comunidade trans para sobreviver à guerra e à transfobia. É uma guerra invisível contra o preconceito e a violência de gênero, travada no interior e à margem da guerra-espetáculo.

Fugindo da guerra, parte da população ucraniana que vive nas áreas e cidades mais atingidas pelos conflitos, está atravessando as fronteiras para os países vizinhos, que se mostram solidários e receptivos. Mas a saída pela fronteira não é para todo mundo. Pessoas trans, que já fizeram a transição de gênero, e estão tentando buscar um lugar mais seguro para viver, não estão conseguindo deixar o país porque os militares ucranianos não aceitam os documentos, que ainda trazem a identificação do gênero masculino e os nomes de batismo. Para estas pessoas a fronteira não é trans (do prefixo grego que significa “através”, “além de”, e sugere a possibilidade da travessia, de “atravessar para o outro lado”). A fronteira ucraniana é uma barreira física transfóbica, não um lugar de passagem para longe da guerra.

Segundo diversos grupos de direitos humanos, o reconhecimento legal da identidade de gênero é demorada, humilhante e abusiva na Ucrânia. Por isso, a maioria trans ainda usa os documentos antigos. Ao longo do processo de redesignação de sexo, um conjunto extenso de exames psiquiátricos, que violam a privacidade e a integridade física das pessoas, são exigidos pelo governo para a realização da cirurgia e a obtenção dos documentos. Em alguns casos, elas ficam confinadas por meses em instituições psiquiátricas, submetidas a testes psicológicos e físicos para comprovar o seu gênero. Uma nova legislação foi proposta em 2017, para facilitar o processo, mas as novas regras, de acordo com Human Rights Watch, não saíram do papel. Um importante Relatório elaborado em 2021 pela Nash Mir aponta a pressão dos conservadores e da extrema direita sobre o hesitante presidente Zelensky. Aponta também a omissão e o incômodo silêncio da imprensa sobre casos de violência contra a comunidade LGBTQIA+. O Relatório chama a atenção ainda para o silêncio em torno das manifestações abertas e agressivamente homofóbicas de políticos ligados ao Servo do Povo, partido governista, e ao partido Plataforma da Oposição.

Em 2021 a Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexuais, também apresentou um Relatório informando a descontinuidade da elaboração do novo protocolo de saúde para pessoas trans e denunciando uma ofensiva intimidatória de grupos de extrema direita.

A guerra contra a transfobia é anterior a invasão russa e certamente vai continuar depois dos acordos de cessar fogo. O inimigo doméstico encara o combate à transexualidade como uma cruzada moral, tem força parlamentar, poder de intimidação e conta com o silêncio cúmplice da imprensa. A deflagração de guerra pelo também homofóbico Vladimir Putin colocou a população trans ucraniana numa condição de abandono e vulnerabilidade ainda maior, lutando em duas guerras, em duas frentes. Na guerra doméstica o adversário é conhecido, e controla as fronteiras, impedindo a passagem. Mas a violência não ocorre apenas nas fronteiras. A discriminação também vem sendo denunciada ao longo da jornada migratória. A violência é continuada[1], permanente e acompanha a população trans do lugar onde mora às fronteiras e vai além. Buscar refúgio em países como a Polônia, Hungria, Romênia e Eslováquia, onde a identidade trans é “ridicularizada”, segundo uma ucraniana não-binária, pode envolve-las em outras guerras em território estrangeiro. A perseguição à comunidade LGBTQIA+ cresceu muito nos últimos anos nestes países, incentivada pelas ações e declarações de líderes políticos como Viktor Orbán (Hungria) e Andrzej Duda (Polônia).

Os depoimentos que a cantora ucraniana Zi Faámelu deu à Vice World News, no dia 2 de março, tem corrido o mundo por caminhos alternativos e chamado a atenção para esta dimensão invisível da guerra.  Ela está presa em sua casa, quase sem comida e com medo de sair. No depoimento, denunciou o abandono de pessoas como ela e fez um apelo: “Pessoas trans agora se sentem esquecidas, negligenciadas, abandonadas. Nós realmente somos invisíveis no momento. Nós precisamos das Nações Unidas, nós precisamos de organizações dos direitos humanos. Precisamos de pessoas para nos ajudar a sermos percebidos. Há centenas de nós presos assim, vivendo vidas miseráveis. Precisamos de alguma influência do exterior. Precisamos que as pessoas escrevam para seus políticos e instituições de caridade para nos ajudar.”

A situação é tão desesperadora e perigosa para estas pessoas que grupos de direitos humanos estão aconselhando a abandonar suas identidades para poder sair da Ucrânia. Ficar pode ser uma “escolha” ainda mais aterrorizante, disse uma mulher trans. As autoridades estão impedindo os homens de 18 a 60 anos de deixar o país. Não reconhecidas como mulheres, elas podem ser forçadas a se juntar ao exército, “como homens”, para enfrentar os russos, numa guerra que não é delas, ao lado dos seus piores inimigos.

