Uma versão ampliada deste texto, com notas e referencias, foi publicado em 2024 na Revista Espaço Ameríndio.
Época triste a nossa, em que é mais difícil quebrar um preconceito do
que um átomo.
(Alberto Einstein).
A discriminação, o racismo e as diversas formas de violência sofridas pelos povos indígenas no Brasil, de norte a sul, no passado e no presente, tem como pano de fundo legitimador um conjunto de estereótipos, desumanizantes e marginalizantes, herdados dos tempos coloniais, que os infantilizam e os inferiorizam socialmente e intelectualmente. Pesquisas realizadas nos últimos anos demonstram que em diferentes regiões do Brasil os indígenas são vistos, de um modo geral, como selvagens, violentos, preguiçosos, ignorantes, aproveitadores e incapazes.
Embora a raiz etimológica remonte ao grego antigo (steros + typos), o termo estereótipo só apareceu no século XVII, associado à tipografia, para designar uma chapa de metal utilizada para produzir cópias repetidas do mesmo texto. No século XX, na década de 1920, o termo recebeu do jornalista Walter Lippmann a conceituação contemporânea. Explorando os sentidos etimológicos da palavra, do grego stereo, que significa sólido, firme, Lippmann, por analogia, salientou a rigidez das imagens mentais que construímos sobre grupos com quais não temos contato direto. Estas imagens, “a menos que a educação tenha nos tornado mais agudamente conscientes, governam profundamente todo o processo de percepção”. Desde então, os sentidos sociais, políticos e culturais do termo estereótipo vêm sendo desenvolvidos em diferentes campos do conhecimento.
Da maneira como empregamos o conceito, os estereótipos são crenças, ou um conjunto estruturado de crenças compartilhadas no âmbito de uma cultura ou grupo sobre os atributos ou características definidoras de outros grupos ou culturas, que contêm informações não apenas sobre estes atributos, como também sobre o grau com que tais atributos são compartilhados. Assim definido, estereótipo indica um modelo rígido a partir do qual se interpreta o comportamento de um sujeito social, sem se considerar o seu contexto e a sua intencionalidade. O estereótipo representa uma imagem mental simplificadora e congelada de determinadas categorias sociais. Funciona como um padrão de significados utilizado por um grupo na qualificação do outro.
Os estereótipos sobre povos indígenas são imagens cristalizadas herdadas, em grande medida, dos tempos coloniais, que se traduzem/desdobram, em nosso tempo, em discursos e práticas sociais ligeiramente modificadas que atentam contra a dignidade e a alteridade dos sujeitos. Apesar dos avanços promovidos pela Constituição de 1988, que lhes assegurou direitos, o respeito ao seu modo de vida e organização social e o reconhecimento do direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam, os “índios” ainda são tratados como cidadãos de terceira classe.
O efeito mais nocivo dos estereótipos é a naturalização de certas características negativas atribuídas aos indígenas, como preguiça, indolência, infantilidade, inconstância e incapacidade. Estas características, vistas como inatas, portanto insuperáveis, os tornariam inaptos à convivência em sociedades ditas desenvolvidas. O estereótipo opera uma simplificação esquemática das características presumíveis de determinados grupos. A eleição de um dado particular, e sua elevação à condição de enunciado coletivo, característico do reducionismo que subjaz à construção dos estereótipos, leva às generalizações esquemáticas e à caricatura cultural. Nos últimos anos indígenas de diversas etnias vêm se manifestado contra os estereótipos, especialmente em datas comemorativas e em celebrações populares. Em 2018, o artista visual Denílson Baniwa escreveu um Pai Nosso, na forma de um poema crítico e bem-humorado sobre o Dia do Índio, e iniciou uma campanha contra o uso de pintura facial com canetinhas hidrocor e cocares de papel. Em 2019, a ativista digital Katu Mirin lançou uma campanha, #ÍndioNãoÉFantasia, contra o uso de penas, pinturas corporais e cocares no carnaval. Para Katu, as referências aos indígenas não são homenagem, mas uma forma de racismo.
