Pin it

quarta-feira, 10 de julho de 2013

A VERSÃO ZUMBI DE ROMEU E JULIETA NUM MUNDO PÓS-APOCALÍPTICO.



A VERSÃO ZUMBI DE ROMEU E JULIETA NUM MUNDO PÓS-APOCALÍPTICO.



Passei na locadora para ver as novidades e me deparei com o filme “Meu Namorado é um Zumbi” (Warm Bodies, 2013). Já tinha lido alguma coisa, mas nada que me chamasse a atenção. Ando com um pé atrás com esta súbita popularização dos zumbis. Parece epidemia. Virou modinha.  Estão em toda parte. Vi alguns nos protestos de rua aqui em Florianópolis. Desviei. Lugar de zumbi é no cinema. E falando em cinema, eles chegaram a Hollywood. Arrastando-se por décadas, mas chegaram. Os mortos-vivos saíram dos cantos obscuros da indústria cinematográfica para o centro das atenções. Saíram das produções B independentes com orçamentos modestos para os blockbusters milionários alavancados por grandes estrelas hollywoodianas (Guerra Mundial Z). Foram devorados pela indústria do cinema. O apocalipse zumbi está se convertendo na galinha dos ovos de ouro dos grandes estúdios. 

Olhei para o filme na estante da locadora e pensei: “é mais um desses filmezinhos que pegou carona na zumbimania e envolveu os mortos-vivos num romance adolescente açucarado”. A atendente me viu com o filme na mão e disse: “é muito bom, tem saído bastante”. Devolvi o filme à estante. Continuei a busca. Saí do campo de visão da atendente. Mas o filme continuou no meu campo de visão. A capa do DVD, vermelha, com letras pretas e brancas, e um zumbi entregando flores a uma garota, me fisgou. Peguei o DVD para dar mais uma olhada. John Malkovich no elenco. Aluguei. A atendente não resistiu: “alugo bastante este filme, mas, aí, não sei, achei meio estranho...”. Balancei a cabeça e pensei: “tem chance de eu gostar deste filme...”. Nada contra a moça, pelo contrário. Ela é uma querida, mas nossos gostos para filmes são um pouco diferentes. 

E não é que gostei. O filme de Jonathan Levine mistura comédia romântica e narrativa zumbi, num cenário pós-apocalíptico. E funciona. É tudo bem dosado. Retirou-se o açúcar da comédia romântica e os clichês desnecessários dos filmes de terror. Despretensiosamente, o filme renovou um gênero que, mesmo com o sucesso das grades produções, parecia desgastado. Num mundo devastado e transfigurado por uma catástrofe mundial, um grupo de sobreviventes luta pela vida, ilhado numa cidadela improvisada cercada e protegida por muros gigantescos. Do outro lado dos muros vivem os mortos-vivos, esfomeados e cambaleantes. O muro separa a cidade dos mortos da cidade dos vivos, a vida da extinção. Seguindo a tradição do gênero, os humanos estão em minoria e cercados por multidões de mortos-vivos. Os governos, as instituições, as empresas, nada sobreviveu à catástrofe. Um grupo de exterminadores de zumbis, comandados pelo general Grigio (Jonh Malkovich), organização que substituiu o governo da cidade, protege os sobreviventes e faz incursões na terra dos mortos em busca de remédios e alimentos. De quebra, eliminam as criaturas com golpes e tiros na cabeça. Julie (Teresa Palmer), filha do general Grigio, faz parte de um destes grupos de jovens voluntários que se arriscam na cidade dos mortos para garantir a sobrevivência dos vivos. Andam em grupos, como os zumbis, para se protegerem.  Numa perigosa missão o grupo de Julie se vê encurralado no interior de uma farmácia por um bando de mortos-vivos famintos. A garota é salva da morte por um zumbi e levada para um esconderijo seguro. Ao invés de devorá-la, o zumbi a protege. Esta é a novidade de “Meu Namorado é um Zumbi”: um zumbi introspectivo e consciente dos seus atos supera a incontrolável fome e vê na moça mais do que alguns quilos de carne fresca. Fugindo um pouco das regras do gênero, os zumbis não são cadáveres ambulantes cujo único objetivo é comer carne humana. São divididos em duas categorias: os esqueléticos e os cadáveres. Enquanto os esqueléticos já passaram definitivamente para outro lado e não guardam o mais remoto traço de humanidade, os cadáveres ainda estão numa fase de transição. Um lampejo de humanidade ainda resiste nos seus corpos pútridos. Quando se alimentam de cérebros humanos, sua alimentação favorita, são capazes de acionar e reviver parte das memórias, dos sentimentos e dos pensamentos  da pessoa devorada. Reviver as memórias, ainda que dos outros, é a forma que eles têm de se sentirem vivos, experimentarem sensações e (re)aquecerem, ainda que por breves instantes, o corpo gelado e enrijecido. É assim que um dos zumbis se conecta com Julie. Ao comer o cérebro do namorado da garota, o zumbi, que ainda não se desprendeu completamente da vida passada, aciona as memórias do rapaz, reconhece a garota em perigo e estabelece com ela um estranho vínculo.