Passaporte de Zi Faámelu.



[1] Conceito tomado de empréstimo de Cynthia Cockburn. The Continuum of Violence: A gender perspective on war and Peace. In: GILES, Wenona; HYNDMAN, Jennifer. (Eds.). Sites of Violence: Gender and Conflict Zones. Berkeley, Los Angeles and London: University of California Press, 2004. p. 24-44.

domingo, 20 de fevereiro de 2022

 

A “BESTA IMUNDA” À ESPREITA:

TOLERÂNCIA E APOLOGIA AO NAZISMO NO BRASIL DA “PÁTRIA HONESTA”

                                                                                                        Publicado originalmente no Portal Catarinas.

 

           “Sempre será uma das melhores piadas da de­mocracia o fato de que ela dá aos seus inimigos mortais os meios para destruir a si própria” (Goebbels).

 

    “Ainda é fecundo o ventre de onde surgiu a besta imunda.” (Bertold Brecht).


 

O Nazismo não está morto. É brasa dormida. Para reavivar e pegar fogo de novo, em novas circunstâncias, basta assoprar. O deputado Kim Kataguiri e o apresentador Monark assopraram a brasa na semana passada, no podcast Flow, e reavivaram as discussões em torno da reabilitação do movimento, defendida por simpatizantes em várias partes do mundo. Kim sustentou que o nazismo não deveria ser criminalizado. Monark defendeu a criação de um partido nazista, “dento da lei”. Depois da repercussão, ambos negaram qualquer relação com o nazismo, e não tenho porque duvidar deles, mas ingênua e irresponsavelmente contribuíram para manter a brasa aquecida.

Exatamente por isso, as sociedades democráticas, que prezam pelas liberdades, pela vida e pelo respeito à diversidade, se mantém vigilantes há décadas e construíram defesas jurídicas para evitar que a “besta” adormecida desperte. O nazismo e manifestações favoráveis ou apologéticas foram criminalizadas em vários países. No Brasil, de acordo com o artigo art. 20, Lei 7.716/89, da Constituição Federal, é crime “fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo”. A prática destes crimes prevê pena de reclusão de dois a cinco anos e multa.

Demarcar claramente a linha que separa a liberdade de expressão da apologia ao crime é um dos maiores desafios para as democracias contemporâneas desde o pós Segunda Guerra. Garantir a liberdade de expressão para alguns grupos, como os neonazistas, é oferecer-lhes instrumentos democráticos para minar a democracia e a liberdade de expressão. A Alemanha, berço do nazismo, e hoje um dos países mais democráticos do mundo, proibiu em 1949 a exposição de símbolos e o uso de linguagem e propaganda nazista. Na década de 1960 passou a ser crime "incitar ódio e violência contra parcelas da população". A lei foi atualizada para criminalizar também o racismo e o fascismo. Legalmente a Alemanha pode ser definida como uma “democracia militante”, conceito desenvolvido num importante artigo de 1937 pelo filósofo e constitucionalista alemão Karl Loewenstein. Os regimes democráticos, sugeria Loewenstein, deveriam desenvolver mecanismos (eis o sentido de militante) para evitar que líderes políticos antidemocráticos se valessem dos instrumentos da democracia, como fez Hitler, para se eleger e alcançar espaços de poder decisivos. Para Loewenstein, que vivenciou a ascensão do nazismo, partidos políticos não comprometidos com os valores e regras democráticas deveriam ser impedidos de participar de eleições, pois poderiam provocar a ruína da democracia. Não custa lembrar que Hitler chegou ao poder por meio de um partido, e com amplo apoio popular, mesmo assumindo um discurso com feições totalitárias e dando claros sinais de que não respeitaria as regras democráticas.

“O mecanismo da democracia”, alertava Loewenstein, “é o Cavalo de Tróia pelo qual o inimigo entre na cidade.” A vitória do fascismo só é possível se as condições favoráveis forem oferecidas pelo regime democrático, pela tolerância democrática. Goebbel, ministro da Propaganda de Hitler, sabia disso e viu na tolerância democrática uma piada autodestrutiva: “Sempre será uma das melhores piadas da de­mocracia o fato de que ela dá aos seus inimigos mortais os meios para destruir a si própria”.

Para superar certos limites e possíveis excessos de uma “democracia militante” foram criada as noções de democracia defensiva ou de resistência, para se proteger da ação de grupos ou organizações extremistas que pudessem oferecer riscos ao estado democrático e de direito. Podemos claramente identificar esta defesa da ordem democrática nas ações do STF contra as investidas autoritárias do governo Bolsonaro, que demonstra absoluto desprezo pelos valores e princípios democráticos conquistados à duras penas e firmados na Constituição de 88. Aliás, a Constituição de 88, no artigo 17, garantiu princípio de defesa da democracia contra possíveis “aventuras” autoritárias: [é] livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana […]” (Constituição de 88).

                                                                Capa da Revista Isto É.