Como bem observou Maria Consuelo Cunha Campos, “entre a cultura que olha e a que é olhada se estabelece um espelhamento: eu olho o outro e a imagem que construo desse outro me devolve, como um boomerang, uma certa imagem de mim, de nós, imagem, que é, todavia, efetiva negação do outro”. O estereótipo, neste caso, enquanto definição negativa do outro, é, pelo efeito boomerang do olhar, a afirmação positiva do eu. É um jogo de construções identitárias que define o meu lugar e o lugar do outro no mundo, e os valores que orientam e regem estes mundos.
Tomando como
ponto de partida um ensaio do linguista francês Alain Guillermou, que veio a
público em 1973 e definiu os guaranis como imprevidentes e inconstantes, o post
propõe uma arqueologia da matriz discursiva jesuítica e colonial responsável
pela construção de um saber sobre os guaranis que atravessou os séculos,
adaptando-se aos diferentes contextos históricos e intelectuais, e,
surpreendentemente, alcançou a segunda metade do século XX. A proposição de uma arqueologia, aqui
entendida como o desvelamento das condições históricas em que uma formação
discursiva ou determinada maneira de pensar se configurou, é livremente
inspirada em Michel Foucault. O procedimento arqueológico, adaptado
ao estudo dos discursos sobre os guaranis, ao identificar a emergência de uma
linhagem discursiva, e situá-la historicamente, possibilita o questionamento
dos estereótipos, ou discursos fossilizados, e dos supostos atributos
essenciais e transcendentais que definiriam a natureza do indígena.
A GÊNESE COLONIAL DO ESTEREÓTIPO
Num livro publicado em 1973, sobre Santo Inácio de Loyola e a Companhia de Jesus, o linguista francês Alain Guillermou perguntava retoricamente: “Quem eram então esses guaranis?” Seriam eles “selvagens terríveis” ou “bons selvagens”? Entre a visão depreciativa deixada pelos conquistadores espanhóis, que os pintaram com traços negativos que acentuavam sua ferocidade, e a visão romântica, que os imaginavam dóceis e próximos do “estado de natureza”, Guillermou procurou outra maneira de “ilustrar o caráter” dos guaranis. Desviou prudentemente das teses da ferocidade e da docilidade, mas deixou-se embalar por uma “anedota” carregada de etnocentrismo:
Uma vez, alguns guaranis fugiram de uma redução, levando consigo um boi e um arado. Encontraram-nos a alguma distância: com a madeira do arado haviam feito fogo e estavam comendo quartos de boi que haviam assado.
O que Guillermou quis dizer com esta “anedota”? Os índios que deixaram a redução levaram consigo e, logo em seguida, queimaram e devoraram o instrumento de trabalho que lhes garantiria a subsistência. O que se pode deduzir disso? O caráter, ou o ser do guarani, seria marcado por esta imprevidência, por este traço de inconsequência congênita? A “anedota”, recorrente na maneira de descrever os guaranis, sugere uma acentuada ingenuidade acrescida de natural incapacidade prospectiva. Guillermou não endossa nem a tese romântica nem a tese degradante do índio, mas deixa no ar que compartilha de uma visão ainda mais perigosa: a de que o índio, pela incapacidade de pensar prospectivamente, seria incapaz do auto-governo. Os guaranis que fugiram da redução, de onde eram tutelados pelos padres, escaparam dos ditames da razão previdente e retornaram ao seu antigo modo de vida. Donde se deduz que, longe das reduções e do olhar vigilante dos padres, os índios deslizam rapidamente para o abrigo das matas, abandonam os frágeis elos que os prendiam à cultura e voltam à inocência selvagem. Viveiros de Castro, analisando os discursos sobre a América portuguesa referentes à natureza inconstante dos “selvagens”, observou que a inconstância era “uma constante da equação selvagem”, que tornava exasperadora a tarefa de convertê-los. Os índios eram como “a mata que os agasalhava, sempre pronta a refechar-se sobre os espaços precariamente conquistados pela cultura. Eram como a terra, enganosamente fértil, onde tudo parecia se poder plantar, mas onde nada brotava que não fosse sufocado incontinenti pelas ervas daninhas.”.