E assim começa uma improvável história de amor, na fronteira entre a vida e a morte, entre o vigor do corpo e a putrefação, num mundo pós-apocalíptico. O jovem zumbi, que luta para lembrar o próprio nome, salva Julie e a leva para sua “casa”, no aeroporto, onde vivem os mortos-vivos. Esfrega sangue morto no rosto da garota, para disfarçar o cheiro, e a conduz pelo reino dos mortos em segurança. Os mortos- vivos vivem num aeroporto abandonado. É uma boa metáfora. Um aeroporto é um lugar de partidas e chegadas, de pessoas em trânsito, que estão vindo de algum lugar ou partindo para outro. É o lugar nenhum. Neste não-lugar, os mortos-vivos, que estão na transição para a morte definitiva, vagam de um canto para outro arrastando melancolicamente os restos de humanidade que ainda lhes restam. Estão à espera de alguma coisa? Exercitam mecanicamente hábitos rotineiros, reminiscências da outra vida, como varrer o chão e passar o detector de metais ao longo do corpo de quem adentra o aeroporto. Só saem dali quando sentem fome.

Julie é levada para este lugar triste e perigoso. Aos poucos vai percebendo que o seu zumbi herói tem vestígios de humanidade. O rapaz consegue, com algum esforço, emitir algumas palavras e diz, monossilabicamente, que ela está segura. Não recorda do nome. Lembra apenas que começa com a letra “R”. Julie rebatiza então o seu zumbi de “R”. O morto-vivo que se arrasta entre o aeroporto e os cantos escuros da cidade em busca de carne humana tem agora um nome. O nome implica numa certa identidade, que humaniza o zumbi e cria um laço entre os dois. Na presença de Julie, “R” vai retomando traços da humanidade e reaprendendo a falar. A garota, por outro lado, percebe que o garoto zumbi é, em certos aspectos, mais humano que aqueles que habitam a cidadela. Enquanto os zumbis lutavam pela humanidade perdida, os humanos se brutalizavam na luta pela sobrevivência, enfiados em uniformes militares e armados até os dentes. Sob condições adversas, ou vivendo fora do império das leis e do regime das instituições, ensinam os filmes sobre zumbis, os seres humanos deixam aflorar suas paixões profundas. Os zumbis, protagonistas pela primeira vez, estão comprimidos entre os assustadores esqueléticos e os humanos exterminadores. Os esqueléticos são assustadores, mas não lhes fazem mal. Representam sua inapelável condição. Os humanos são, ao mesmo tempo, seus algozes e sua única refeição.