O nazismo foi uma ideologia e um movimento, ou um sistema de crenças[1], do tipo fascista, que emergiu da radicalização da direita antiliberal e antidemocrática na Alemanha depois da Primeira Guerra. É expressão inequívoca e totalitária da extrema direita. Infelizmente ainda é preciso dizer isso, e afirmar o óbvio. Recentemente no Brasil ganharam corpo nas redes sociais acaloradas discussões sobre o fundamento político do nazismo. Ativistas e polemistas ligados ao bolsonarismo saíram em defesa da ideia vigarista de que o nazismo era expressão política da esquerda e tinha as mesmas origens do marxismo. É um falso e mal intencionado debate, fruto da desinformação e da imaginação delirante, deflagrado pelas declarações do presidente Jair Bolsonaro e do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, em 2019. O ministro afirmou, numa viajem a Jerusalém, na saída de uma visita ao Museu do Holocausto, que novos pesquisadores apontam semelhanças entre o movimento nazista e a extrema esquerda, e sugeriu que as pessoas “estudem” e “leiam a história de uma perspectiva mais profunda”. Alguns dias antes, numa entrevista ao "Brasil Paralelo", grupo que compartilha do pensamento de Olavo de Carvalho, Araújo já tinha expressado sua visão “exótica” da história: "Uma coisa que eu falo muito”, “é dessa tendência da esquerda de pegar uma coisa boa, sequestrar, perverter e transformar numa coisa ruim. É mais ou menos o que aconteceu sempre com esses regimes totalitários. Isso tem a ver com o que eu digo que fascismo e nazismo são fenômenos de esquerda".

Bolsonaro endossou a “tese”, na mesma viagem a Israel. Perguntado por um jornalista, depois de visitar o Museu do Holocausto, se concordava com Araújo, que afirmou que o nazismo foi um movimento de esquerda, Bolsonaro disse que "Não há dúvida, não é? Partido Socialista, como é que é? Da Alemanha. Partido Nacional Socialista da Alemanha.”

As declarações do presidente e do chanceler, manifestadas publicamente em Israel, numa viagem diplomática, que tinha por finalidade intensificar o intercâmbio entre os dois países na área comercial, e nas áreas de ciência e tecnologia e cooperação em segurança pública e defesa, gerou sérios constrangimentos diplomáticos. Opiniões que provavelmente circulavam em ambientes privados, nos porões do bolsonarismo, foram elevadas à condição de discurso oficial do governo brasileiro, ganharam o mundo e mais uma vez envergonham o país internacionalmente.

A resposta do presidente ao jornalista foi, digamos, inesperada. Explico-me. Não custa relembrar que Bolsonaro recebeu com entusiasmo, em 2021, a deputada alemã de ultradireita Beatrix Von Storch, neta de um ministro de Adolf Hitler (Revista Isto é). O flerte do presidente com a nazismo não é de hoje. Ele já tirou foto com um sósia de Fürer e já declarou que o holocausto poderia ser perdoado. Sabemos também que mantém um vínculo histórico com os nazistas brasileiros, dos quais recebe apoio há pelos menos 20 anos. Uma descoberta recente confirmou o que já se desconfiava. A antropóloga Adriana Dias encontrou uma carta assinada por ele em 2004, publicada em 3 sites nazistas. Na carta, endereçada genericamente aos seus apoiadores, o então deputado Bolsonaro se expressou nestes termos: “Todo retorno que tenho dos comunicados se transforma em estímulo ao meu trabalho. Vocês são a razão da existência do meu mandato.”

Para quem tem o histórico de aproximação e identificação com o nazismo, e se diz inimigo feroz do comunismo, a declaração à imprensa veio com certa surpresa. Imagino como não se sentiram os nazistas sendo chamados de socialistas pelo deputado, agora presidente, que ajudaram a eleger? Isso nos diz muito sobre o caráter volúvel e o severo grau imaturidade política do presidente, que acusa o movimento que o apoiou daquilo que considera ser o seu pior inimigo.

O documento descoberto por Adriana é uma prova robusta do apoio de neonazistas brasileiros a Bolsonaro quando ele era um deputado obscuro e irrelevante. Parte da base bolsonarista, portanto, há duas ou três décadas, é composta por neonazistas. O mandato do deputado Bolsonaro era alimentado pelo ventre da “besta imunda”.

Além da tentativa farsesca de associar a esquerda ao horror nazista, a vinculação do nazismo com o comunismo e o socialismo decorreu provavelmente de uma confusão, proposital (?), com as nomenclaturas. O partido nazista, como o próprio Bolsonaro disse, tinha no nome a expressão “nacional socialismo” (Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães). Mas não era uma identificação ou uma aproximação com o socialismo, ao contrário. Hitler usou o socialismo para atrair os simpatizantes da esquerda para as bases do nazismo. Era um jogo retórico e estratégico, que se apropriava da nomenclatura e do força social dos partidos de esquerda para alcançar seus eleitores e, ao mesmo tempo, dar um golpe no marxismo.