A “anedota” é uma reedição do tema da natureza inconstante dos índios, muito constante nas narrativas coloniais e jesuíticas. É o eco do discurso colonialista e da velha incapacidade europeia de pensar o outro pelos seus próprios termos.
Mais do que indicar o ser/caráter do guarani, como sugeriu Alan Guillermou, que não se preocupou em citar uma fonte, a “anedota” talvez nos ajude a compreender melhor o caráter paternalista das reduções jesuíticas e, por que não, do olhar deslocado do intelectual. Na verdade, a “anedota”, de acordo com o caminho que percorremos, traduz a percepção e a pedagogia jesuítica no espaço reducional. Escavando em torno desta ideia vamos encontrar a gênese de um estereótipo colonialista, de matriz jesuíta, construído na experiência de evangelização dos guaranis.
A mais antiga narrativa que localizamos, que faz referência ao tema da “anedota”, vem do século XVII, das reduções guaraníticas do Paraguai. É um verdadeiro artefato arqueológico de um saber jesuítico sobre os guaranis. Antônio Sepp, missionário que atuou nas reduções do Paraguai entre 1691 e 1733, nos deixou páginas preciosas sobre a suposta ingenuidade guarani. De passagem pela redução de Japeyu, em julho de 1692, ouviu do missionário responsável pela redução uma história que o impressionou. “Não posso furtar-me a relatar”, diz o padre Sepp, “neste lugar, o que sucedeu a um missionário, há poucos dias. Deste fato pode-se inferir que este povo não tem previdência alguma, que tudo devora num dia e não cogita de que precisa viver também no dia seguinte.”
Quando chega a época do amanho e da sementeira (...) o Padre dá de presente a cada índio duas ou três juntas de boi para o amanho da roça, que muitas vezes não vai além de quinze passos. A roça, sem dúvida, não é tão pequena por falta de terra, - porque esta não tem marcos nem cercas, mas está aí livre, para quem queira cultivá-la – mas por pura preguiça! E não dariam conta nem deste pedacinho de roça, deste punhado de terra, se o Padre não apertasse o agricultor preguiçoso com sovas e inspeções incessantes. E não amanhariam este punhado de terra nem em dois meses e mal fariam um carreiro por dia, mas pendurariam sua rede entre duas árvores e fariam folga perpétua.
Numa dessas inspeções
o padre avistou de longe a fumaça e logo sentiu o cheiro de carne assada. O
índio, sentindo-se culpado ao avistar o padre, “começou a tremer”. Um dos bois já havia sido devorado e a
roça mal começara a ser lavrada. “Se o Padre quer que o agricultor preguiçoso e
seus filhos tenham o que comer o ano todo, precisa não fazer caso e dar-le
outro boi”, diz o padre Sepp, e acrescenta:
Este fato se deu a pouco tempo com um Padre, e fatos semelhantes se dão todos os anos. Aos europeus isto parecerá incrível, mas aqui entre nós é a dura verdade, que os índios deixam, por pura preguiça, estragar as espigas de milho maduras e amarelas, se os Padres não os ameaçam expressamente com 24 pancadas de sova como castigo. Se alguém pergunta: de que maneira costumais castigar esses índios? Respondo brevemente: Como um pai castiga aos filhos que ama, assim castigamos os que merecem.