Narrado em off  por “R”, o filme nos conduz pelo mundo subjetivo dos zumbis. O olhar de “R”, marcado pela nostalgia e por uma boa dose de humor, empresta leveza a narrativa. O mundo, visto por um zumbi, vai aos poucos se mostrando mais interessante que o mundo dos humanos, de onde Julie vem. Embora sempre cambaleante, devorador de gente e de aspecto cadavérico repulsivo (pelo menos à primeira vista) “R” preserva hábitos de sua vida humana e tem um olhar crítico sobre a sua morte cotidiana. É um zumbi reflexivo que se sente sozinho e perdido. Sente, pensa, mas não consegue se comunicar. Está preso a um corpo morto. Tem um amigo, seu melhor amigo. Encontram-se no bar do aeroporto. Quase se comunicam, emitem grunhidos e por vezes alguma palavra: “hungry”...”city”....se olham e partem para cidade em busca de comida. “R” não se orgulha de comer gente, não gosta de machucar as pessoas, mas a fome é poderosa. Nostálgico, lembra do tempo em que era vivo e todos podiam se comunicar e desfrutar da companhia uns dos outros. Mas a imagem que lhe vem à mente é a de pessoas presas aos seus celulares e computadores portáteis, ilhadas, isoladas na multidão, incapazes de se comunicar. Estão presas aos seus smartphones, vivos-mortos, como ele ao seu cadáver. Arrastando-se de um lado para o outro, pensa: “estamos todos mortos”, embora, aos seus olhos, todos pareçam normais. Imagina o que as pessoas eram antes de se tornaram apenas cadáveres: zeladores, personal trainers, filhos de empresários etc.. Mas agora eram cadáveres repulsivos e sem sentimentos. “R” olha para a vida, com os olhos de um morto, e se dá conta da sua beleza. O que teria provocado a catástrofe? Uma guerra química, um vírus transmitido pelo ar, um macaco radioativo? Não importa. Estão todos mortos mesmo.



“R” mora num avião, coleciona livros, objetos e vinis de rock clássico. Colecionar e se apegar as coisas parece torná-lo mais humano. Leva Julie para o seu “lar” e coloca o vinil do Guns and Roses para ela ouvir (Patience). A garota brinca e diz que ele é um purista. Ele tenta, com dificuldade, explicar que considera o som do vinil superior ao som digital (um som “mais vivo”). A sensibilidade musical e auditiva do zumbi, que escuta Bob Dylan, vai na contramão da zumbificação digital em massa em curso. Zumbis colecionam e escutam vinis enquanto humanos se contentam com iPods. É realmente o apocalipse! Quem é, afinal, o zumbi?

Nesta versão lúgubre de Romeu e Julieta (R and J), o pai de Julie é um exterminador de zumbis. Não permitirá que a filha ande na companhia de um morto-vivo. Para ele os zumbis são indiferentes, insensíveis e não sentem remorso (Julie rebate: “como alguém que eu conheço, não é papai?”). O amor sobreviverá ao apocalipse-zumbi e ao pai exterminador? É possível o amor entre seres separados pela morte e apartados por muros? A história de amor que atravessa os tempos ganhou uma releitura escatológica, nos vários sentidos que a palavra comporta.

“Meu namorado é um Zumbí” é uma história de amor sem as afetações e as pieguices das comédias românticas habituais. É um filme honesto, que mistura em doses suportáveis terror, comédia e amor. Não é um filme de amor arrebatador, tampouco um filme de terror de meter medo. Jonathan Levine explora e extrai o que tem de melhor nos dois universos e ainda satiriza os clichês dos dois gêneros cinematográficos. A narrativa em primeira pessoa, além de permitir mostrar o mundo pelos olhos de um zumbi (inédito até então, e deliciosamente herético), facilita a sátira. “R” é um zumbi que zomba da própria condição, da incapacidade de se comunicar, da aparência desagradável e da lentidão com que se movimentam. Julie, uma heroína nada frágil, rejeita o namorado autoritário e protetor, que se parece com o pai. Encontrou afeto, cuidado e boa companhia ao lado de um zumbi melancólico. Não se incomodem com os exageros e os excessos. É um exercício metalinguístico. É o modo que o diretor encontrou de dizer que tudo não passa de cinema. 



A narrativa-zumbi e o cenário de fim de mundo, embalada por um trila sonora de peso, dão um toque diferenciado a esta história que revisita o tema da possibilidade do amor entre seres tão distintos, que vivem em ambientes tão diferentes. O zumbi, seguindo a melhor tradição, é o pretexto para olhar criticamente para as relações humanas e os valores socialmente praticados.