 

Ao contrário da “tese” esdrúxula plantada por Ernesto Araújo no debate público, o movimento nazista teve berço muito distante e distinto do marxismo. Foi fundado em Munique, em 1919, por ex-militares combatentes da Primeira Guerra Mundial, como Hitler, abalados com a derrota da Alemanha. Na década de 1920 o movimento cresceu e se fortaleceu combatendo, no discurso e nas ruas, justamente a esquerda alemã, que na época contava com dois grandes partidos, de tendências diferentes, com milhões de apoiadores (totalizando mais de 11 milhões de votos): o Partido Social-Democrata e o Partido Comunista.

As relações entre nazistas e comunistas eram tensas, violentas e marcadas, durante a República de Weimar (1919 –1933), por intensos e sangrentos combates de rua. No poder, os nazistas perseguiram implacavelmente a esquerda, em conflitos promovidos pela SA e pela SS. Depois do famoso incêndio na Reichstag, em fevereiro 1933, Hitler aproveitou a oportunidade, culpou a esquerda e usou o incêndio para reforçar seu poder alegando uma conspiração comunista para desestabilizar e derrubar o governo. Dois filmes nazistas de grande sucesso exploraram os combates entre nazistas e comunistas. O S.A. - Mann Brand, de 1933, dirigido por Franz Seitz, homenageia Horst Wessel, membro da SS que combatia os comunistas nas ruas de Berlim. Foi morto em combate em 1930 e elevado à condição de “herói” e “mártir” por Goebbels. O filme narra a história do jovem Brand, um motorista de caminhão que se juntou aos nazistas para defender a Alemanha do motim comunista orquestrado por Moscou. Antes de morrer, vítima das batalhas de rua contra os comunistas, Brand convenceu o pai, de tendência marxistas, e a namorada, a defender a justa causa dos nazistas.

O Jovem Hitlerista Quex, dirigido por Hans Steinhoff e lançado em 1933,  conta a história de Heini, um jovem alemão que, contrariando o pai socialista e alcoólatra, se converteu ao Nazismo e ingressou na Juventude Hitlerista. Se celebrizou nos combates de rua entregando panfletos nos bairros pobres de Berlim “infestados” de comunistas. Ficou conhecido com Quex (mercúrio) pela destreza e velocidade, mas acabou sendo morto numa emboscada.

O judeu e o comunista eram os arqui-inimigos do regime nazista. Marx, por conta da origem judaica, era uma espécie de figura síntese do inimigo. “O Eterno Judeu”, um dos filmes mais sórdidos produzido pelos nazistas, foi dirigido por Fritz Hippler, em 1940, com o propósito de demonstrar cinematograficamente o axioma de que os judeus são uma forma inferior da humanidade e expor a seu verdadeiro caráter racial, uma raça de parasitas e criminosos que se esconde por trás da máscara do europeu civilizado. A certa altura do filme, bandeiras vermelhas entram em cena e a voz em off do narrador sentencia que a juventude perdeu todos os valores nobres, “tudo isso por causa de um judeu, Karl Marx”.

A turma que pretende revisar a história ao seu bel-prazer e afirmar uma suposta identidade do nazismo com o comunismo deveria assistir aos filmes nazistas, especialmente os anticomunistas, antes de se pronunciar sobre o que desconhecem. O cinema era a espinha dorsal da propaganda nazista e um instrumento poderoso de atração e sedução. Aproximadamente 1350 longa metragens foram produzidos durante os 12 anos do regime nazista, e uma parte significativa era de filmes anticomunistas, que pintavam a esquerda como suja, corrupta e inimiga da humanidade.

Política e simbolicamente o nazismo era e continua sendo atraente, uma força sedutora para capturar corações e mentes disponíveis. “É preciso aceitar a ideia de que o nazismo era atraente e que atraiu como moscas as elites intelectuais do país”, lembrou o historiador francês Christian Ingrao, no livro “Crer e Destruir: Os intelectuais na máquina de guerra da SS nazista (2010). Desfazendo a ideia equivocada de que o nazismo era conduzido por figuras sombrias e fracassadas, Ingrao demonstrou que os intelectuais que formavam uma das principais elites de Hitler, a SS, eram advogados, filósofos, linguistas, geógrafos, economistas, historiadores e filósofos notáveis, jovens e cultos, com excelentes desempenhos acadêmicos e oriundos das classes médias. Os jovens acadêmicos foram atraídos, aderiam ao nazismo e ao seu “sistema de crenças”, engajaram-se fervorosamente e ofereceram suporte científico e intelectual à ideia de refundação racial e sociobiológica da Alemanha e às atrocidades cometidas pelo regime.

O estudo de Ingrao é importante para entendermos a receptividade que as ideias da extrema direita e as teorias racistas e conspiratórias têm entre parcelas da intelectualidade brasileira, agrupada em torno da figura de Bolsonaro. Um número significativo de jovens, de diferentes áreas e com formações acadêmicas relevantes (relações internacionais, diplomacia, direito, história, e por aí vai) aderiram ao “sistema de crenças” do bolsonarismo e sustentam o seu discurso ultra conservador, crescentemente autoritário, racista, homofóbico e antidemocrático.