O que Guillermou chamou de “anedota”, padre Sepp relata num tom grave, edificante e pedagógico. O índio glutão e imprevidente, após o castigo corretivo, redimiu-se, beijou a mão do padre e em reconhecimento teria dito as seguintes palavras: “Meu Pai, mil e dez mil vezes te agradeço que por teu castigo paternal me abriste o juízo e me tornaste no homem que antes não fui.” O arrependimento e a gratidão do índio é a certeza do padre/pai da necessidade da tutela
A batalha do padre Sepp contra a inconstante dos guaranis
era a mesma que os primeiros missionários jesuítas que evangelizaram no
Paraguai travaram. Nas cartas anuas referentes aos anos de
Ya cerca de dos años habían trabajado los Padres desesperadamente, y todavía no se vió mejoría de costumbres, tan indomable es esta gente, tan dura de cabeza, y de tanta bajeza de caráter. No les entran consejos de los Padres. Así es espantosa entre ellos la borrachera, haciéndose un brebaje fermentado de miel silvestre aumentando su eficacia para embriagar cierta flor del campo, de donde sacan la miel las abejas. A consecuencia de esta ebriedad son frecuentes abortos, peleas, asesinatos, y a veces verdaderas batallas entre las diferentes tribus de indios.
Na mesma carta o Provincial prossegue descrevendo a difícil luta dos padres contra os costumes herdados dos antepassados:
Se aburren de
la doctrina cristiana y de los misioneros, sin que por esto se desanimen
nuestros Padres en su empeño de evangelizarlos.
Las mujeres de
estas tierras son desvergonzadas. Borrachas, la cara horriblemente pintada,
bailan unas danzas verdaderamente abominables. Al reprenderlas después nuestros
Padres por estos abusos, contestan con atrevimiento: Callate, Padre, tú también
harás pronto lo mismo que nosotros.
Dicen además, que se marchen los Padres a buena hora, cuando no quieren conformarse con nuestras costumbres. Nosotros nunca dejaremos estas costumbres y viviremos como hemos aprendido de nuestros antepasados. Tenemos que multiplicar nuestra raza teniendo muchas mujeres.
O apego aos antigos costumes e a inconstância dos indígenas dificultava o trabalho dos missionários. Padre Zurbano queixou-se dessa inconstância algumas vezes. Chegou a dizer que “nada tiene consistencia en este mundo”. Ao mesmo tempo em que mostravam disposição para ouvir as palavras dos missionários, com muita facilidade esqueciam a mensagem evangélica e voltavam as velhas práticas.
Em 1731, em visita às reduções do Tape, cem anos depois da carta do padre Zurbano, foi a vez do missionário José Cardiel registrar o “débil y defectuoso entendimento” dos Guarani. “Son hombres de un día”, atestou Cardiel, “no discurren las consecuencias de lo futuro”. Devoram numa única refeição o alimento que duraria até quatro meses. Desperdiçam e dão tudo o que tem: “a ese modo es el porte del indio en la providencia económica”. Ao invés da narrativa do boi e do arado, deixada por Sepp, Cardiel usa como exemplo da inconstância selvagem o “caso” dos carneiros:
Es tiempo perdido el usar largos discursos con ellos, ni razones sobre razones. Lo que aprovecha es decirles poco y muy trivial y material en sermones y confesiones, y aun en cosas materiales. Pondré un solo caso: aunque cada día me suceden a mí otros semejantes. Un Padre párroco le dio a guardar a un indio diez carneros, encargándole que cada semana trajese uno para él y su compañero. Hízolo así cinco semanas: y a la sexta vino diciendo que ya se había acabado. Díjole el cura: Cómo puede ser eso? Yo te di diez. – Es verdad, respondió. – Cada semana no has traído más que uno, y sólo cinco semanas los has traído: luego no has traído más que cinco. – Es verdad todo. Si de diez no trajiste más que cinco, quedan otros cinco. Dónde están esos? Respondió: - Tú los comiste. Volvió el Cura en toda forma: A quien de diez no le traen más que cinco, le quedan otros cinco: tú no trajiste más que cinco, etc: y siempre respondía: Tú lo comiste, después de haber concedido todo lo antecedente.