A trilha sonora merece destaque. Se o filme é voltado para o público adolescente, como se diz, seria de se esperar uma trilha baseada nos ídolos que embalam a vida da garotada. Nada disso. O que se ouve é Bob Dylan, Guns and Roses, Bruce Springsteen, Scorpions, Roy Orbison. A sequência embalada por Pretty Woman, na voz de Roy Orbison, é uma citação de uma famosa comédia romântica açucarada. Julie e a amiga decidem maquiar “R” para que ele se passe por humano para poder andar pelas ruas na companhia delas, e o fazem ao som de Pretty Woman. “R” está morto, mas nem tanto. Faz com a cabeça que desaprova a ideia. 

Depois de “Warm Bodies” o que mais podemos esperar: zumbis com consciência de classe? Zumbis nazistas? (opa, lembrei do filme norueguês Dead Snow, de 2009). Zumbis vegetarianos? Zumbis socialistas? (humm, este é o tema do próximo post). 

“Meu Namorado é um Zumbi” reserva boas surpresas aos que acompanham a trajetória da temática zumbi no cinema. Vou resistir e não vou contar o final. 

Ontem fui devolver o filme. 

- A atendente: “gostou do filme?”
- Eu: “gostei”.
- Ela: “não achou meio estranho?”
- Eu: “achei”.
- Ela: “ah... tá”.
- Eu: “aham”.
O vocabulário do zumbi “R” era mais extenso e expressivo que o nosso “diálogo” monossilábico.
Nenhum de nós estava interessado em alongar a conversa. Ela perguntou por perguntar. Eu respondi por responder. Ela voltou para o computador e eu voltei para o aeroporto (ops, para a minha casa).



sexta-feira, 28 de junho de 2013

MADAME SATÃ



MADAME SATÃ


Escrevi este texto em 2004, logo depois de assistir Madame Satã. O filme é um soco no estômago. E o texto saiu de um golpe só. Acho que agora é um bom momento para tirá-lo do esquecimento.  A vida e as batalhas de Madame Satã (João Francisco dos Santos) são a recusa vigorosa e o autêntico contraponto a esta tentativa obscena e desavergonhada, representada por Marco Feliciano, de interferir na intimidade dos indivíduos. 

Não alterei nada no texto. Mantive as imprecisões e a primeira impressão que tive do filme. Saí do cinema, cheguei em casa, abri o computador e joguei as palavras... Não lapidei o texto. Hoje eu mudaria alguma coisa, acrescentaria outras e suprimiria algumas passagens. Mas não fiz.  Preferi manter o texto original.
____________________________________




Aviso aos navegantes: este não é um texto científico, acadêmico e politicamente correto. É um texto passional, comprometido, impreciso, mal comportado, rápido e rasteiro como o jogo de pernas do capoeira endiabrado.

Passou meio despercebido do grande público o primeiro longa-metragem do diretor cearense Karim Aïnouz, Madame Satã. O filme circulou apenas em algumas salas alternativas de cinema, com baixa média de público.

O filme é baseado na história de vida de João Francisco dos Santos, negro, boêmio, filho de escravos recém-libertos, homossexual, malandro, capoeira, analfabeto, afável e violento, pai adotivo e transformista, que viveu no Rio de Janeiro entre as décadas de 1920 e1970. Karim enfoca parte da vida de Madame Satã, nome adotado por João Francisco, quando ele começa apresentar-se na noite carioca com shows de transformismo. Shows que parecem evocar a ancestralidade de “Priscila, a Rainha do Deserto”, só que sem o charme, o otimismo e o tom jocoso que embala a Odisseia Gay das bichas australianas.



Karim Aïnouz optou por fazer uma espécie de crônica íntima do cotidiano de João Francisco, antes da criação do mito Madame Satã. O que chamou a atenção do diretor para a história desse personagem singular da história carioca foi o tema da exclusão. Karim tenta reconstruir o cotidiano pobre de uma parcela da população carioca, que gravitava em torno de João Francisco, e o modo como estas pessoas, especialmente o personagem em foco, reagiam à exclusão. O filme reconstrói com impressionante realismo toda a atmosfera boêmia e marginal da Lapa da década de 1930. Sombrio, depressivo, perturbador, marginal e lírico, Madame Satã definitivamente não é um filme feito para agradar espectadores eventuais que buscam diversão nas salas de cinema. É um filme bastante ousado e corajoso, com interpretações vigorosas, viscerais e inspiradíssimas, principalmente de Lázaro Ramos, ator estreante que interpreta de forma marcante e hipnótica Madame Satã.