Essa adesividade não apenas reforça a tese de Ingrau como nos alerta para o fato de que estas ideias continuam com grande poder de atração. A explosão e popularização das fake News, os ataques à democracia e as instituições, o ódio racial, as violências de gênero, são sinais de que alguma coisa “imunda” e perigosa está sendo gestada. A famosa frase de Bertold Brecht, “Ainda é fecundo o ventre de onde surgiu a besta imunda”, nunca foi tão atual.

“Besta imunda” foi a expressão criada por Brecht para designar a maldade, as formas que ela assumiu historicamente e os monstros que seu ventre imundo pariu, como o nazismo. A expressão apareceu pela primeira vez na peça/parábola “A resistível ascensão de Arturo Ui”, escrita em 1941. A frase era um alerta de que as sementes da discriminação, do ódio e da violência ainda eram férteis. O nazismo foi a encarnação histórica da maldade, encarnada no desprezo profundo, bestial, pela diversidade étnica, de gênero, a aversão à democracia e todas as atrocidades cometidas dentro e fora dos campos de concentração contra gays, judeus, ciganos e outras minorias. Nos campos de concentração os gays, por exemplo, eram vistos e tratados como a escória. Sofreram perseguição brutal. Himmler, um dos mais perversos homofóbicos que o nazismo pariu, dizia que o assassinato de um homossexual não seria uma brutalidade e muito menos um castigo. Era natural, era o destino destas pessoas. O chefão da SS enviava os gays para Campos de Concentração para manter o sangue alemão puro. O “mal” da homossexualidade “tinha que ser eliminado, assim como arrancamos as ervas daninhas, jogamos em uma pilha e as queimamos”. Identificados com um triângulo rosa, os gays era espancados, violentados, estuprados com pedaços de madeira e humilhados frequentemente. Pierre Seel, um jovem francês preso quando os nazistas invadiram a França, em 1942, sofreu os horrores dos Campos nazistas e teve o intestino perfurado por um pedaço de pau. Conseguiu sobreviver e escreveu o livro “Eu, Pierre Seel, Deportado Homossexual”. A extrema crueldade dos nazistas foi denunciada por Seel no relato doloroso da morte de Jo, seu namorado. O jovem foi despido, ridicularizado com um balde preso à cabeça e, ao som de música clássica estridente, devorado por cães policiais da guarda nazista.

Nas palavra de Seel:

Dois homens da SS trouxeram um jovem ao centro de nossa praça. Horrorizado, reconheci Jo, meu querido amigo, que tinha apenas 18 anos. Eu não o tinha visto anteriormente no Campo. Ele tinha chegado antes ou depois de mim? Não tínhamos nos vistos durante os dias antes de eu ser preso pela Gestapo.

Agora eu congelei de terror. Rezei para que ele escapasse de suas listas, de suas batidas, de suas humilhações. E aqui estava ele, diante dos meus olhos impotentes, cheio de lágrimas. Ao contrário de mim, ele não carregou cartas perigosas, cartazes rasgados ou assinado qualquer declaração. Ainda assim, ele havia sido capturado e estava prestes a morrer. O que tinha acontecido? Do que os monstros o acusaram? Por causa da minha angústia, esqueci completamente a palavra da sentença de morte.

Em seguida, os alto-falantes transmitiram uma música clássica barulhenta enquanto o SS o despia e enfiava um balde de lata em sua cabeça. Em seguida, eles incitaram seus ferozes pastores alemães sobre ele: os cães de guarda primeiro morderam sua virilha e coxas, depois o devoraram bem na nossa frente. Seus gritos de dor foram distorcidos e amplificados pelo balde em que sua cabeça estava presa. Meu corpo rígido se contorceu, meus olhos se arregalaram com tanto horror, as lágrimas escorreram pelo meu rosto, rezei fervorosamente para que ele desmaiasse rapidamente (SEEL, 1994. Tradução de Enzo Vieira).[2]

As pessoas que declaram alguma simpatia pelo nazismo, que relativizam ou defendem o direito à manifestação, em nome da liberdade de expressão, ou são ignorantes em relação ao que aconteceu na Alemanha ou compartilham dos mesmo valores.

 

Passados 80 anos, a frase de Brecht não envelheceu. Além de fecundo, o ventre tem se revelado teimosamente longevo. As manifestações de intolerância à diversidade e a profusão de discursos políticos abertamente racistas que explodiram no mundo, e no Brasil, na última década, representam o retorno camaleônico da “besta imunda”, gestada no ventre tolerante e permissivo de sociedades democráticas. Para o filósofo francês Michel Paty, o reaparecimento da “besta”, é um alerta e “um sintoma inquietante da fragilidade de nossas sociedades e um lembrete de que retrocessos são sempre possíveis.”