Embora tenha se passado um século, a percepção jesuítica a respeito dos guaranis permaneceu inalterada. O que talvez se explique pela continuidade do projeto reducional e do mesmo espírito paternalista da Companhia de Jesus.
Mas não foram apenas os jesuítas que
registraram está impressão negativa sobre a personalidade fugidia dos
indígenas. Cinquenta anos depois da dispersão das missões, o viajante
naturalista francês August de Saint-Hilaire, em viagem pelo Rio Grande do Sul,
observou entre os guaranis o mesmo traço de personalidade identificado pelos
jesuítas e a completa ausência da noção de futuro. Passando pela região das
missões, em 1822, registrou uma variação da “anedota”:
Os guaranis, como todos os índios, não têm nenhuma idéia de futuro: aprendem com facilidade o que se lhes ensina, mas não criam nem compõe nada. De índole dócil, obedecem sem dificuldade, mas seu caráter não têm nenhuma fixidez; vivendo só do presente, não podem ser fiéis a palavra empenhada; não possuem nenhuma elevação de alma; são estranhos a qualquer sentimento generoso; ainda menos de honra; não têm ambição, cobiça ou amor próprio. Se alguma vez economizam, é sempre por muito pouco tempo. Um guarani, por exemplo, consegue comprar, por suas economias, uma roupa que pode abrigá-lo, durante longo tempo, das intempéries, mas logo depois a trocará por uma vaca, da qual nada restará ao fim do dia.
O ponto de vista, desta vez, não é o de um jesuíta, que poderia ser qualificado como suspeito. O juízo foi emitido por uma autoridade científica, um viajante naturalista, de renome internacional e amplo reconhecimento. Ecoando os poderosos juízos emitidos por Buffon e De Pauw sobre os americanos, Sain-Hilaire fez um diagnóstico sombrio, pessimista e inexorável da situação em que se encontravam os guaranis. A sentença final não deixou dúvidas: “A civilização não nasceu para índios.” Imprevidentes e sem visão prospectiva, os guaranis eram, para Saint-Hilaire, comparáveis as crianças. Mas a criança, porém, desperta o interesse porquanto será homem um dia. O viajante ilustrado não vê saída para o impasse criado pelo colonialismo. Os guaranis encontram-se, pois, encurralados numa espécie de limbo evolutivo, a meio caminho entre a civilização e a selvageria. A vida na floresta não lhes é mais possível, a vida em sociedade lhes é inatingível.
O cronista e historiador jesuíta Pablo Hernández, no início do século XX, também deixou um quadro nada lisonjeiro dos guaranis. À total incapacidade de previsão, acrescenta o estado de decadência moral em que se encontravam. O mais notável, avalia o historiador, é que nos primeiros anos de vida a criança guarani anuncia-se como uma promessa. A docilidade, a facilidade para aprender e a disposição prenunciam um “feliz desarrolho”. Mas com tempo, com o passar dos anos, percebe-se que os guaranis estacionam e voltam para trás, “tornándose incapaces e ininteligentes como los mayores, y perdiendo también la gracia y prontitud de aprensión, se volvían broncos y adquirían la tosquedad de los demás índios”. Hernández observa os índios com os olhos de Cardiel e endossa o juízo do padre com a chancela dos “profesores del evolucionismo”. A respeito da imprevisão, nada “muestra mejor ese carácter que la descripción que él hace P. Cardiel: No hay remédio da hacerles prevenir lo futuro, de que guarden el sustento para todo el año”.
El major trabajo es hacer que hagan buena sementera: porque como el pobre índio no considera lo que há de durar el año, y su ánimo es sumamente flojo, aniñado é inadvertido, con un poço que tenga, ya está más contento.