As cenas de amor entre os homens, os beijos lambidos, as trocas de carinhos, delicadas e violentas, são de tirar o fôlego. De fazer heterossexuais moralistas corar, abandonar o cinema (o que realmente aconteceu durante a exibição do filme no festival de Cannes). São os beijos mais verdadeiros e sensuais, entre homens, que vi no cinema. O filme não tem pudor, não usa de meias palavras. É sujo, violento e depravado, como era o cotidiano pobre e marginal do subúrbio do Rio de Janeiro (na imaginação de Karim Aïnouz). É o reverso da Belle Époque carioca, é o outro lado da bossa. É a Lapa sem ilusões, não idealizada. Onde preto pobre e bicha, se não tem navalha e não luta capoeira, dá o cú ou vive com o cú na mão. Universo destituído do glamour burguês, mas onde a burguesia dos bairros elegantes e higienizados realizava suas fantasias impossíveis, inconfessáveis. Tipo aquela de “Botinha, mas Ordinária”, em que uma moça da classe média é estuprada na chuva, sob a capota de um fusca por um bando de negros molhados e suados. E adora. Quantos moços de famílias brancas tradicionais do Rio, “bonitinhos e ordinários”, não foram “sodomizados” pelo membro negro de Madame Satã? Mas por favor, não vamos confundir isto com “democracia racial” ou “democracia sexual”. João Francisco é o furacão negro que desorganiza a paisagem do bem arranjado mundo patriarcal de Casa Grande & Senzala. No filme, a Lapa se metamorfoseia numa espécie de quilombo moderno, urbano, onde Zumbi da Lapa ou Satã dos Palmares protege e abriga nos mocambos/cortiços improvisados, os desafortunados da Ordem e do Progresso. 

João Francisco adotou o nome de Madame Satã inspirado num filme homônimo de 1930, de Cecil B de Mille. Filme que viu e adorou. Verdadeira antropofagia do glamour hollywoodiano adaptado ao cotidiano pobre dos redutos marginalizados da capital de um país periférico. 





Madame Satã era malandro numa época em que a malandragem passou a ser vista como um mal a ser combatido pelo estado em nome da paz social. Era negro e bicha num país racista e moralista, recém-egresso da escravidão. Mas não era uma vítima indefesa de um sistema injusto que não dava oportunidades aos despossuídos. Satã não cabe numa explicação sociológica, histórica, e não pode ser explicado pela velha fórmula dos intelectuais de esquerda que reduzem tudo à questão da injustiça social capitalista. Ele é escorregadio, evasivo, resiste aos conceitos e escapa dos enquadramentos sociológicos com a mesma facilidade com que escapava da polícia. Madame Satã jogava o jogo, invertia os papéis, improvisava a vida, com sua inteligência iletrada conquistada nas ruas, e driblava as dificuldades com um jogo de pernas de capoeira endiabrado. Era a vingança tardia dos escravos, do negro que não esperou a Lei Áurea para chutar a porta da senzala. Era filho de Iansã e Ogum, do despudor e da guerra. Exu capoeira, terror da sociedade disciplinar e ordeira, antítese do mundo do trabalho produtivo. Demônio negro que vivia nas brechas da sociedade normatizada, a perturbar-lhe o sono, que repunha as energias para o trabalho, e a debochar do sonho cor de rosa da prosperidade burguesa.  Madame Satã era a crítica não racionalizada do mundo ordenado pelo trabalho produtivo e pela promessa liberal da ascensão social. É a contrapartida do cinema do sul do mundo à epopeia liberal de Forest Gump. E Lázaro Ramos não ficou devendo nada a Tom Hanks. 