 

O Brasil tem um histórico recente de manifestações apologéticas ou de tolerância ao nazismo, que aumentou significativamente com a ascensão do bolsonarismo. Desde 2019 ouve uma explosão de sites, segundo a Organização não-governamental SaferNet/Brasil, inspirados e empoderados pelas falas e gestos do presidente. Só em maio de 2020 foram criadas 204 novas páginas neonazistas. Comparadas com as 42 e as 28 páginas criadas respectivamente em maio de 2019 e 2018, o crescimento é assustador. Para a Organização existe uma relação causal entre as manifestações do presidente e o aumento vertiginoso das células neonazistas.

Não dá para descuidar. O mal está sempre à espreita. Por isso, opiniões como as de Kim e Monark, expressas para grandes audiências, são muito perigosas. A liberdade de expressão que evocaram irresponsavelmente para defender o direito à livre manifestação é, no mínimo, equivocada. A democracia não pode ser confundida com um jogo de vale tudo. A liberdade não é um valor absoluto e seu exercício não é pleno. É socialmente e historicamente limitado e construído na fronteira entre as liberdades e os direitos individuais. Impor limites à liberdade de expressão dos intolerantes não é um paradoxo da democracia, como tentam fazer crer os doutrinadores desalumiados do bolsnonarismo. É uma estratégia de defesa. O paradoxo é falso. Foi criado para confundir. O limite da liberdade de expressão é a liberdade e a vida do outro, da outra. Não se pode, em nome da liberdade de expressão, dar a alguns o direito de atentar contra a dignidade e a vida, valores intrinsicamente ligados à noção de liberdade.

O filósofo Karl Popper, na década de 1940, no contexto da grande guerra, já rejeitava a ideia de garantir liberdades aos que podem usá-la contra a democracia. “A tolerância ilimitada”, dizia Popper, “leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então, os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles".

O velho e bom argumento de Popper põe por terra as frágeis opiniões e a ideia rasteira e confusa de liberdade que os defensores da liberdade de expressão usam para defender o direito de manifestação dos neonazistas. Aos inimigos da democracia e aos intolerantes, à intolerância. É princípio basilar das modernas democracias que toleremos ideias com as quais não concordamos. Mas isso tem um limite. Não podemos aceitar ideias, ideologias e manifestações de ódio que colocam em risco justamente os valores que foram historicamente construídos para detê-los.

Em certas circunstâncias a intolerância é um dever e sua prática uma virtude. Tolerar o intolerável é autorizar a intolerância. A intolerância seletiva e exercida democraticamente é o “tratamento” que pode secar o ventre imundo da besta.



[1] O historiador Christian Ingrau define o nazismo como “um sistema de crenças que gera muito fervor, que cristaliza esperanças e que funciona como uma droga cultural na psique dos intelectuais.”

 

[2] Recomenda a leitura da Monografia de Enzo Vieira (Univali, 2020), intitulada “OS TRIÂNGULOS ROSAS:A perseguição e as violências contra os gays na Alemanha Nazista, no contexto da Segunda Guerra Mundial”.

 

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

 

O GESTO INESQUECÍVEL DO CRAQUE REINALDO CONTRA O RACISMO E A DITADURA MILITAR:

 

                    Quem pede a volta da ditadura militar no Brasil não sentiu na pele o que eu sofri” (Reinaldo).


O título mais do que merecido do Galo no Brasileirão, conquistado ontem contra o Bahia, me trouxe à memória o futebol elegante, rápido e inteligente de um dos maiores atacantes do futebol brasileiro. Reinaldo foi um craque e goleador estiloso. E foi o maior artilheiro do campeonato brasileiro entre 1977 e 1997. Conviveu com problemas no joelho, que o obrigavam a treinar de calças compridas para esconder o inchaço, e se aposentou precocemente aos 29 anos. A torcida o chamava de Rei, e cantava ReiReiReiReinaldo é nosso Rei.

Mas Reinaldo foi muito mais do que o centroavante goleador e praticante do futebol arte. Usou o esporte, numa época de repressão e violência, para manifestar-se em defesa das liberdades e do respeito às diferenças. Nas comemorações dos gols erguia o braço direito com o punho cerrado. Era uma referência ao movimento dos Panteras Negras, que lutavam contra a violência racial nos EUA, e aos atletas estadunidenses Tommie Smith e John Carlos, que protestaram contra o racismo nas Olimpíadas de 1968. O gesto, tomado de empréstimo pelo centroavante goleador, era um protesto pelo fim da ditadura militar.

Reinaldo contou que quando fez o gesto pela primeira vez todos queriam saber o que significava. Para driblar a repressão, dizia que era só um protesto contra o racismo. Os tempos eram difíceis. “Eu precisava tomar cuidado, pois os ‘dedos-duros’ do governo estavam sondando, querendo descobrir se eu seria como instrumento de algum grupo revolucionário. Percebia que o meu gesto era um alento aos socialistas, um sinal de apoio e de unidade perante uma causa” (Extraído do livro Punho Cerrado: a história do Rei, escrita pelo seu filho Philipe Van R. Lima, publicado em 2017).