Carlos Dante de Moraes, crítico literário e ensaísta riograndense, dedicou um ensaio ao caráter dos guaranis sob o regime missioneiro. Publicado em 1959, o ensaio procurava aplicar conceitos da psicologia ao estudo dos “povos primitivos”. Considerava o guarani de caráter “flutuante e incerto”, tudo nele era duvidoso e tosco. Por mais que os padres se esforçassem, afirma Dante, “jamais conseguiriam tornar o índio capaz de nutrir-se e vestir-se por seu exclusivo labor e iniciativa.” Deixados a si mesmos, sem o olhar vigilante do padre e a disciplina dos açoites, andariam nus e famintos. Não demonstravam a menor aptidão para tirar partido da terra fértil”. Quanto à criação de animais, não possuíam previdência alguma. Usou o mesmo exemplo de Guillermou para traçar um quadro sorumbático da psicologia guarani: “Comiam o boi que lhes davam para rotear o solo, assando-o no próprio arado, que servia de lenha. Das vacas leiteiras, devoravam a cria, perdendo o leite, e logo depois sacrificavam a mãe.”
De Sepp à Guillermou, a imagem do índio inconstante destruindo o arado e devorando o boi, e as variações sobre este tema, se repete insistentemente. A repetição da narrativa, inicialmente como passagem edificante, depois como um traço insuperável da condição “selvagem” e, por fim, como “anedota”, congela uma imagem estereotipada e a-histórica no tempo e passa a definir o caráter dos guaranis. Distintos saberes, de diferentes origens, foram articulados e mobilizados para a construção e manutenção desta imagem: o saber missionário e histórico dos jesuítas, os conhecimentos do naturalista francês e o saber literário. É do cruzamento e da naturalização destes saberes que os estereótipos prosperam.
O estereótipo, principal estratégia discursiva do saber/poder colonial, fixa uma imagem do colonizado, geralmente expressa em termos excessivos, ou anedóticos, e a repete à exaustão em diferentes conjunturas históricas e contextos discursivos. A repetição descontextualizada acaba produzindo um efeito de naturalização. Os estereótipos acabam por produzir um conhecimento do outro como se fosse um negativo da imagem do colonizador. O discurso colonial, conforme o caracterizou Homi K. Bhabha, é “um aparato que acende o reconhecimento e a negação das diferenças raciais-culturais-históricas”. Sua função precípua e “estratégica predominante diz respeito à criação de um espaço para a ´subjetividade das pessoas´ através da produção de conhecimentos em termos de a vigilância ser exercida e a forma complexa de prazer-desprazer, incitada”. A finalidade do “discurso colonial se concentra em construir o colonizado como população de tipo degenerado, tendo como base uma origem racial para justificar a conquista e estabelecer sistemas administrativos e culturais”.
Alain Guillermou, numa típica leitura essencialista e colonialista, reproduziu um “discurso colonial”, de matriz jesuítica, na forma de uma “anedota”, como se fosse um dado natural do “caráter” dos guaranis, sem se preocupar em situá-lo historicamente ou mencionar a fonte. O efeito da repetição descontextualizada é a naturalização de atributos presumíveis dos guaranis à condição de traços fundamentais da sua essência e caráter. A naturalização define e autoriza uma representação sobre os indígenas que, por diferentes caminhos, encontra aderência no imaginário social e se manifesta em diferentes ambientes. Sob vários aspectos, a “anedota” do arado constituiu uma poderosa matriz discursiva que sustenta, até hoje, o imaginário corrente do índio preguiçoso e inimigo do trabalho.
Localizar a gênese histórica de um
estereótipo, e perseguir as suas manifestações em diferentes contextos, é um
passo metodológico fundamental para a desconstrução das imagens poderosas que
eles carregam. A jocosa “anedota” utilizada por Guillermou para ilustrar o
caráter dos guaranis, devidamente localizada, abre-nos a possibilidade de
rastrear as pistas de uma linha discursiva, de matriz jesuítica-colonial, que
alcançou os viajantes naturalistas do século XIX e se consagrou na
historiografia e na literatura do século XX. O discurso colonial, cuja faceta
mais perversa é a construção do colonizado como incapaz e degenerado, se
perpetuou nestes estereótipos que articulam uma forma sutil de dominação,
muitas vezes camuflada de proteção.