Satã não era uma bicha delicada, frágil. Era dono de um rebolado macho, de uma voz potente e de um olhar intimidador. Desmunhecava com charme vigoroso. Foi durante muito tempo personagem singular do carnaval carioca. Mas encarnava e traduzia o lado menos apoteótico e mais indisciplinado do carnaval. E neste carnaval, Madame Satã era rei e rainha, a Carmen Miranda dos desajustados, dos que foram barrados no american way of life tropical.

Para quem gosta de ser surpreendido por um filme e ser invadido pela intimidade alheia, eu diria, vá correndo na locadora mais próxima e reserve a fita. Não espere pelos cinemas, especialmente dos shoppings.  Não é o tipo de filme para ser exibido nestes espaços. Não atrai público, constrange os desavisados e leva os donos das salas de cinema a falência. É o preço que se paga pela ousadia. A sensibilidade cinematográfica não afina no mesmo diapasão do mercado consumidor de filmes. Glauber Rocha que o diga. Orson Welles também. Valeu Karim Aïnouz.













sexta-feira, 21 de junho de 2013

PAREM OS PROTESTOS QUE EU QUERO DESCER.



PAREM OS PROTESTOS QUE EU QUERO DESCER.

Para mim chega. Retiro-me das ruas. Não quero dar lição em ninguém nem dizer para onde o movimento deve ir. Simplesmente chega. Não vou caminhar ao lado daqueles que querem destruir a democracia. Acredito na boa fé e nas melhores intenções da maioria, mas a maioria conhece as bandeiras subreptícias que o movimento carrega?  Já não sei mais o que as máscaras escondem. 



 Se é para protestar nas ruas pedindo o impeachment de uma presidenta eleita democraticamente, e sobre a qual não existem denúncias, eu me retiro.









1.       Esperidião Amin e a Crise do Capitalismo.

Ontem fiquei quase cinco horas parado na ponte, sem conseguir entrar na ilha. Na terça eu estava na ponte, no meio da manifestação, embora não muito à vontade, bloqueando a passagem. Foi bom estar dos dois lados. Achei justo. Um dia como manifestante, outro como parte castigada pelos protestos. Sim. Ficar cinco horas parado no carro é um castigo. Sem ter o que fazer pensei muito sobre as manifestações enquanto ouvia a radia Guarujá. Lá pelas tantas o apresentador do programa anunciou uma entrevista com Esperidião Amin: “Deputado, o que o senhor está achando dos protestos?” Amim, que hoje pertence à base aliada do governo do PT, disse que recolhia com humildade o recado das ruas e via tudo aquilo como uma celebração da democracia. E começou a falar, como se fosse um daqueles intelectuais apocalípticos, de uma crise dos valores ocidentais e, sobretudo, de uma crise do capitalismo. É isso mesmo o que vocês estão lendo, Amin fez críticas ao capitalismo, que ele chamou de desonesto, e dos pilares da civilização ocidental. Pensei comigo: “o que está acontecendo?” Amim criticando o capitalismo, a RBS apoiando os protestos, a polícia bloqueando as pontes para os manifestantes, as bandeiras dos partidos de esquerda, que sempre estiveram à frente dos protestos por um país mais decente, sendo atacadas e proibidas. Foram cinco longas horas pensando e vendo uma multidão atravessando a ponte a pé: eram manifestantes que voltavam para as suas casas e trabalhadores que não tinham outro meio de voltar para os seus lares a não ser a pé. Alguns rapazes, metidos naquelas máscaras que não me dizem nada, paravam na janela do carro e me mostravam cartazes. Eu fazia um sinal de ok com o dedo para eles irem logo embora. Funcionava. Adeus Guy Fawkes. 