Reinaldo se sentia isolado e desanimado com a falta de apoio no meio futebolístico, mas continuou fazendo o gesto a cada gol marcado. “O apoio que recebi vinha mais da classe artística e, mesmo assim, era silencioso. Quase ninguém tinha coragem de se manifestar. Fiquei muito isolado, sofrendo todo tipo de ataque. Esse gesto (comemoração) de alguma forma passou a mensagem de que precisávamos de um país democrático e com mais justiça social”.

Às vésperas da Copa e 1978 na Argentina o posicionamento do centroavante ocupava os debates esportivos. Afinal, um jogador poderia ter e manifestar opinião política? Três meses antes da Copa Reinaldo disse que foi impedido de disputar a final do Campeonato Brasileiro contra o São Paulo. Uma manobra punitiva dos cartolas com o governo o afastou da decisão. Na década de 1970, a Confederação Brasileira de Desportos (CBD, hoje CBF) era comandada por militares e presidida pelo almirante Heleno Nunes, que desaprovava a postura do jogador. Ficar de fora da final, por uma expulsão que aconteceu no mês anterior, dava a Reinaldo a certeza de que o julgamento foi político. Ao invés de intimidar, a punição aumentou a disposição crítica contra a ditadura. O tiro saiu pela culatra.

Antes do embarque para a Argentina, a seleção foi recebida pelo presidente Ernesto Geisel no Palácio Piratini, em Porto Alegre. A mensagem do discurso do presidente ao grupo não poderia ser mais clara: “Ponham de lado os sentimentos pessoais e façam do time um conjunto que realmente possa trazer a vitória”. Na conversa reservada que teve com Reinaldo a mensagem foi ainda mais clara: “Vai jogar bola, garoto. Deixa que política a gente faz”. Na concentração da seleção, André Richer, chefe da delegação brasileira, disse a Reinaldo que a CBD e o governo consideravam o gesto comemorativo “revolucionário demais”. A “recomendação” era para que não comemorasse os gols na Copa com aquele gesto e nem comentasse sobre política nas entrevistas.

Havia dúvidas sobre a convocação de Reinaldo. Mas, mesmo com a desaprovação dos generais, que o consideravam esquerdista e subversivo, Cláudio Coutinho, que era também capitão do exército, convocou o craque. Ele era bom demais para ficar de fora. E o apelo popular era grande. A convocação do Rei foi uma vitória, ainda que momentânea, do futebol sobre a ditadura.

 

A Copa na Argentina, que também vivia sob a ditadura do general Videla, tinha um peso político enorme. E mesmo com toda a pressão, e sem contar com o apoio dos colegas, Reinaldo não se intimidou. Na estreia contra a Suécia fez o que tinha que fazer. O Brasil saiu perdendo. Mas, aos 45 minutos do primeiro tempo, Toninho Cerezo cruzou a bola da direita, Reinaldo se antecipou ao zagueiro Roy Andersson e estufou as redes. Depois de hesitar por alguns segundos, tomou a decisão e comemorou o empate com o gesto que tanto desagradava a ditadura. Foi colocado na reserva e não jogou mais na Copa.


A comemoração foi um gol de placa contra as ditaduras brasileira e argentina do camisa 9, de 21 anos. “Não sei mensurar o impacto desse gesto durante a Copa do Mundo, pois estava isolado na concentração da seleção e não chegavam muitas notícias lá. Mesmo assim, foi um ato muito ousado, pois eu havia recebido a recomendação de não comemorar daquela forma, inclusive das autoridades argentinas”.

No hotel em Mar Del Plata, onde estava hospedado, e já afastado do time, Reinaldo recebeu um pacote anônimo, com um endereço da Venezuela. Era um Relatório sobre a Operação Condor, uma aliança e cooperação entre países sul-americanos que viviam sob regimes militares. O documento revelava planos para o assassinato de ativistas de esquerda e democratas, e o assassinato de importantes políticos chilenos pela ditadura de Pinochet. E sugeria também que a morte do ex-presidente Juscelino Kubitschek, no Brasil, foi planejada pela Operação. Segundo Reinaldo, o “documento estava em espanhol, não conseguir entender tudo. Fiquei apavorado, estava com uma bomba em minhas mãos, não sabia como lidar com aquilo, por isso guardei o envelope no fundo da minha mala e não mostrei para ninguém. Quando retornei ao Brasil, deixei o envelope com o músico Gonzaguinha, que era ligado a movimentos de esquerda”.

O Relatório foi bastante importante para desgastar a imagem internacional dos generais sul-americanos e para apontar os crimes contra a humanidade cometidos nas ditaduras.

A vida do jogador não foi fácil depois da Copa. Além das lesões, que o levaram a abandonar o futebol, sua vida pessoal foi atacada e exposta impiedosamente na imprensa. O uso de drogas e de álcool e a amizade com o radialista gay Tutti Maravilha eram pratos cheios para os difamadores e adversários políticos. A amizade com Tuti foi distorcida e massacrada pela vigilância homofóbica. Reinaldo era chamado de cachaceiro e gay. E tudo isso explodindo às vésperas da convocação para a Copa do Mundo de 1982. Numa entrevista à Revista Placar, Reinaldo se manifestou sobre os ataques: “Transar com o Tutti, minha gente, seria o mesmo que cometer um incesto. Transar com o Tutti não pode. Transar com muitas mulheres também não. Não transar com nenhuma é, da mesma forma, perigoso. Se saio à noite com mulheres, sou boêmio. Se não saio, sou viado. Que fazer?”.

O técnico Telê Santana deixou Reinaldo de fora da lista para a Copa de 1982. A Revista Placar, de janeiro de 82, detalhou a relação do jogador com o técnico e as razões da não convocação. “Seu relacionamento com o técnico deteriorou-se no semestre passado. A partir dali, Telê começou a censurá-lo - ora pela amizade do jogador com homossexuais, ora por suas brigas com a namorada, ora por suas ligações com o Partido dos Trabalhadores”. Embora Telê tenha negado que sua decisão tivesse alguma motivação política, o que é bastante questionável, não há dúvidas de que o moralismo foi decisivo. Considerado um técnico disciplinador, dizia abertamente que não queria no seu time “sujeito homossexual”. Mas sustentou que o veto era técnico e se devia à má condição física do jogador. Reinaldo discorda: “Houve influência política. Eu estava bem fisicamente. A comissão técnica não resistiu à pressão, aos argumentos de pessoas que não me queriam na seleção. O Telê era implicante com o estilo de vida das pessoas. E o meu estilo não o agradava.”

Alguns craques da Copa de 82, em entrevistas à Revista Placar em 1981, logo depois da convocação, manifestaram-se a favor da convocação do Rei:

“Não posso escalar o time. Mas, como nunca fiz um coletivo com o Serginho, o Baltazar ou o Roberto, é lógico que eu me entroso mais com o Reinaldo” (Zico).

“Vai jogar o Rei. É o mais inteligente, o mais técnico e o mais perigoso” (Júnior).

“Todos têm suas virtudes. A diferença é que o Reinaldo é o Reinaldo” (Éder).

“No meu time, joga o Rei” (Sócrates).

E eu lembro do meu Pai dizendo: “Não tem ninguém melhor que o Reinaldo. Telê errou”.

Perdemos o Reinaldo, perdemos a Copa, perdemos 21 anos, perdemos quase 500 vidas, mas não perdemos a memória. Se a ditadura e os seus defensores trabalham com a política do esquecimento, nós, do campo democrático, resistimos evocando a memória e relembrando o que o autoritarismo tentou silenciar e apagar.

Hulk relembrou recentemente o gesto de Reinaldo e o homenageou no jogo contra o Fluminense, erguendo o braço com o punho cerrado. Reinaldo estava no Mineirão e se emocionou. Hyoran também comemorou o gol de empate contra o Bragantino com o gesto do Rei. Uma pena que as repercussões das comemorações ficaram apenas no domínio do esporte e na homenagem ao maior ídolo do Galo. Foi bonito, foi, mas teria sido épico se a atitude dos jogadores também tivesse despertado maior curiosidade sobre a causa por trás do gesto. Limitando-se à homenagem ao artilheiro, o gesto foi esvaziado de tudo aquilo que ele significava. Os motivos que levavam Reinaldo a fazer o gesto, e o quanto isso lhe custou, não foram lembrados.

O gesto solitário e corajoso de Reinaldo não pode ser esquecido. Tem que ser celebrado. A comemoração do tão esperado título do Atlético Mineiro, depois de 50 anos, é também um momento para celebrar e relembrar a história do time, os títulos e os ídolos do passado. Relembrar que Reinaldo chegou no clube em 1971, aos 14 anos, ano em que o Atlético foi Campeão, e o técnico era o Telê Santana. Relembrar é trazer à memória, é tornar presente e reatualizar algo significativo que se deseja preservar. E nada mais significativo do que o maior goleador da história do Galo encarando sem medo, com o braço em riste, a vergonhosa ditadura que tentava em vão discipliná-lo politicamente.

Com a palavra, o Rei:

 “Medo eu não tinha, porque contava com respaldo popular. Não iam me sequestrar ou matar, como fizeram com vários outros brasileiros. Mas fui queimado em fogueira pública e continuo queimando até hoje.”

O futebol sempre foi um meio machista e conservador. Não aceitam que um jogador tenha posições políticas, que se proponha a pensar. Fui perseguido por fazer oposição, mas, como figura pública, era preciso mostrar resistência ao regime militar para acelerar o processo democrático. O autoritarismo emburrece a sociedade. Quem pede a volta da ditadura militar no Brasil não sentiu na pele o que eu sofri.”