2.       Estou fora.

A onda de “protestos” está se transformando numa tsunami conservadora. Não tenho interesse nisso.  Ontem foi a gota d’água. E agora essa tal de GREVE GERAL, marcada para o dia 1 de julho. Quem está chamando a Greve? Vocês vão participar e não sabem quem está por trás? Acordem. Não me sinto à vontade com o rumo que a coisa está tomando. Protesto não é espetáculo. Este país tem uma história de protestos e lutas que não pode ser esquecida ou desconhecida. Acordem para o passado. O Brasil existe bem antes da invenção do facebook. Não gosto de muita coisa nestas manifestações. Não gosto das máscaras de Guy Fawkes e dos moletons da GAP (virou uniforme?), não gosto das palavras de ordem, não gosto do ufanismo postiço, não gosto da onda direitista, não gosto da interdição das bandeiras partidárias. Os fascistas podem berrar à vontade e manifestar suas opiniões, mas os militantes não podem segurar suas bandeiras partidárias? É este o entendimento que vocês têm de democracia? Não vou mais. Não quero ser cúmplice de nada disso. Retiro meu time de campo. Não acordei hoje. As manifestações parecem marchas cívicas. Os manifestantes parecem seguir uma cartilha de como se manifestar. Será que vão ganhar certificado da RBS e da GLOBO de bom comportamento no final dos protestos? Cantam o hino pra tudo, o tempo todo. Que saco. Afinal, é um protesto ou é demonstração de patriotismo? Mas o que eu posso fazer? A manifestação não é minha. E não sou eu quem vai dizer como eles devem se manifestar. Apenas me retiro. Não vou tentar impor minha bandeira, minha cor. A única camisa vermelha que eu vestiria é a do COLORADO. É isso mesmo. Vou vestir minha velha camisa vermelha – que um dia o Falcão e o Figueroa vestiram - e ficar em casa vendo os jogos da Copa das Confederações. Viva o futebol. Espetáculo por espetáculo.....  Só está faltando a GLOBO chamar o Galvão Bueno para narrar os protestos, com comentários de Alexandre Garcia e Arnaldo Cesar Coelho. “Isso pode Arnaldo?” - “Veja bem, Galvão, a regra é clara, passar da linha demarcada pela polícia é crime, configura vandalismo.”


3.       Sobre os apartidários.

Mas não é só isso. Tem o outro lado. Eis que, de repente, se declarar “apartidário” tornou-se uma monstruosidade política. Que negócio é esse? A súbita valorização reativa das bandeiras vermelhas e dos partidos (quais mesmo?), e os julgamentos ferozes lançados sobre os manifestantes que não vestem vermelho, também me desgostam. O caráter apartidário (não confundir com antipartidário) é uma das melhores coisas destas manifestações. A esquerda, agitada porque não ter o controle dos protestos, vê fascismos por toda parte. Cuidado. Nem todos que se declaram apartidários são antipartidários. E o pessoal tem boas razões para querer distância dos partidos. Não tem? Nem todos que gritam contra a corrupção são tucanos disfarçados. Qual é? Fizeram barbeiragens no governo, se aliaram ao que tem de pior na política nacional, e ainda querem liderar os protestos? Tenham a humildade (não a do Amin) de ouvir e aprender alguma coisa. 


4.       Greve Geral e movimentos da ultradireita.

Cuidado com a GREVE GERAL que esta sendo convocada para o dia 1 de julho. Viram quem está chamando para a Greve? Pesquisem o perfil dos sujeitos e vocês vão descobrir o que esta por trás disso. O movimento Greve Geral ou o movimento Primeira Greve Geral no Brasil, e suas respectivas páginas no facebook, são manifestações da ultradireita fascista que pretende se assenhorear dos protestos e jogar a multidão contra o governo Dilma. Leiam e analisem as enquetes na página do movimento GREVE GERAL e saberão do que se trata. Não caiam nessa. Não se deixem levar por estes fascistas oportunistas infiltrados no movimento. Eles não portam bandeiras partidárias, mas sabem muito bem o que querem. Pesquisem o perfil de Felipe Chamone (que está chamando a greve) e vejam o partido que ele apoia e os projetos que ele defende. Parece que o sujeito gosta muito de armas. A imagem que ilustra a página do movimento no facebook é a da uma multidão de mascarados. A máscara de V de Vingança virou o disfarce da ultradireita?




5.       O Gigante Acordou?

Se o gigante acordou para se deixar conduzir pelos grupelhos  fascistas, é melhor que o gigante volte a dormir. Querem “acordar” o gigante para jogá-lo contra a democracia? Estou fora.